quinta-feira, 13 de junho de 2013

A tripla farsa

            São quase onze horas da noite e mesmo assim, daqui, do velho apartamento da rua Cônego Eugênio, ainda se ouvem os apitos estridentes das sirenes deslocando-se freneticamente. Penso, olhando a paisagem, num marciano que desembarcasse em São Paulo: acharia estarmos em guerra, e pior: vendo os rostos apinhados em torno das TVs dos bares, dos lares, das lojas, julgaria tal guerra tratar-se de um fenômeno corriqueiro, como a novela das 7. No caminho do centro para casa, ao passar pela Paulista, pude ver que uma nova praça de guerra se armava quase na esquina, à terrível imagem e semelhança da que pude presenciar na av. Consolação. Pela Dr. Arnaldo luzes vermelhas de camburões e ROCAMs riscavam a noite como tiros alucinados. Certamente, pensaria o marciano, os comunistas, os tapuias, os paraguaios ou os alemães estão para receber reforços na frente ocidental, e é preciso agir com energia.
            No céu, cinco helicópteros.
Mas de fora na av. Ipiranga e no começo da Consolação o mesmo marciano que teve por infelicidade aportar em São Paulo poderia, a essas horas, suspirar aliviado, já que saberia que a brutalidade é coisa tão trivial quanto corriqueira: o comércio, pequenos camundongos, punham seus bigodinhos para fora das cortinas de aço e, certificando-se da ordem cívica, quotidiana e apolítica, voltavam a servir fumegantes cappuccinos, chopes espumantes e sapatos para todos os casais que não conseguiram comemorar o Dia dos Namorados em tempo, e para os estudantes do Mackenzie e trabalhadores da região, em geral . Na Maria Antônia, já imperava a descontração, apesar de o vento, vez ou outra, trazer inconsequentemente os farrapos fedegosos das bombas de efeito moral, do gás de pimenta, da fumaça, enfim, dos restos da guerra que se alastrava Consolação acima.
São Paulo respira normalmente, a noite avança com temperatura amena. Embora com cicatrizes: na Augusta há lixos revirados, restos de fogueiras, comércio ainda fechado e, pasmem, esboços ou projetos de barricadas. A GCM, em formação marcial de fila, vela pela calma dos casais. A praça Roosevelt está sob estrito controle: aquele que quiser degustar o ar fresco da noite, levar o cachorro para evacuar ou mesmo andar de esqueite, pode ficar à vontade: cerca de dez viaturas estão estacionadas no local, e policiais devidamente armados, de trinta e oito a trabucos, em postos estratégicos, vigiam pela paz em cada esquina da baixa Augusta.
De um boteco na Rua Maria Antônia, enxugando as lágrimas e esperando o coração desacelerar, eu assistia ao desfecho da dupla farsa, degustando simultânea e anacronicamente certo sabor de 68, pela influência do local e pelo barulho insuportável das bombas. Refugiei-me para tomar um guaraná: no quebra-pau, conforme a polícia nos isolava e cercava na nova Praça Roosevelt, topei com o filho do meu professor de grego – um rapaz de 13 anos que lê Freud e Turguêniev – mais uma amiga sua, ambos com lenços no rosto e um tanto quanto desnorteados diante do caos apavorante em que se convertia a primeira manifestação das suas vidas, a que tinham ido sem a autorização dos pais. Ainda tentei metê-los dentro do Supremo Tribunal, mas o coração Justo dos servidores, disposto a assistir o circo incendiando de detrás dos vidros, já não mostraram tanta disposição assim para acolher duas crianças diante da cortina espessa de pimenta e efeito moral, da multidão amedrontada, do avanço do choque, das bombas, dos trabucos, dos camburões, das balas soltas.
Resultado: ficamos encurralados, nós e mais alguns. Sorte imensa não terem nos linchado ali mesmo. Alguém tinha vinagre, a irmandade da ocasião se impôs. Até que a linha de frente abriu uma brecha, e, com um moleque debaixo de cada braço (o que muito provavelmente me serviu de passaporte), passamos pelo lado e fugimos, entre estilhaços de vidro, pedaços de pedra e restos de fogueiras. Ruas vazias, camburões atravessados pela avenida perplexa. Uma linha do Choque fechava a Maria Antônia, e um deles gritava, trabuco em punhos, qualquer coisa contra um repórter. Era a guerra, ainda que assimétrica. Lembrei-me de alguns vídeos e fotos do 1º de abril de 1964, e pus-me a assoviar o hino nacional – mas ninguém entendeu.
Era a farsa, e ninguém, aparentemente, está entendendo nada. Nos botequins e estacionamentos, as pessoas assistiam pela televisão o que acontecia a duas quadras dali, sem sequer ter a curiosidade de dobrar uma esquina e ver ao vivo e a cores. “As imagens”, como diz o Datena. Mas, a primeira de todas as farsas: a “revolução” televisionada. “Isso é Goebbels”, me disse, num misto de ironia e desespero, meu professor de grego, que a essas tantas já tinha chegado atrás do filho, entre orgulhoso e emputecido pela ousadia do rapaz.
“E isso é Marx”, disse por fim, enquanto caminhávamos, chutando os pedregulhos e cacos de garrafas espalhados pela calçada. “A farsa”. Coisas que, como bombas e balas, dão no mínimo sobre o que pensar, se não sobre o quê chorar, agora já beirando a meia-noite, no mesmo apartamento, embora somente com o barulho dos caminhões de lixo que limpam a cidade para seu outro dia de fumaça e lixo. As sirenes se calaram. Leio nos jornais que mais de cento e cinquenta foram presos. As duas farsas foram concluídas: os telespectadores tiveram sua ração de sangue; eu, e muitos, a nossa de subversão. Ambas resumidas em uma única tragédia.
Quando, em que manhã, ao abrir a página de um jornal, conseguirei enfim ler nas linhas a justiça efetivada nos fatos? No Brasil, para o bem ou para o mal, temos o costume de rir muitas vezes que deveríamos chorar. Fico sonhando com o dia em que as notícias só me farão sorrir. Hoje, na manifestação, gritava-se “o povo acordou”, e de fato, até a chegada na Maria Antônia, a beleza e a justiça de tudo aquilo somavam-se numa confortável e farsesca sensação histórica, de despertar de algum porvir mais justo. Bem, sabe-se como tudo acabou. Vinte anos de ditadura seguidos de Sarney, Collor e Fernando Henrique, mais os ambíguos anos de Lula e sua gestora deram numa politização perneta, resumida ao período de eleição, e não estendida a tudo de político que nos toca. Não sabemos nos manifestar, estamos pesquisando. O Estado e a sociedade civil, pior ainda!, não sabem se portar diante da ação direta. Mas num boteco dois homens, mesmo que assistindo TV, se solidarizam ao me ver sentar, de olhos vermelhos, e puseram-se com ardor a praticar um dos mais antigos esportes brasileiros: meter a língua no governo. Dois moleques contrariam seus pais e vão na manifestação, por curiosidade, e, além de aprenderem com a vida, ainda me ajudam a me safar, na sua imponente fragilidade. O Datena muda de ideia com a mudança de Ibope.... bem, chega.

Ah, Vida futura, és difícil mas sem ti, esta noite, me recuso a dormir.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Na falta de crônica


Vai qualquer outra coisa, e aviso logo: isto aqui não é uma crônica.

Venho tentando compor, dos retalhos confusos de uma vida insossa, pequenas anedotas, comentários, ou mirabolações sobre tudo que se passa ou que poderia se passar nesta triste capital de estado sulista. Mas esse fim de semana não deu. E por um certo tipo de maldição moral, que empurra os escritores para a máquina mesmo que só pra sofrer de tédio, cá estou eu explicando as minhas faltas para o leitor que, muito provavelmente, está cagando para meu atestado de incompetência.
            E é pior: não há nada de original nesse tipo de artifício. Lembro-me agora de Drummond, no seu formidável “Cadeira de balanço” – mas não sei ao certo o que o poeta inventou no lugar da crônica faltante. Certamente não foram desculpas. E de fora ele mesmo ainda cita, por escrúpulos, outro caso de inadimplência literária confessa, referindo-se ao autor apenas como “o célebre cronista”, que me parece se tratar de Rubem Braga.
Ou seja: já não bastasse não ter escrito, não ter o que escrever e estar enrolando desculpas, de quebra ainda corro o risco de estar fazendo plágio, quase um biplágio, um plágio terceirizado, uma monstruosidade, enfim. Mas se contasse tudo que me privou, nestes dias, do convívio torturante e maravilhoso do Microsoft Word, teria ao menos o consolo da irreprodutibilidade inata de cada vida, e, dentro dela, a unicidade de cada fim de semana.
Lá vai um esboço.
            O escritor – na cabeça de qualquer ser honesto que queira ser um escritor – é uma espécie de santo. Deve se manter impassível diante das tentações terrenas, eternas e modernas, fazer da vida o que também o Drummond já dizia em seus versos: “um sol estático, que não esquenta nem ilumina”, ou qualquer coisa assim. Deve dormir pouco ou quase nada, acordar muito cedo e ter sonhado com imagens e motivos para a sua nova obra experimental-surrealista, que está para escrever já há dois anos e que muito provavelmente morrerá sem escrever, dilacerado em crônicas, resumos, resenhas, e quinta-colunismos em geral.
A boemia cai muito bem em filmes hollywoodianos, ou na imaginação glamorosa de certos inocentes – mas é inimiga feroz da literatura. Primeiro porque no tempo em que você enche seu copo de Brahma, comprada por sete reais à garrafa, era pra você estar em casa começando o seu romance. Depois porque, bebida a primeira a segunda a quinta garrafa (R$35,00 que você não tem, porque não escreveu nada), você começa invariavelmente, na sua inconsolável frustração de escritor perdido no mundo, a falar das obras e manobras que você está fazendo ou que sem sombra de dúvida ainda há de fazer, corrompendo seus projetos com estúpidos e etílicos arroubos narcisistas, submetendo-os aos intermináveis pitacos das mais antipoéticas criaturas da noturnidade (poetas sem versos, pintores sem telas, músicos sem melodias) e por fim – questão de saúde pública – caceteando o lazer de todos os infelizes que tiveram por bem se sentar à sua mesa, excluindo pela chatice qualquer possibilidade de arranjar companhia que te arrefeça as frustrações alcoolizadas.
            Inevitável conclusão: bêbado, sozinho, e, dependendo dos tipos com que anda, com uma conta onerosa registrada seu nome.
            Outra abominável armadilha para pegar escritor é a internet. Em tempos de pouco lirismo, nada mais caduco do que o escritor sentado atrás dos papéis em uma vasta escrivaninha de mogno, presidida pela majestade nostálgica de uma Remington ou de uma Olivetti, com bustos barbudos prendendo folhas soltas e um cinzeiro abarrotado de bitucas. O escritor de nossos dias, se não quiser ser mais anacrônico do que já é par excellence, tem que trabalhar com um computador: se moderno, usará o Windows; o pós-moderno não dispensa o Macintosh. E ambos serão igualmente tentados, ao finalmente conseguir se sentar junto à máquina com o intuito de escrever, pelos detalhes coloridinhos dos ícones do Chrome, do Explorer ou do Firefox. E daí já é um abismo sem volta, um labirinto de abas e janelas... notícias frescas, e-mails importantes, vídeos engraçados, letras sentimentais, joguinhos viciantes, mensagens intensas...
Isso para não mencionar o Facebook, que já seria uma crônica à parte... e isto, antes que eu me esqueça, não é uma crônica. É antes qualquer coisa de desagradável, uma confissão absurda de um incompetente que não conseguiu dois dias para escrever uma reles historinha, um causo, qualquer coisa de minúsculo e de humano que mereça ser contado para a alegria de poucos, sem que o autor, espécie de evangelista, ganhe o que quer que seja por isso. Mas pelo contrário.
Poderia contar, num artifício retórico, das peripécias que me afastaram das letras nesta última semana. Da pomposa festa junina de anteontem, e da consequente ressaca de que ainda me curo, depois de ter bebido uísque com gim e batida de maracujá, ensinado forró a uma francesa, escorregado no trânsito e quase voado pra debaixo de um carro pra acabar às quatro da manhã comendo macarrão com minha mãe, também chegada da balada, no velho apartamento da rua Cônego Eugênio. Poderia falar da polícia montada, que estava na Vila quando quase fui atropelado, desfilando pomposa e fedegosa pela rotatória da Fidalga, e que hoje passou num trote calmo e ameaçador pelas portas desse restaurante, em cujo subsolo eu vos escrevo... ou ainda, quem sabe?, descrever a quermesse da Igreja do Calvário, com seu animador tão insuportavelmente animado que seus gritos alcançam até mesmo este buraco onde eu tento me isolar, tornando este ingrato ofício de beletrista fajuto ainda mais impossível... e vou parando por aqui. Todas essas histórias, reflexos vagos de um conteúdo humano, seriam assuntos, talvez, para uma ou duas outras crônicas.

E isto não é uma crônica. É só o que deu pra fazer.

domingo, 2 de junho de 2013

Meia-noite e vinte


Na flutuação dos preços, um minuto vale ouro.

           Para a alegria dos dois sujeitos, irmanados pela espera naquela noite fria de junho, o último ônibus daquela linha veio passar cinco para meia-noite, dispensando táxis e desesperos. Sábado, e numa linha dessas raras e pouco frequentadas: o ônibus andava com a parte da frente no escuro, o cobrador cochilava, e bem no fundo se aninhava uma senhorinha murcha e encasacada – o único passageiro antes que aqueles dois subissem.
            Um deles, mais afobado, mal entrou e passou logo a catraca, cutucando polidamente o cobrador para que, com efeito, cobrasse, indo em seguida para o canto oposto ao da velha, onde capotou. Já o outro, de índole mais indecisa, hesitou alguns minutos na falta de inspiração para lugares, antes que se decidisse pelo exemplo do ex-companheiro de espera. Levantou-se do banco da frente, em que se apoiara, por pouco não sai voando numa curva violenta, enfim se estabilizou e pôs-se a escarafunchar as dobras e redobras da carteira, atrás do troco contado para a passagem de volta – uma pilha de moedas em valores multiformes.
            Mas ao estender o dinheiro para o cobrador mal-humorado, acordando-o num “boa-noite” quase mudo, o que recebeu quando ele terminou de contar cada moeda foi um dedo apontando o relógio do passa-cartão.
            - Já é três e vinte.
            - Como? É meia-noite ainda...
            - Então! – resmungou o cobrador com impaciência, como se fosse óbvio.
            - Então...? Se é meia-noite, não pode ser três e vinte – o pobre do sujeito, não bastasse o sono, de quebra ainda estava confuso.
            - Sabe ler? Ali, ó. – e apontou com negligência para o “Jornal da SPtrans”, onde se lia, num informativo colorido, com tipografia simpática, que a partir da meia-noite do 1 para o 2 já passava a valer o aumento da passagem.
            O homem mordeu o lábio com aflição, sentindo-se pequeno em sua ignorância dos movimentos financeiros, do relógio e do transporte. Mas sabia que eram só vinte centavos, e que ia conseguir dar um jeitinho...
            - Vixe, moço... eu nem sabia que era agora, não... quer ver só? – abriu a carteira, revirou cada meandro de seus infinitos compartimentos, para somar por fim, tendo quase arregaçado o couro velho e sujo, mais cinco centavos ao que já tinha entregado.
– Moço, é tudo que eu tenho.
– Ih... daí embaça, ein? – respondeu numa careta o velho da catraca, no claro e sádico intuito de alegrar um pouco o seu sábado às custas daquele pobre coitado. – Tem câmera aqui no busão, filho, se o fiscal me pega...
            Semelhante explicação, chamada em bom português de “migué”, fez com que o infeliz das moedas perdesse a compostura.
            - Porra irmão, mas o cara ali acabou de pagar três reais, que eu vi! Por que é que justo eu agora tenho que pagar essa merda de vinte centavos! Cê tá de sacanagem!
            - Calma lá, calma lá, pode abaixar esse tom! Ele passou antes da meia-noite... se você tivesse feito o mesmo, não tava aqui agora enchendo o meu saco. A cidade inteira sabendo do aumento e só o trouxa aí chega à meia noite no meu busão pra ficar criando caso. É mole? Tá achando que é fácil? Não dá pra andar de graça não, mermão!
            - Mas, caralho!, são só vinte centavos! – desesperava-se o possível estelionatário ante as proporções que a situação assumia.
            - Porque não vai sair do seu bolso, né, vagabundo!
            E prosseguiu a patética discussão por mais alguns pontos, avenidas e ruas. O motorista ria sozinho, do seu canto, só esperando pelo desfecho daquela inédita comédia; o outro homem, vendo que sobrava até pra ele, fingiu continuar dormindo. Uma hora alguém acabou fatalmente pondo a mãe no meio, e a coisa ameaçou ficar séria: os dois estavam quase se agarrando quando uma voz fininha e trêmula se enfiou no meio, conciliatória.
            - Toma, meu filho, uma moedinha pra pagar o moço. Não precisa brigar. – sorriu a até então amoitada velhinha, tirando um Deodoro amarelo de um moedeiro estampado com flores.
            - A senhora é muito gentil – se apressou o cobrador, antes que o sujeito pudesse esfregar o dinheiro na sua cara – mas esse cara aqui não fica no meu ônibus mais não, nem pagando vinte reais! Vai ficar é na rua, vai descer agorinha mesmo! Ouviu?! Milton, pode abrir pr’esse porra aí antes que eu perca a razão! Vai, vaza!
            Pasmo com o desfecho inesperado, o sujeito ainda ameaçou se indignar, mas um rápido olhar pela janela fez com que abaixasse a cabeça, respirasse fundo e murmurasse um “sim senhor” resignado. O tal do Milton, rindo feito o diabo, enfim encostou o ônibus e abriu a porta da frente, por onde o sujeito, quieto, desceu a passos lentos com as moedinhas na mão.
            “Assim que se viaja de graça!” sorriu, guardando o troco na carteira e pegando o caminho de casa, a uns vinte minutos daquele ponto.

sábado, 25 de maio de 2013

O verde e o vermelho


Tão difícil que é se entender, meu caro anjo, e tão incomunicável que é o pensamento, até mesmo entre pessoas que se amam!
C. Baudelaire, "Os olhos dos pobres"



Saímos do espetáculo de braços colados, mãos fundidas, respirando o mesmo ar nas exatas mesmas pulsações e ritmos. Se o espetáculo era bom, se a atuação convencia, se o enredo era digno – me perguntassem sobre qualquer desses assuntos, presumidamente nítidos na mente de quem sai de um teatro, e eu não teria sequer um palpite. Não tínhamos assistido nada: de olhos fechados, havíamos assistido, com as mãos, os meandros de nossos próprios corpos.
Mas num instante, surpresos com o acender de luzes e o explodir de palmas, ajeitamo-nos como pudemos e começamos a aplaudir, gritando “bravos” e rindo, de nós mesmos. Apesar de não termos visto absolutamente nada, nem por isso se poderia dizer que não tivéssemos gostado. Aliás, muito pelo contrário: estava pessoalmente bastante sentido com o fim do espetáculo, e foi só a contragosto que, derrotado, puxei a mão de minha amiga para sairmos, conforme o fluxo de verdadeiros, ou, talvez, supostos espectadores formava uma fila em direção à porta.
Lá fora tudo estava coberto por uma noite morna, quase sufocante, com apenas um vento bissexto que trazia, quando nos lambia, o aroma pesado de suor e fumaça, misturando-se ao hálito de fritura e álcool que dominava a entrada do teatro. Dos jardins junto à Igreja, até se esboçava um cheiro de mato, mas antes que nos alcançasse era reprimido pelo bodum das sacas de lixo, reviradas pelos cantos e postes.
- Vamos beber alguma coisa? – entressorriu, insinuante, num esplendor de olhos verdes. – A noite está tão boa...
Como fosse a exata ideia que eu maquinava, dispensei palavras: dei-lhe um beijo e meu braço, e seguimos a passos lentos, como que ensaiados, pela calçada estreita e iluminada dos teatros da praça Roosevelt, colhendo em nosso brilho e alegria a atenção de todos os artistas noitevagantes pelos bares.
Não podia esconder meu paraíso: meus olhos voavam alto, mais alto que o Itália ou o Copam, conforme as ideias passeavam pela paisagem da praça nova, bem frequentada, decorada com gosto e com a imponência do velho Colégio Caetano de Campos. Com suas árvores monstruosas e vitrais, parecia medir e conter em si todo o século atravessado pela praça, da República do Café até a gestão Kassab. Falassem os prédios e eu perguntaria “e que tal, a nossa cidade? Com quantas formas e nomes você já não viu este lugar, de cartola e sobrecasaca, com gravatas e andaimes e viadutos, depois indigentes, travestis... e atores, até chegar nesta praça plana, finalmente ocupada com o brilho de intelectuais e esqueitistas...? E mais: de todas essas versões do tempo e do espírito, qual seria a melhor entre todas?...”
Perguntas retóricas, típicas de uma mente estragada pelos livros. As janelas não falam, e eu tinha a resposta: aquela era, indubitavelmente, a melhor praça do mundo, em seu instante de glória. Afinal era por lá que eu e ela estávamos passeando, e, para qualquer efeito histórico ou cultural, isso mais do que bastava.
De fora: comparando com o parnasianismo aristocrático e o progressismo militar, não seriam de fato melhores dias?
Voltando do trajeto dos anos aos braços de quem me acompanhava, sugeri que parássemos no que parecia ser o melhor dos bares, com o melhor dos preços. Cadeiras justapostas, mãos emaranhadas: ainda murmuramos uma ou outra amenidade, mas já estávamos naquele lugar, tão fantástico quanto confuso, em que as palavras se tornam inúteis ou mesmo incômodas. Somente os olhos se entendem, e os nossos passeavam pela paisagem descortinada sobre a praça e a Viação Leste-Oeste, rolando preguiçosos pela cerca opressiva de prédios, careada aqui e ali por umas tantas avenidas.
 Da nossa mesa, sentíamo-nos pertencendo àquilo tudo... e transcendíamos. Respirávamos o mesmo ar dos carros, mas em nossa expiração destilávamos o desprezo; brindávamos e bebíamos como todos, mas em nossos brindes evocávamos a miséria generalizada da noite, ao que, talvez, só nós escaparíamos. Nós... a consciência da penúria paulistana. Daquele abraço e daqueles copos, numa simples conjugação carnal, espalharíamos a Luz pela cidade inteira, começando pelas outras mesas do bar, repletas de intelectuais decrépitos e artistas tão medíocres quanto embriagados.
Aquela praça, reformada e limpa, ainda havia de ser só nossa.
O bar se abarrotava progressiva e insuportavelmente, castrando o nosso espaço de contemplação. Tive um arroubo de cavalheirismo, incendiado por algumas cervejas e outras tantas fantasias bellépóquicas, e pretextei ir ao banheiro, para poder pagar a conta. Voltando à mesa, estendi o braço à minha companhia com uma leve inclinação de cabeça, indicando sem volteios o sentido do convite. Ainda me encarou com seus enormes olhos verdes, explodindo, por fim, na risada.
- Você é ridículo...
E se agarrou com força ao meu braço.
Subimos calmamente a pequena escadaria entre os canteiros – rasgou-se o panorama de concreto e verde à nossa frente. Formidável, essa praça reformada! Nem uma só lembrança daquele estacionamento pichado, mijado, hostil e avesso ao bom convívio urbano. Só a base da polícia, que ainda é a mesma: os canteiros são limpos, não faltam bancos nem árvores. O espaço, antes largado e inabitável, havia sido finalmente ocupado, por amantes, esqueitistas, famílias, músicos – um convívio harmonioso, e até encantador.
Mas, caindo de nosso deleite contemplativo, nossos olhares tropeçaram numa massa sólida e convulsa. Destoando do ambiente de sábado e gozo, atrapalhando a rota dos esqueites e o silêncio voraz dos abraços, um sujeito em trapos grunhia e se contorcia junto ao chão, no que os leigos costumam apontar certas apavorantes e irreproduzíveis alucinações deslanchadas pelo craque, ou pela sede. Falava desordenadamente sobre a mãe, em cima da árvore, um cachorro, o senhor delegado – “não, eu sou amigo dele! eu sou!” – expressando em cada gesto um sofrimento incalculável, e incompreensível para todos nós, esquerdistas sabatinos. Não é que estivesse incomodando alguém, propriamente, no sentido corpóreo e interindividual do termo incomodar. Mas sua simples existência ali já era ofensiva, pesada, como se podia ler em alguns olhares e gestos, e no afastamento assustado de alguns casais.
Quando finalmente se virou para nós, senti circular em cada veia e em cada nervo uma pena dolorosa: seus olhos, pretos e avermelhados, cavados em enormes olheiras, por pouco não se reviravam, e escancaravam um estado de total e confuso desespero. De seu rosto saltavam feridas e marcas – e estava solto no mundo. Minha alma se rachou entre o êxtase de antes e a angústia daquele agora: não seria o caso de ajudar? Ligar para um hospital, um abrigo, algum centro...? Impossível era não fazer nada, fingir alguma absurda indiferença, o que os grunhidos esporádicos descartavam de antemão. Aflito e pesado, esqueci que junto ao meu braço e ao meu peito havia outra pessoa, com suas próprias impressões e desejos. Mas ao ver que um rapaz já se dirigia a um policial, apontando para o alucinado, me fiei desesperadamente àquela que me acompanhava, e cuja compreensão de meus anseios já havia chegado ao ponto de dispensar as palavras, ou de até mesmo adivinhá-las.
Lancei-lhe um olhar angustiado – e com que alívio encontrei a mesma aflição naquele verde lacrimoso, que se adiantou à fala com um aperto histérico em minha mão!
- Que horror, coitado...! Vamos embora, querido?
Ainda meditei um pouco sobre sua pergunta, enquanto um policial finalmente arrastava aquele desvairado para longe da praça nova, e do sábado sagrado. Depois de muito pensar acabei sugerindo a Vila Madalena – lugar onde, pretextando doença, sono ou dor de cabeça, poderia ir para casa, para não me encontrar nunca mais nem com ela, nem com seus olhos, nem com a minha própria, estúpida e incompetente consciência.

domingo, 5 de maio de 2013

Saudoso José




            Peço a licença dos eventuais leitores – se é que eles existem – para tratar neste fim de semana de coisa diversa das que costumam ter lugar aqui, nesta página. É que, pelo efeito ambíguo do costume, pode ser que estejam esperando alguma anedota pretensamente engraçada, construtiva, ou com manias de sentimentalismo – e hoje esta coluna estará mais para um obituário tedioso, ou um afetado panegírico: as duas possibilidades humanamente disponíveis para a estupidez incontornável da morte. Peço, então, àqueles que esperavam saborear uma comédia de costumes, para fuçarem em outros blogues, como os que recomendo na coluninha da esquerda, para depois não culparem eventualmente o autor por terem gastado o seu precioso tempo de internet com uma coisa assim tão chata.
            Começo e termino num velho boteco da Cônego Eugênio Leite, rua onde morei e moro com a graça de Santa Luzia já há vinte anos, dois dos quais num sobrado bem em cima do tal do boteco. Ainda nesses tempos – aos quais, não se tratassem de apenas cinco anos atrás, eu me referiria de alma cheia pelo nome de “tempos de juventude” –, nos meus vai-e-vens pelas esquinas, nas escapulidas para fumar longe do olhar de meu pai, ou nas simples batidas de perna pelo bairro, sempre percebia, na ânsia de uma nova convivência na rua velha, o mesmo circunspecto e barbado cidadão, invariavelmente sentado atrás das folhas do Estado de São Paulo ou da Gazeta de Pinheiros, com um maço de Free Light e, depois do meio-dia, uma garrafa de cerveja. Não me lembro exatamente por que ou quando, mas num dia de dureza, mendigando cigarro, demos finalmente para conversar – pela gentil intervenção de Seu Medeiros, o dono do boteco, talvez. O tal sujeito se chamava José Ibrahim – e eu passaria a chamá-lo de Zé.
            - Eu já sou aposentado – murmurou num tom grave, limpando a espuma de Brahma da barba grisalha, ao redor dos lábios grandes e frouxos, que projetavam seu rosto sério para baixo. – Mas ainda trabalho... com sindicalismo, essas coisas....
            E não era de ontem: desde os tempos do ronca e de Dom Pedro Cipó Pau... principalmente do pau, e do chumbo. Se metera em algumas greves – na famosa de Osasco de 68 –, e até na luta armada contra o regime militar; conhecia o então presidente em pessoa, velhos companheiros de greve. E até do sequestro...
            - Aquele do embaixador...?! – perguntei, desacreditado.
            - É. Do embaixador americano... mas eu não participei – desviou os olhos opacos para a rua ensolarada –, na verdade eu... tem um documentário, que fizeram, acho que ia te interessar.
            Hércules 56 – o avião militar com que fui, certa feita, a Manaus, e que tinha sido, como descobri pelo documentário, o mesmo avião, comprado da sucata norte-americana, que levou os 15 trocados pelo embaixador Charles Burke até o México. E de lá para Cuba... no vídeo, em uma sala escura com os ex-presos espalhados por sofás, o mesmo rosto moreno a que me habituara ver envelhecido, sério e barbado aparecia extremamente jovem, olhos vivos, devorando grandes bolhas de fumo de um charuto, oferecido pelo próprio Fidel Castro, que se sentava ao seu lado...
            Mal terminado o filme, ainda atônito com a confluência de dois séculos tomando cerveja ali na rua, desci rapidamente a escadaria do sobrado para o boteco, doido para encontrar aquele herói sobrevivente.
            - Mas Zé! Você tem história, hein?
            Ele se riu, o seu riso largo e astucioso, e passou mais uma tarde me contando dos seus tempos de luta. Depois descobri que não o conhecia de agora – na verdade, quando pequeno, brincava com seu filho, estudávamos na mesma escola e morávamos na mesma rua... onde ainda moravam. Mas aquela nova afinidade, mais espontânea, que só poderia surgir entre um senhor vivido e um jovem curioso, era muito mais sólida do que qualquer recordação.
            Conversávamos algumas tardes inteiras. E já não mais só sobre os anos de chumbo, o cenário pré-golpe; mas sobre as mudanças do bairro, sobre cigarros, sobre a atualidade brasileira. Ia muito a Brasília, tinha um cargo importante, estava sempre por dentro. Ainda nas presidenciais de 2010, ponderava de maneira acertada:
            - Não... enquanto o PT tiver o PMDB, ele governa. E como governa! – exagerava eu, exaltado, e meio nervoso diante das proporções históricas de minha companhia de mesa.
            - É Pedro... governar ele governa, mas o PMDB pra eleger a Dilma vai querer aumentar o pedaço do bolo. Quem vai governar nos próximos anos é na verdade o PMDB.
            Me opunha, conforme as possibilidades, num impulso talvez inconsciente de aumentar meu próprio tempo, politicamente disforme e confuso, ante aqueles que na minha imaginação ainda pareciam os anos mais instigantes e importantes da história brasileira. Mas eu era, como ainda sou, ingênuo e inexperiente demais, e as conversas de um sujeito com 40 anos de política acabavam sendo, apesar da cerveja, mais do que diálogos: verdadeiras aulas de história e política.
            Um dia demos para discutir marxismo – tema espinhoso para quem quer que seja, mas ainda mais para quem lutou por ele, em seu modelo político, e o viu se desmanchar vergonhosamente em menos de dez anos. Já exaltado por algumas cervejas, nos primeiros anos de faculdade, me pus a defender novas ideias, a renovação do marxismo, seu tempo estrutural, o fim do dinheiro, e outras enrolações. No começo da conversa, ele e seu amigo – um senhor gordo e grisalho, bastante bonachão, que viva fazendo gracejos para que eu lhe desse um chapéu igual ao meu – ainda me ouviam interessados, discutiam, traziam informações. Mas com o passar do papo, pelas suas expressões entediadas, quase aborrecidas, percebi que tinha finalmente me tornado o tipo do moleque petulante. Quando percebi ainda tentei mudar de assunto, falar de amenidades, mas já era tarde: havia estragado o humor daquele almoço.
            Assim como o de alguns outros... conforme a relação se aprofundara, nossas ideias mais específicas se mostravam cada vez mais incompatíveis. E depois desse episódio – não sei se por causa dele, ou se ele mesmo tinha sido consequência de alguma transformação – começamos a nos ver cada vez menos. E não à toa: de meu lado, faculdade e trabalhos começavam a tomar cada vez mais o tempo e a dedicação que, no colégio, eu dispensava à vida do bairro e à conversa com seus moradores. Já do lado dele, sua atuação sindical aumentou; passava semanas inteiras em Brasília, articulava uniões, já não estava sempre na mesma cadeira, atrás dos jornais com seu maço de Free.
Nos últimos dois anos, se nos encontrávamos, era de maneira fortuita e apressada. Tinha até mudado de bar – brigou com o seu Medeiros, foi para a rua de trás, imaginem. Só recentemente, um sábado em que eu por milagre não tinha aula, e que ele esperava por alguém no velho boteco da Cônego, foi que deu para conversarmos direito, quase à maneira das primeiras vezes, quer dizer... com aquela mesma leveza, compreensão e interesse mútuos, ainda que por outros assuntos. Quando seu amigo chegou, conforme nos despedíamos, me abraçou e apresentou, rindo como ri um avô:
            - Esse rapaz aqui – virou-se para mim – me deve uma fortuna em cigarros! Lembro dele ainda moleque, vivia duro, e o pai dele dava umas coças por ele fumar. Era eu que salvava a pele dele! E agora virou essa coisa...
            E me deu alguns tapas nas costas, num afluxo de nostalgia e bem-querer.
Depois desse dia só fui vê-lo ontem, no mesmo bar, quase na mesma mesa, mas de maneira completamente outra. Quem me chamou a atenção foi o seu Medeiros, apontando para uma folha de jornal, com uma foto dele, pregada no orelhão em frente – onde deve ficar alguns dias, tão conhecido ele era pela freguesia do bar e do bairro. Depois de sobreviver à tortura e ao exílio, faleceu, aos 66 anos, de enfarto fulminante, nesta quinta-feira, dois de maio. O meu consolo de não poder se despedir – quem aliás tem tal privilégio? – foi justamente a data e o local: ele ainda conseguiu participar de um último Primeiro de Maio, no campo de Bagatelle; e eu fiquei sabendo de sua morte sentado na mesma mesa em que fiquei sabendo de sua vida.

domingo, 28 de abril de 2013

Sala & Sapatos


Das adversidades da Música de Concerto em um país de clima subequatorial


Pobre do azarado que, brasileiro, deu para gostar de música clássica. E não falo da excentricidade, do papel de pedante, e nem da velhice precoce que a música de concerto via de regra acaba causando... Talvez pela sua suposta aversão aos nossos planaltos tropicais, mais afeitos ao batuque que à batuta – falso problema que qualquer Heitor desmentiria –, ou mesmo, como coaxam por aí certos nostálgicos da República do Café, pela ignorância incorrigível do Zé Povo; pela razão que for: a infelicidade não é menor. O acesso é pequeno, o preço, enorme e as dificuldades, aos cachos.
            Começo, no diletantismo permitido a um cronista, pelo problema das orquestras: vivem de baixos incentivos, e poucas são de repertório – um claro reflexo dos costumes, já que a rigor a sociedade só produz o que precisa... ainda que, felizmente, sigam sempre existindo, por este Brasil de meu Deus, inúmeros conjuntos militares, juvenis, carnavalescos e recreativos, zelando pela música orquestral sem qualquer petulância. Agora mesmo me lembro da Lira São-joanense, que se proclama a orquestra mais antiga do Brasil (séc. XVIII), da qual qualquer bom morador de São João Del Rey falará de peito cheio mesmo que, numa missa na matriz, dificilmente a tal da orquestra consiga orquestrar alguma coisa. A profissionalização do artista, ainda que via de regra roube a sua alma, no caso de um complexo musical com mais de cinquenta instrumentistas não é lá má ideia: é preciso que sejam organizados, talentosos, bem pagos e, principalmente, estejam a serviço da população...
Meta distante: talvez pela falta de uma educação geral propriamente erudita – contraposta à musicalidade quase inata do brasileiro –, aliada à alergia de povo das supracitadas rãs do café com leite, o fato é que sala de concerto neste país ainda é sinônimo de champanhota e pince-nez. Tanto no preço quanto no acesso e na imaginação. Contra o que alguns programas já estão batalhando, ainda que silenciosamente – lembro-me agora do Projeto Curumim, e da Sinfônica de Heliópolis, como exemplos. Já o acesso, pelo menos em São Paulo, sofre daquela velha ironia, tão amarga quanto tapuia, de estar ao mesmo tempo à mão de todos e de ninguém: o Municipal, o São Pedro, o Cultura Artística e a Sala São Paulo ficam bem no Centro, na área de maior circulação e diversidade social da metrópole, bem servida de metrô, de trem, de ônibus – e mesmo assim, ficassem essas salas no Shopping Cidade Jardim e o público seria basicamente o mesmo. Uma situação que o preço da entrada, mesmo não sendo extraordinariamente absurdo, tem lá a sua parte na manutenção.
            Naquela noite escaldante de novembro, ainda existia a possibilidade de arranjar convite a dez reais – o saudoso Ingresso da Hora, vendido a dez minutos do começo do espetáculo. Bastava esperar numa fila e, portanto, chegar meio cedo, pré-requisitos aparentemente cumpridos conforme eu saltava, empapado de suor, na Duque de Caxias com a Júlio Prestes, consultando instintivamente o relógio do celular.
            - 8:20 ! – suspirei, repousando os olhos na avenida frenética. As cortinas de aço entreabertas ainda mostravam frutas podres, cheirando forte no calor da noite; alguns cabos de rede, azuis e pretos, blusas e camisas; num galpão azul-bebê, um pastor esbravejava, apocalíptico, a uma plateia abarrotada, e junto à porta três coreanos pareciam discutir, na sua língua absurda; do outro lado, ao redor da trincheira farpada da antiga rodoviária, círculos cada vez mais histéricos se aglomeravam, no coletivismo egoísta do crack: um cenário totalmente dostoievskiano que se armava para a noite da Luz, conforme eu, entre o fascínio e a pressa, deslocava os olhos do celular para os ponteiros da torre, atravessando a fila de táxis que já se espremia, vomitando madames na esquina da Júlio Prestes com a decadente rua Mauá.
            Adentrei pelos arcos bem policiados da praça, ao som da lataria do Trem Metropolitano. Afobado, tropecei umas cinco vezes na minha própria sandália, já escorregadia pelo suor, e quase deixei o pé esquerdo pelo caminho. Só quando pisei firme sobre o estrado de madeira envernizada, na elegante antessala com a estátua de Eleazar de Carvalho, foi que me acalmei de fato com o horário: não se tratava de um concerto trivial, escolhido ao acaso para matar o tempo. Era coisa imperdível, a 5ª sinfonia de Mahler, o judeu convertido à fé católica, o último romântico das canções de Des Knaben Wunderhorn e o primeiro moderno da 9ª sinfonia, o modelo para Morte em Veneza no livro de Mann e no filme de Visconti, o compositor por quem consigo ter a mesma paixão e idolatria que tive, aos 14 anos, pelos Beatles. Aliás só por isso que havia chegado tão cedo, meia hora antes: normalmente me atraso, quando muito chego em cima da hora. Só aquela confluência entre paixão desvairada e oportunidade única para me fazer me adiantar, mesmo assim nem tanto: no subsolo, entre casais respeitáveis e jovens descolados (entre quem música clássica já está se tornando cool), já se avolumava uma pequena fila. Ao lado conversava um pequeno grupo de rapazes, simples e até maltrapilhos, com mochilas nas costas e a tiracolo. Os grandes estojos apoiados no chão denunciavam estudantes de música, e de fato: logo reconheci um deles.
            - Salve! – me enfiei, feliz da vida por não ter que esperar sozinho.
            Cumprimentamo-nos, e fui apresentado aos desconhecidos.
            - Hoje a coisa vai ser boa... – esfreguei as mãos, ansioso.
            - Ah vai! – concordou, presto, meu amigo, de índole igualmente mahleriana.
            - É... meio longo, né... – suspirou um violinista, ali mais por uma obrigação profissional do que por amor à arte, adepto que era, claramente, de obras mais ligeiras e mais palatáveis.
            - Ah, que é isso! – indignou-se o meu amigo mahleriano – Como é que você pode...
            E começou uma daquelas intermináveis conversas de músicos eruditos, às quais mesmo um amante sincero da arte, como eu, tem poucas chances de participar, seja por ignorância bruta, seja por falta de paciência. Acabei mais folheando uns papéis, lendo um folheto sobre o maestro convidado, e por fim, ao constatar um aumento na fila, interrompendo a apaixonada discussão:
            - É bom a gente se apressar.
            Pegaram suas coisas e nos mobilizamos. Mas no que fomos para o “L” da fila, separado pelas cordas, meu amigo pisou em falso e, apoiando no meu ombro, quase me derrubou junto com um violino, não fosse eu me apoiar em uma coluna. Recomposto, pediu desculpas e constatou:
            - Ah, os cadarços...
            Esperei educadamente que ele os amarrasse, conforme os outros já se adiantavam: se ajoelhou ao meu lado, entrançou as duas cordinhas meio puídas, e demorou o olhar um pouco sobre meus pés, admirado. Quando levantou, numa expressão entre riso e desespero, pôs a mão no meu ombro e disse:
            - Bicho... como é que você vai fazer...?
            - Com o quê? – não entendi.
            - Com esse chinelo... você sabe que...
            - Não é chinelo, é... – entendi numa paulada - Puta merda, não vão me deixar entrar...! – e bati a mão sonoramente na testa, com um misto de raiva de mim e do mundo. – Ah, não... porra, e agora, quê que eu faço?
            Meu amigo olhou no relógio, virou para mim num suspiro, e disse
            - Chora.
            E como a fila andasse, me lançou um olhar de impotente compaixão, e seguiu para comprar os ingressos. Bem, e eu...? Voltar pra casa seria avassalador: fazia pelo menos uns dois meses que eu queria ver aquele concerto, contava os dias, e ter ido até a Luz para uma broxada daquelas ia ser de morte. Mas de chinelo não iam me deixar entrar... só se eu...
            - Gabriel, espera. – me adiantei, decidido. – Compra pra mim também
            Ele ainda olhou para as minhas sandálias, mas resolveu não insistir, pegou meu dinheiro e comprou, sob o olhar de reprovação de alguns que achavam que eu tinha furado fila. Quando eu peguei meu ingresso e agradeci a caixa, o gorila de terno que ficava ao lado, com o rádio na mão, percebeu o que eu calçava e já me puxou pelo ombro:
            - Amigo, com esse chinelo aí você não entra não...
            - Chinelo não, grande, é sandália. E vem cá, que história é essa, de que não entro?
            - Norma da casa – respondeu, seco e importante, como se a norma fosse de Deus, e a tal da casa fosse dele. – Aqui é lugar de gente decente.
            - Ah, então sandália é indecente?! Desde quando! – era tão absurdo que eu não conseguia replicar. Mas respirei fundo. – Meu irmão, esse calor...!
            - Lá dentro tem ar condicionado – cortou, já sem paciência, ainda que se visse, no seu rosto melado de suor, embrulhado num paletó e numa gravata excessivamente justos, que a sua condição discordava do tal ar condicionado.
            Tentei argumentar mais algumas obviedades, sabendo que não tinha nada a perder, mas o gorila esgotou a paciência e acabou chamando o gerente, antes de chegar aos finalmentes da sua tediosa profissão, que tantas aventuras promete, mas que raramente consegue chegar ao clímax de encher um impertinente de porrada.
            - Pois não, em que posso ajudá-lo? – chegou, todo afetado, um gordinho de óculos, com um crachá de gerente.
            - É o seguinte, meu caro... – tentei enxergar o nome – ... meu caro Gérson. Gérson, eu frequento esse lugar já faz um bom tempo; gosto de música clássica, acho a sala de vocês ótima. Já tenho o convite pra hoje, e esperei como um louco pra ver esse concerto. Só que com esse calor, eu acabei usando isso daqui...
            Apontei para os meus pés sujos, mas antes que eu pudesse concluir, ele completou.
            - ... e agora não vai poder entrar. – cantarolou, num sorriso de falsa lamúria.
            - Então, isso é um absurdo!
            - São normas, sinto muito.
            - Mas...!
            - Olha só – e me puxou para um canto da bilheteria, onde, numa moldura dourada, pendia uma ficha com letras miúdas e enfáticas –: “É terminantemente proibida a entrada de pessoas sem camisa, sem... sem calças...? Hum?! Ah, de bermudas, de chinelos...
- Mas são sandálias... – arrisquei.
- “...de sandálias... ou qualquer outro calçado que não cubra os pés inteiramente”. Está vendo? É isso aí.
- Mas...
- É, eu sinto muito... – afetou compaixão. – Mas se você quiser pode encaminhar uma reclamação à diretoria neste endereço aqui, ó – e me estendeu um cartão. – Daí eles veem.
            E, sem nem um boa-noite, virou de costas e me deixou falando com o vento. Como o segurança ainda me olhasse feio, desisti de persegui-lo e exigir explicações mais cabais: a não ser que invadisse a sala, me enfiasse por uma janela ou chamasse o presidente da república, não iria conseguir entrar naquele concerto, do meu compositor favorito, que esperei por tanto tempo, por causa da porra da caralha do chinelo...
            - Sandália! – me corrigi, mentalmente.
            Era isso e ponto. Por causa de um invólucro para os pés, criado certamente na Europa ou em qualquer lugar bem longe do trópico de Capricórnio, eu, que só de sandália já morria de calor, não ia poder ouvir música... e qualquer tentativa de elucidação lógica da relação entre sapatos e concertos estaria condenada, ou ao fracasso, ou pelo menos à constatação clássica da vitória absoluta do surrealismo na vida prática no território brasileiro. Sem ânimo para discutir com quem quer que fosse, já consciente da inutilidade dos apelos, e da fatalidade da derrota, subi as escadarias rumo à porta por onde entrei, na pça. Júlio Prestes. Ia dar meu ingresso, chutar umas pedras e ir andando até a Estação da Luz.
            A mesma base móvel de polícia seguia junto à entrada, ao longe as mesmas multidões do crack se juntavam, abençoadas pelo Cristo do Liceu, e alguns comércios terminavam de fechar do outro lado da Duque de Caxias. Os táxis eram poucos: já eram cinco para as nove. Parei por um momento, cansado, xingando o gerente e o gorila de terno: paus mandados do caralho... é assim que se estraga uma noite de uma pessoa cuja vida já não é lá muito emocionante! Não iria em baladas, não encheria a cara, não jantaria em alguma Família Mancini. Tudo que eu queria era assistir a um concerto, e isso porque o preço me cabia: normalmente, essas apresentações são de cinquenta, cem, duzentos reais. E nem por isso deixam entrar de chinelo...
            - Sandália – me corrigi.
            Ao meu lado, dois senhores respeitáveis tragavam apressados os seus cigarros, quase bitucas, ante a iminência do segundo sinal. Exfumante, numa situação crítica como aquela, era a oportunidade para me render: pedi um cigarro, que me concederam, solícitos. Mas quando me entregavam o isqueiro, uma voz esganiçada e inoportuna se intrometeu.
            - Ô gente com licença boa noite aí, será que cês num têm um real aí pra mim interar um lanche?
            Me virei, depois de devolver o isqueiro, enquanto os dois se afastavam para dentro da Sala como que se ninguém tivesse dito nada: diante de mim tinha um ser esquelético, envolto em trapos de uma cor indefinida, outrora aparentemente branca, carregando uma mala rasgada, a tiracolo. O rosto, apesar de sujo, era claro e até gentil, confluindo para um par de olhos bastante vivos embora frenéticos, insolentes e até opacos.
            - Ô amigo, deixa eu ver aqui... – solidarizei-me, tirando a carteira. Mas quando abaixei os olhos para checar os trocados, reparei no chão para os sapatos do camarada indigente: um par razoavelmente grande de coisas que um dia se chamaram tênis, de cor igualmente indefinida. Cadarços desfiando, um rombo enorme do lado esquerdo: era um troço, como se diz. Mas era minha salvação.
            Na hora deixei os trocados de lado, saquei uma nota de dez e entoei a ladainha.
            - Amigo, eu ia te dar umas moedas, mas vou te fazer uma outra proposta: eu preciso muito, mas muito desse sapato aí seu. Te dou dez mangos por ele. Que tal?
            O sujeito arregalou os olhos numa expressão perplexa, criada, naturalmente, pela proposta mais inusitada que ele já tinha ouvido na vida: tinha conseguido arrancar os sapatos de uma fiação tombada na chuva, quase morrendo eletrocutado, e desde então estava com eles. Certa vez, no pregão do crack, tentou vender, mas não deu. Seus olhos faiscaram com a possibilidade da grana. Mas, usando o bom senso, percebeu que estava em posição de negociar.
            - Te dou por vinte.
            “Que pilantra!”, pensei, fuçando a carteira.
            - Só tenho quinze... – blefei olhando as notas, e mostrando o dinheiro com bazófia.
            - É nóis – emendou sem hesitar, e já ia pegando a grana quando eu recuei a mão.
            - Tira o tênis antes, que eu te dou.
            O sujeito me olhou fundo uns dois segundos, e começou a tirar o sapato. Um cheiro de chulé com lixo se insinuou levemente, mas, pensando no bem da arte, consegui ignorar. Mal colocou na minha frente, lhe estendi o dinheiro.
            - Muito obrigado – apertei, exaltado, a mão calosa e áspera do indigente.
            - Valeu irmão– entressorriu este, num gesto sincero mas nervoso.
            - Esse sujeito está incomodando o senhor? – rompeu feito um cavalo o segurança daquela entrada, já querendo defenestrar, rua Mauá abaixo, o pobre do mendigo que tinha salvo a minha noite.
            - Não não não! – intervim – Muito pelo contrário...
            E o sujeito, encolhido, partiu em paz para fumar seus vinte contos. Apressei-me a tirar as sandálias, enfiá-las de qualquer jeito na bolsa, e calçar aqueles trapos que tinha regateado. Fedia realmente um bocado – a chulé, mais do que a lixo –, mas não era nada insuportável. Só número, que era um pouco menor do que o meu. Orgulhoso do meu achado, louco para esfregar na cara do staff as minhas manobras, marchei, vitorioso e calçado, Sala São Paulo adentro, faltando dois minutos para o começo do concerto. Na bilheteria, o brutamontes e o gordinho ainda tentaram me barrar.
            - Onde é que o senhor...
            Apenas apontei, e os dois se calaram. O segurança ainda tentou se opor:
            - Mas está todo nojento...! Olha isso! Pegou aí na Cracolândia, né, seu puto!
            - Calma aí, chefia! O regulamento diz que o sapato tem que ser novo? – perguntei, ar de ingênuo. E enquanto ele pensava em alguma resposta, adentrei, mostrando o convite, sob os narizes torcidos com o mau cheiro dos casais aristocráticos, terrivelmente indignados, mas sem qualquer pretexto jurídico para expulsar de lá um vitorioso par de sapatos malcheirosos.

sábado, 20 de abril de 2013

O valsar do realejo


            Foi na feira da Benedito Calixto. Confesso que, como pinheirense inveterado, já faz algum tempo que parei de ir lá, de tão cara e tão lotada que foi ficando, perdendo sua identidade. Mas recentemente – acho que por causa dos discos de música clássica, pouco procurados e, portanto, de preço baixo – dei de passar lá de vez em quando. Andava eu pelo lado da Lisboa, desbravando as multidões bem vestidas com a ajuda dos cotovelos, ao passo em que os olhos se ocupavam, do outro lado da rua, de uma morena charmosa, quando dei de frente, quase na entrada da quadra do choro, com um curvo e cansado tocador de realejo.
            Verdadeiro pesadelo nostálgico: pele batida de sol, bigodes de escovão grisalho sujo, indeciso entre o branco natural e o preto desbotado de alguma tinta vagabunda, uma boina surrada na calvície e um par de olhos aquosos, transbordantes. Em meio àquela colmeia de jovens descolados, olhando os discos de samba e as bijuterias de coquinho, parecia um alienígena sem apelo, um perdido, uma verdadeira mercadoria sem graça.
            E ainda pior era o seu papagaio: tinha jeito de ter vivido o dobro ou o triplo do dono. Ainda que velho, este pelo menos conseguia girar a manivela com vigor e constância: já o papagaio nem se mexia, inútil e borocoxô, resumindo seus gestos num ou noutro passinho lateral, no poleiro gasto, enjaulado num amarelo torto e desbotado. Não tinha mais aquele verde exuberante, que enobrece os louros da terra: parecia um pombo doente, ou o bigode do dono, espetado e sujo, e não fosse ele guinchar, feito um alarme, volta-e-meia, poder-se-ia perguntar àquele senhor o que no mundo o teria levado a engaiolar um espanador pintado de verde.
            Desisti dos discos e da morena, engolida que foi subitamente na multidão, e fiquei parado, meio sem jeito, admirando o fantasma tristonho girar maquinalmente a manivela da valsa torta – uma representação fiel do passado que, dia após dia, sinto escapar dolorosamente entre os meus dedos. E enquanto isso o sábado seguia seu refluxo frenético, apontando objetos, regateando, desfrutando obstinada e obrigatoriamente o seu lazer de dia livre. Plantado como uma barraca, no meio do caminho, sem desgrudar os olhos, comecei a sentir que estava atrapalhando a valer, sendo gentil e progressivamente atropelado por uma dupla de casais, que me desviaram, olhando feio. Achei melhor ir para um canto, mas continuei por ali, enfeitiçado que estava por aquela valsa manca, por aquele inválido do tempo, por aquele papagaio deprimente. Passaram-se assim uns bons dez minutos, até a insistência do olhar se tornar invasiva, e o velho desconfiar. Ainda tentei disfarçar, jogando os olhos pelas mercadorias, mas mal ele mergulhou novamente no além, voltei a observá-lo: queria ver se alguém ia falar com ele; se alguém, de consciência ingênua e de ar fantasioso, ainda se dobrava ao som de uma valsinha – que “já vendeu tanta alegria”, na canção do Chico; e mais: queria ver se alguém, independentemente do interesse folclórico, realmente faria o voto de confiança de deixar aquele frango esverdeado ler, ou bicar, o seu suposto futuro.
            Mas não vinha ninguém: um ou outro ainda olhava, por mera curiosidade, fazia agrados ao papagaio. Mas, sentindo a antipatia da ave, logo se afastava. Por fim, resignado à minha própria curiosidade, somada a um asqueroso, incômodo e católico sentimento de pena, abri caminho do meu canto até o realejo, disposto a fazer uma pequena contribuição, puramente cristã, para a existência daqueles dois seres – ainda que custasse ler, sem a menor fé, a tal da minha sorte.
            - Boa tarde! – exclamei, meio sem jeito.
            - Boa! – respondeu, com educada simpatia.
            - Cróóóó! – resmungou o papagaio.
            - Eu queria... eu queria, meu amigo...
“Que o senhor fosse eterno”, gritava minha alma, mas tudo que saiu foi:
- Tirar a sorte....!
            - Pois não.
            Semiabriu rapidamente a gavetinha empenada sob a gaiola, e atacou a manivela com afinco – no que a valsinha, até então torta e monótona, cresceu frenética e diabólica, como num número de circo. Por fim o papagaio, entendendo o sinal, acordou da sua inerme apatia, inclinou o corpo para frente e bicou um papelzinho do compartimento esquerdo da gaveta – estendendo-o para mim, pescoço em sanfona num gesto de impaciência..
            - Pode pegar – sorriu o velho pelos bigodes.
            Delicadamente, arranquei o bilhetinho do bico da criatura, não sem medo de que me mordesse. Mas o pernóstico, mal viu seu dever cumprido, recuou o corpo num arrepio, e voltou ao seu estado de esnobe contemplação.
            Desdobrei, sem vontade, e li:
         
           Cuidado para não tropeçar
nas pedras que encontrar no caminho
           
Uma frase que, tirando o apelo drummoniano, transferido do passado para o horizonte de expectativas, pouco sugeria além do seu sentido trivial, de tão batida e esvaziada que é a pobre da metáfora. A não ser que pedras de fato passassem a aparecer no meu caminho, e eu, distraído que ando, corresse o risco de tropeçar em uma delas. Ou em várias... amassei novamente o augúrio, enfiando-o no bolso da camisa, por recordação e, também, por segurança – vai saber!...
Mas era o de menos: não tinha feito aquilo por simples carência ou por absurdo misticismo: foi pra travar algum contato com aquela figura ancestral, baluarte de um passado ameaçado, se arrastando na terra com um papagaio e um realejo, sempre na espera, quem sabe, do dia em que tudo finalmente irá para o inferno.
- Muito obrigado. Eu... fazia tempo que eu não via um realejo, sabe? Uma raridade... e moro aqui desde sempre... o senhor não vem aqui sempre, vem....?
- Sábado sim, sábado não...
- Uma raridade, uma verdadeira raridade – prossegui. – Não tem muitos realejos hoje em dia, não é?
- Só alguns...
- E... dá pra viver?
- Se dá?! É essa hora só, que é ruim... mais tarde chegam as crianças... em um dia faço um bom dinheiro.
- E é mesmo, é? – me espantei com a intromissão do dinheiro imundo na minha melancolia.
- Ah é! As pessoas querem ler a sorte delas... e tiram foto, mexem com o louro. É um bom negócio! Quer ver, ó – parou por um instante a musiquinha insistente, futucou no bolso do colete e tirou um chumaço de cartões, separando um. – Aqui, toma. Dá uma olhada pra você ver.
Peguei incrédulo o cartãozinho – desde quando tocador de realejo tem cartão de visitas! Aproximei-o da vista, contra o sol, e, ao lado de um papagaio feliz, porcamente desenhado, li:

Associação paulista dos tocadores de Realejo
Marco da Silva

E atrás telefone, endereço, e-mail e o escambau.
- Se você quiser procurar...! – continuou, retomando o lenga-lenga da manivela, conforme um respeitável casal se aproximava, com dois pimpolhos. – A gente organiza festa, casamento... debutante, e... como que é? aquele de judeu...
- Bar mitzvah? – perguntei, incrédulo
- É! Isso! Tudo isso aí a gente faz! E tem o programa de TV também, se interessar...
- Programa de TV?!
- É – confirmou, com orgulho e seriedade –, na Globo, todo dia de manhã. Tem um programa lá agora, eles tão acompanhando o trabalho da gente. Acho que é às nove. Dá uma olhada lá!
E passou a atender o casal dos pimpolhos, no mesmo ritual mecânico de acelerar a música do órgão, cutucar o papagaio e abrir a gavetinha. Sem nenhuma reação, tentando digerir aquilo tudo, fiquei observando o trabalho regulamentado do realejo, com associação paulista, horário na TV, talvez com CLT e participação no Programa do Jô. Como a multidão arrefecesse, e mais duas famílias se aproximassem do realejo, esbocei de ir embora. Mas lembrei que faltava pagar.
- Ô... seu Marco: muito obrigado, viu? Pela sorte... e quanto é que fica aí, o bilhetinho?
- Imagina... é dez reais – respondeu, distraído.
- Quanto?!
- Dez reais. – confirmou, com naturalidade.
- Pelo...
- É, ué, pela leitura da sorte. Tem que alimentar o bichinho.
E sorriu, apontando o papagaio esnobe, que acabava de tirar um papel para uma criança rosada. Sem ânimo para discutir, saquei uma arara do bolso, odiando a mim e às minhas convicções, e a estendi para o senhor dos bigodes.
- Não é pra mim não... É pra ele – debochou.
No que o presto papagaio, ligeiro para os negócios, mais uma vez se deslocou, arrancando num gesto bruto o último dinheiro que eu tinha e depositando-o na mesma gaveta, ao lado dos bilhetes da sorte.
            “É o preço da saudade”, murmurei amargamente, conforme me enfiava de novo na multidão, que acorria para o Chorinho da praça Benedito Calixto.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O sibitinho


            Sabemos o nome de tudo: marcas de desodorante, linhas de ônibus, músicos e bandas, editoras, companhias de seguro categorias de carros – ao passo em que ignoramos, sem vergonha nenhuma, o nome dos bichos e plantas da nossa própria cidade.
            Quem me fez pensar sobre esse dilema, numa conversa de bar sobre passarinhos, deixou transparecer em sua frase ironia e raiva, meio nostálgicas. Mas de minha parte, se não deixo de me entristecer, nem por isso acho menos compreensível: natural só sabermos do que precisamos, e infelizmente é pouco o papel que resta aos passarinhos na vida de São Paulo. E mesmo assim talvez esteja cometendo uma injustiça, afinal, pombo também é passarinho... mas fico pensando, nas esperas nos pontos de ônibus, quando invariavelmente dois ou mais desses pássaros obesos e desengonços ciscam alucinadamente os restos de coisas irreconhecíveis, se talvez também não existam inúmeras espécies e subespécies de ratos com asas, cada uma com sua particularidade, tamanha é proliferação destes seres na capital paulista. Tem uns que nascem com um pé só, outros inflam mais o peito, alguns conseguem viver de plástico...
            Mas quando o ônibus chega é fatal que eu me esqueça desses absurdos. São pombos, e ponto. São árvores, e ponto. Já os pontos de ônibus, bem, entre eles é preciso saber a diferença, sob o risco do atraso que se podia evitar. E assim seguimos a vida: às vezes reparamos em uma ou outra ave que nos parece inusitada, pela plumagem, pelo tamanho, ou pelo canto... quem já se deparou com um urubu, pesado e meditabundo, no alto de algum edifício, guarda certamente a impressão do encontro. Uma vez pude ver, entre amigos, em plena Teodoro Sampaio, um gavião carijó atacando os transeuntes embasbacados.
            Se por curiosidade científica ou por sensibilidade ultrapassada, o fato é que sempre gostei de aves. Cresci e ainda vivo, por alguma felicidade ecológico-filosófica, na esquina de um cemitério, onde se ajuntam o esplendor de uma área verde e o silêncio dos necrotérios: lugar perfeito para passarinhos. Desde pequeno, o voo dos periquitos, verde-verdinhos, sempre em bandos tagarelas, me anunciava, com o sino da igreja do Calvário, as seis horas da tarde. A chegada de outubro nunca se impôs pelos calendários, mas sim pela sanha dos sabiás, que só cantam (e como cantam!) nessa época do ano. Mesmo com a orquestra caótica das construções que pipocam diariamente, a maritaca da rua de trás ainda berra esganiçada, garantindo a audiência dos prédios ao redor. Sem contar os bem-te-vis, os pardaizinhos, as rolinhas, carne de vaca por toda a capital, por onde voam e cagam livremente, provando, dia após dia, aos lordes Byron rastafáris da contemporaneidade, que ninguém precisa ir até a Bahia para “curtir a natureza” – seja lá o que “curtir a natureza” signifique.
            Basta observar, não ser passivo – tarefa difícil. Eu mesmo só comecei a me interessar por estas criaturas maravilhosas há muito pouco tempo, e estou longe de poder dizer, com todo o dandismo das excentricidades conscientes, que sou alguma espécie de ornitólogo amador. Quem me dera... a vida prática me devora pelas pernas, e o tempo é escasso... o jeito que achei, ou melhor, venho achando, é inserir a observação na vida prática. Na USP, por exemplo, se encontram aves incríveis, a que se dá pouca atenção. E sempre que posso me desdobro para encaixar os passarinhos nas atividades triviais: desvio rotas, crio caminhos, ando sem pressa.
            Mas, numa feliz ironia, a rota acabou se invertendo. Durante a Semana Santa, trancafiado em casa, coberto de livros, trabalho e preguiça do mundo, eu me torturava com a revisão de artigos sobre economia política quando um assoviozinho borbulhante flutuou aos meus ouvidos, mais forte do que as serras e as britadeiras da construção de vinte andares. A princípio ignorei, achando ser uma porta rangendo, ou um alarme de carro, mas o agudo e a insistência me levaram, por fim, a me virar, irritadiço, já achando se tratar de alguma nova do vizinho – já bastasse a obra em plena Semana Santa para atrapalhar meu trabalho. Mas ao me deparar com o delinquente, vi que não podia discutir: pululando entre os borrões de rosa e verde da primavera da varanda, sobre a pequenina pitangueira envasada, uma criaturinha amarela e esvoaçante pululava entre galho e grade, ora bebericando nas flores brancas e rosadas, ora virando seu bico minúsculo e triangular para mim no que parecia, pelos meus parcos conhecimentos na língua dos piados, uma bronca furiosa.
            Achei engraçado, aquela coisinha com tanto despeito e impostura. Acabei deixando o trabalho por alguns instantes e fui ter com ela, no sofá, junto à varanda, sem muito cuidado, pouco ligando se o bichinho ia voar ou ia bancar a aproximação. E não é que bancou? Ainda estremeceu um pouco, ameaçou voar embora, mas acabou firme, passarinhando com ainda maior determinação, me encarando como se encara um déspota a quem se odeia, ou um professor que nos reprova.
            Até me assustei. Bicho valente! Aposto que se chegasse mais perto, me atacava, e mais, levava a melhor. Mas preferi fazer gesto de paz e, indo até a cozinha, separei um mamão velho num pires, e levei para ele, num gesto de boa fé. Me olhou desconfiado, meio por cima, mas depois de alguns instantes, convencido da vitória, resolveu aceitar a comida, por magnanimidade. Depois de comer todo o mamão, assoviou um muxoxo agradecido e foi embora, para o cemitério, provavelmente.
            Achei o causo divertido, mas dali a dois dias já tinha me esquecido. Quando, mais uma vez, quebrava a cabeça na revisão de um texto, ainda de pijamas e com uma xícara de café, surgiu novamente o camaradinha, na neblina luminosa de manhã bem cedo. Desta vez nos cumprimentamos com cordialidade, e admito que fiquei muito contente, em meio à pasmaceira dos artigos de economia política, em ver que o felpudinho amarelo não pecava pela ingratidão. Ouvi um pouco a sua ladainha piada, e fui buscar mais mamão. Como minha vó tomasse café, aproveitei...
            - Vó, vem cá, me diz uma coisa.
            A senhora se levantou e me acompanhou até a sala, sem muita paciência. Mas se enterneceu logo que viu o passarinho irreverente mordiscando o meio mamão.
            - Que bonitinho, Pedro...
            - É, não é? Sabe como chama? – perguntei, naquela certeza infantil de que nossos avós sabem tudo sobre as coisas que achamos bonitas, e que temos por mortas, já que o mundo errado em que nascemos há muito já as dispensava.
- Ih, meu filho... – ariscou a dúvida, mas seu olhar aquoso se iluminou, e, num sorriso mineiro e debochado, exclamou. – é um sibitinho!
- Um o quê?
- Um sibitinho, uai... – e se riu, voltando pra tomar café.
Então o passarinho amarelo, de máscara preta e branca, com o cocuruto vermelhinho, que nos visitava quase todo dia, era um sibitinho! Todo dia pela manhã tinha o seu mamão, proseava alguns minutos de assovio, dava uma cagadinha e depois ia embora para o cemitério, cuja vista agora um prédio tapa. E eu passei a reparar na quantidade enorme de sibitinhos em São Paulo: na esquina de casa, no Hospital das Clínicas, na USP, no Anhangabaú, em Santana... ave comum, esse sibitinho!
Nas perambulações pela Cidade Universitária, se havia aves mais bonitas, vistosas, delgadas e exuberantes, de qualquer maneira a que mais me alegrava era o tal do sibitinho, com seu piado florido, igual ao daqueles apitos d’água pra imitar passarinho. Sempre que estava entre amigos e aparecia um, não perdia a oportunidade:
- Olha, olha só!
- O quê?
- Aquele passarinho ali, ó?
- Hum, que é que tem?
- Sabe como chama?
- Eu? Não!
- É um sibitinho.
- Um o quê?!
E eu explicava, paciente, para os mais ignorantes, e com gigantesca alegria. É que essa coisa de pássaros acaba tornando a vida em São Paulo menos insuportável, mais humana, até mais lírica, se posso dizer assim. Uma ave é um animal fortuito: voa, canta, caga, e dorme cedo, às vezes brinca, pula-pulando pelos galhos de alguma árvore, e faz visitas irreverentes quando menos se espera, e mais se precisa. No que se incluem até os pombos, por mais sujos e bestas que eles sejam. No cotidiano maquinal da cidade, uma ave é uma metáfora para o direito à respiração, ao inútil, quando apreciada vulgarmente, em momentos de superfície aparentemente vazia.
Acabei levando a coisa tão a sério que, passeando os olhos num sebo, comprei um livro, não tão velho, cheio de ilustrações, com o nome Fauna silvestre – os animais da metrópole paulistana, ou qualquer coisa assim. Data de alguns anos atrás, e não sei quantas das espécies descritas no livro já não foram extintas, ou desabrigadas de suas casas, dada a velocidade sanguinária das transformações do espaço urbano. Mas independente disso: o catálogo de aves é impressionante. Se soubéssemos da ínfima parte dos passarinhos que vivem em São Paulo! Coisa inimaginável. Alguns, mais raros, habitam áreas específicas, o entorno da represa, o parque Tietê, a Água Branca... mas outros podem ser vistos quase em qualquer lugar. Caso do gavião carijó, por exemplo. Algumas corujas, pica-paus, garças, e...
- Epa! – sustei, por um instante, ao ver um retrato conhecido
Tinha o mesmo amarelo, a mesma máscara branca, o vermelhinho na cabeça... fiquei cismado, será que... como já era tarde, fui dormir, mas determinado. No dia seguinte mal acordei e fui tirar a teima: às nove horas, como de costume, o sibitinho apareceu, atrás do seu mamão. Peguei logo o livro, abri na página marcada e tirei a prova real: olhei uma, duas, três vezes. Sibitinho coisa nenhuma! Era um bentevizinho-penacho-vermelho.
- Ô vó! Vem cá!
- Pois não, meu filho.
- A senhora não disse que ele era um sibitinho? Olha só...
Mostrei o livro aberto para ela, com o desenho do bichinho empoleirado. Mas ela caiu na gargalhada.
- Eu estava brincando, meu filho! Você levou a sério, foi?
- Ué, levei...
- Eu lá sei o nome do passarinho! Sibitinho era como seu avô chamava tudo os passarinhos que ele não conhecia o nome... seu avô é um debochado!
Enxerguei o velho alagoano apontando pr’um pássaro qualquer e chamando de sibitinho, assim como, quando eu pequeno, dizia pr’eu comer formiga que fazia bem pra vista... e caí no riso, também. Como o bichinho ainda estivesse na varanda, aproveitei para lhe passar uma pequena ensaboada: ora seu salafrário... nem pra me dizer o seu nome de verdade! Que tipo de bem-te-vi que não grita a frase do nome! Isso já era malcaratismo...
O bichinho me olhou perplexo, resmungou um muxoxo assoviado e levantou voo, para o mesmo cemitério. E depois parou de aparecer. Achei a coincidência absurda, e não queria terminar esse texto com a ideia de que o passarinho teria se ofendido: depois que fui descobrir, o sibitinho vinha mais era por causa da primavera florida. Quando despetalou, não tinha mais razão de visita.
- Mas e o mamão? – perguntei, chateado, para minha avó.
- O mamão ele comia por delicadeza – e sorriu mineiramente.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Assim não tem como


Imagino cá com meus botões quantos escritores, ou pretensos, não deixaram de vez a pena e a tinta por não terem um lugar de trabalho, um cantinho íntimo em que pudessem passear com as ideias por uma folha em branco até enchê-la de letras, sem esbarrarem nos móveis ou serem engolidos por problemas prosaicos. Não que alguém ainda escreva com pena ou até com tinta: foi força de expressão. Se bem que descreva um problema real, ao menos para quem segue o caminho torto das linhas: às vezes, escrever com pena de ganso numa isolada torre de feudo seria melhor do que se meter no emaranhado de fios de uma máquina, num qualquer apartamento de nosso século.
          É que o computador e o Microsoft Word, apesar do inegável brilhantismo das inovações técnicas, têm em contrapartida seus pepinos particulares, para além dos pepinos clássicos; somando-se os dois, tem-se então a monstruosa fila dos engodos que perfazem o ofício de escritor, já por si bastante ingrato. Pois vejam: além do barulho pedregoso da Cardeal Arcoverde, além do cheiro estonteante da janta do vizinho, e além da vontade louca de sair sem mais nem menos e passar a tarde inteira no boteco, de quebra ainda tenho de aturar a impertinência das criações de Bill Gates, que insistem em questionar meu Firewall e mesmo a originalidade de meu produto – o qual, dizem, sendo pirata, comprometerá irreversivelmente a qualidade desta ou de qualquer crônica que através dele se produza.
E pior: a tentação do Facebook, piscando no canto inferior da tela. Isso é que é de matar. Bem sei que deveria, por comprometimento profissional, fechar tudo e me concentrar no que de fato importa. Mas como bom escritor não posso deixar de acusar uma conspiração: a mesa está bamba, já estou com fome e até a geringonça com que escrevo parece querer me atrapalhar – no fundo não passa de uma tela de tentações. E pra quê escrever quando se tem o Facebook? Ninguém escapa à generalizada ansiedade deste século: vivemos na expectativa, como se uma única mensagem pudesse alterar a rotação da terra em nossa quarta-feira – coisa que ainda pago para ver, acessando a minha página três vezes ao dia...
Aflito com a distração que o computador involuntariamente proporciona, cheguei num momento de crise até a pensar numa máquina de escrever - ideia claramente estúpida, mas que no desespero de inúmeras tardes improdutivas ganhou proporções de genialidade inaudita. “E por que não?”, pensava, “não precisa de energia, imprime enquanto escreve, não deve ser caro e é impossível se desconcentrar com babaquices”. Sem contar toda aquela áurea de escritor do século passado, fumando um cigarro num escritório em Copacabana – romantismo besta, mas, em se tratando de um jovem igualmente besta, bastante influente. Fui atrás de algumas lojas, pesquisei detalhes e por fim, obviamente, desisti, ao descobrir sobre fitas, tipos e outros artefatos arqueológicos de difícil aquisição. De fora, mesmo que dominasse esses artigos, fugindo assim das tentações da internet, restariam os problemas antigos, de qualquer maneira, já que não fumo, não vivo nos anos 50 e tampouco em Copacabana. No mundo dos vivos o vizinho continuaria cozinhando, a Cardeal continuaria barulhenta e a minha avó seguiria me interrompendo para falar alguma coisa sobre meias, demolindo inocentemente a frágil arquitetura de ideias que tento organizar numa qualquer narrativa. O que eu precisava mesmo era de alguma coisa móvel, portátil, simples e objetiva, sem firulas ou apetrechos, mas diretamente ligada ao registro do pensamento – a imediata ligação entre ideia e palavra escrita.
Foi depois de mais um dia estéril – corroborado pela ruidosa presença de um eletricista pançudo, na sala em que costumava trabalhar – que finalmente tive uma iluminação: saí pela Teodoro e fui direto à papelaria Bragança. Papel e caneta – pronto! Já devia ter sacado faz tempo. De que mais eu precisava? Senti que um horizonte novo, a um só tempo mais genuíno e ancestral, surgia na minha hipotética carreira, e não pelas coisas em si – não era nada que não tivesse em casa –, mas pelo simbolismo da ação, oficializado com a compra de uma Bic cristal e de um caderno Tamoio. Sem mais, sabendo da impossibilidade de escrever em casa, pela presença espaçosa do eletricista, e pela iminência da hora da novela de minha avó, fui para a Benedito Calixto na fixação de escrever um romance inteiro, ali, naquela única tarde – tamanha era a fé que depositava naquela caneta amarelo-azulada, e naquele caderno com o indiozinho sorridente.
Felizmente havia um banco vazio – nos outros, conversavam uns taxistas, um mendigo cochilava e dois namorados se engalfinhavam. Mas mal prestei atenção: me acomodei, rasguei o plástico do caderno com a ponta da caneta e abri numa página aleatória. Possuído e desorientado, rabisquei numa caligrafia apressada:
“Era uma tarde calma...”
E parei – a mão não queria seguir. Olhei em torno absurdado: a mesma cena de praça. Depois me voltei raivoso contra a linha: como assim, uma tarde calma? Calma para quem, e onde? Não fazia o menor o sentido! Um romance? Era com certeza o começo de romance mais estúpido, pobre e desinteressante que alguém jamais tinha arriscado.
Risquei com raiva aquelas quatro palavras, e me pus a tentar meditar em alguma coisa melhor – tarefa nada simples. Se não era calma, o que seria a tarde? Bem... “Era uma tarde tranquila...”, ah, ajuda muito. Meu Deus... melhor talvez desistir dessa ideia, deixar que evapore completamente da minha cabeça e daí começar do zero, sem compromisso com o cadáver do irreparável. Aflito, voltei a olhar a praça: os namorados tinham sumido; o mendigo terminava seu cochilo, coçando as costas; e os taxistas estavam tão compenetrados na conversa que nem viram a moça que se aproximou do ponto, na intenção de ir a algum lugar, e que ficou lá esperando. A conversa parecia realmente ser séria, densa, e até arriscada, talvez: um deles, com uma barbicha rala e óculos quadrados, olhava para os cantos o tempo todo, e estava claramente nervoso. Já o outro ouvia impassível, olhos no chão, fixos e melancólicos, até que alguma coisa fez com que os dois se perturbassem de maneira espalhafatosa, se ajeitassem no banco e começassem a buscar, inutilmente, disfarçar a conversa. É que chegava um terceiro homem...
E era essa a história, exatamente essa! A conversa sobre o apartamento, a corrida não paga – o atendente de verde–, e daí então finalmente... Segurei a caneta numa dificuldade trêmula, como se segurasse brasa, e não tinta. O desespero pelo achado me excitava, e pressionava a caneta excessivamente contra o papel – a ponta não fluía, se arrastando com o peso de mundos. Já não distinguia direito as linhas – o sol tinha se posto, e nenhuma luz fora acesa. Mas apesar de tudo, eu avançava, lentamente, mas avançava, tentando inutilmente alcançar a cadeia lógica de ideias que escapava num fluxo absurdo, conforme os dedos penavam ainda para pingar os ‘i’s da descrição da barbicha do primeiro taxista. E como que de propósito a caneta, novinha!, insistia em falhar maldosamente, nas curvas dos ‘l’s, nas pontuações... e eu teimando. Já não era possível parar, ainda que não entendesse a minha própria letra, a história continuaria; mesmo que a mão já doesse, por causa da força nervosa que empregava na caligrafia, mesmo assim haveria de...
- Ô irmão, com licença! Tem como cê me dá uma...
- Puta que o pariu! – explodi, chamando a atenção do taxista e de uns três passantes.
O indigente barbudo me olhou assustado, sem entender a desmesura da reação.
-Opa irmão, foi mal aí cara! Na humildade, eu só queria...
- Eu sei, eu sei... – murmurei apressado e confuso, procurando a carteira como que num gesto de desculpas – eu é que... toma, ó, e desculpa mesmo, viu. – e me virei, procurando algum lugar pra enterrar a cabeça.
Sem entender se eu era louco ou idiota, o sujeito vacilou o olhar entre eu e a nota de dez, agradeceu sem muita convicção e tratou de se despachar antes que eu pudesse mudar de ideia, ou ao menos olhar para a nota que tinha dado – coisa que, no nervosismo, não me dei ao trabalho de fazer, e que aliás pouco importava: o taxista tinha sumido, e as minhas anotações se resumiam a duas linhas e meia em que descrevia o banco e a barbicha. O lapso, obviamente, fora momentâneo, e a ideia fugiu com o indigente, para passar a dormir na rua, sem casa e sem dono.
Sem mais, faminto, frustrado e nervoso, larguei aquela praça dos diabos e tomei o caminho de casa, deixando a caneta e tudo. A gente bem que tenta, mas, ora, a vida! Quando não é o Word, é a carga da caneta; se não é minha avó, é o indigente; se não é a fome, é o Facebook. Quando, eu pergunto, quando é que essa profissão teve direito a um lugar no mundo, ao menos com a paz de que carece para organizar as ideias? Poderia continuar me servindo de idealismos, dizendo que há sessenta ou setenta anos atrás o mundo era outro, e que lá sim, o escritor e a sua máquina de escrever eram respeitados e admirados, ainda que através da forma mais simples de reconhecimento, que é o não atrapalhar. Mas já não posso concordar. Há setenta anos havia a guerra, imaginem! – e se escrevia. Há cinquenta faltava água, carne, e gás – e também se escrevia. Há quarenta havia censura... e por aí vai. Por que eu, capeta, não haveria de escrever por causa de uma pergunta impertinente, de uma rede social ou do cheiro de comida? Seria no mínimo uma desculpa esfarrapada, assim como a técnica. Por acaso não devo assumir as estruturas de meu tempo? Feliz ou infelizmente, é impossível voltar aos feudos e aos manuscritos em pena de ganso.
Sem mais, me sento às onze da noite de uma quinta-feira no quarto dos fundos de meu apartamento. Aqui é garantido – ninguém me atrapalhará, pelo menos até as duas, quando os funcionários da padaria ao lado chegarão para o trabalho, e hão de conversar em voz bem alta sobre as anedotas de suas vidas. Coisa que, bem sei, longe de me atrapalhar, me alimenta, mais do que qualquer janta preparada pelo vizinho. E até nisso eu me preparei: na escrivaninha, que tem pouco espaço, mas que me acompanha desde sempre, descansam um pires com bolachas e uma garrafa d’água - além do papel higiênico para rinites, o carregador para suprir a bateria e papel e caneta, para ideias avulsas, que não mereçam a tela. O quarto é módico e inacabado, a cadeira não me serve, a noite avança o meu cansaço, mas mesmo assim eu, abstração verbal, insisto, existindo através dos séculos que tentam me apagar das pedras, me roer dos livros e me deletar dos sites.
Mas falando em sites, alguém ficou de me mandar uma mensagem...