domingo, 29 de abril de 2012

Registro civil


A sala 928 aparentemente não existia, pelo menos no nono andar, o que o prefixo nove havia garantido num sistema mais ou menos lógico para a localização. “Nono andar – o primeiro número é sempre o andar”, tinha dito o senhor na saída do refeitório. Sem opções nem ressalvas, acreditei e fui para lá sem demora, onde girei por uns quinze minutos sem achar qualquer coisa que se assemelhasse ao 928. Quer dizer, somente um 927, sala obscura onde homens discutiam alto, e um 929, depósito trancado, sem qualquer indicação sobre auxílio ou emissão de documentos e registros para estrangeiros agora domiciliados na capital da Federação Russa, sob a responsabilidade legal e custódia da Universidade Estatal de Moscou. Sessão para Repúblicas Sul-Americanas.
         As outras salas eram ainda mais desnecessárias naquele momento. Apesar de que o passeio por todos aqueles corredores, num andar pouco frequentado pelos estudantes, não pudesse deixar de ser interessante, misterioso, solene: tapetes velhos e vermelhos forravam todo o piso de madeira sóbria, tendo por cima de si antigos móveis de igual madeira, telefones enormes, como que de filmes antigos, e também como de filmes os zeladores que neles se sentavam e copiavam com muita atenção algum pedaço de papel, vestidos de azul, vasta bigodeira. Por fim cansei-me, ao perceber, pelo mesmo quadro de uma paisagem verde com fios elétricos, que já tinha dado uma volta completa, e lembrando do caráter oficial e prático do assunto que tinha que resolver por lá, larguei o orgulho e o medo e perguntei a um zelador sobre a sala inexistente.
         O velho levantou os olhos para mim, e observou-me por alguns instantes. Depois apontou para uma saída estreita num canto escuro do corredor, sem dizer nada.
         Agradeci.
         O tal canto escuro, escondido, se abria para um outro saguão de tapetes vermelhos e quadros, representando a perfeita harmonia entre a terra russa e os progressos industriais soviéticos. Lá a luz já era um pouco melhor, entrando por três largas janelas que mostravam o pátio distante, coberto de neve, e uma vaga Moscou se sugerindo no horizonte e na bruma. É que quase não há grandes arranha-céus nessa cidade, logo, dos poucos, como a universidade, tudo se vê. À direita das janelas três salas silenciosas, sem identificação, insinuavam seu trabalho quieto e constante.
         Talvez uma delas fosse a 928.
         Bati na primeira... o ruído da madeira bateu surdo na extremidade da sala, e voltou num eco – foi minha única resposta. Ainda esperei um pouco, mas passei logo para a segunda porta. Mal foi eu bater que ela, mal fechada, cedeu com um rangido escandaloso, escancarando uma sala empoeirada com uma mesa larga ao fundo, e atrás um sujeito rabiscando alguns papéis, que ao me ver começou a avermelhar e levantou-se num instante. Perguntei nervoso e tímido se esse por acaso seria o departamento de auxílio ou emissão de documentos e registros para  estrangeiros agora domiciliados na capital da Federação Russa, sob a responsabilidade legal e custódia da Universidade Estatal de Moscou – Sessão de Repúblicas Sul-Americanas.
         - O quê?! Como?! Mais essa agora... É claro que não! ! Nem existe esse departamento! E mesmo se fosse, que despeito é esse todo de entrar sem bater?! Você devia era...
         Me desculpei e fechei a porta atrás de mim. Que lascada! Espero que não seja o reitor, ou qualquer pistolão da universidade. Apesar de ter dito que não existia tal departamento... não era possível, o zelador tinha indicado aquele lugar. E de fato ainda restava uma porta, em que, Deus que me ajude, bati. Dessa vez sem escândalo e sem silêncio:
         - Sim? Entre, por favor. – respondeu uma voz simpática de mulher.
         Esperava alguma grosseria súbita ou mesmo alguma armadilha fatal, mas a moça, de rosto claro e um sorriso leve, me olhava de trás da mesa do canto esquerdo com interesse e, assim entendi, disposição sincera para me ajudar.
         - Pois não?
         - Olá! Bem, eu...
         Expliquei o meu caso, com a língua eslava aos tropeços e encontrões. Aqui cabe resumi-lo de forma mais clara: são, via de regra, três os documentos básicos para tornar um estrangeiro, pela universidade, um indivíduo russo jurídico legal. Primeiro um cartão de estudante, emitido pela respectiva faculdade, sem o qual não se entra em lugar nenhum, nem no banheiro; depois vem a registração, documento federal de razão pública desconhecida, necessário uma e cada vez que o estrangeiro se encontra em uma cidade nova. É como uma prestação de contas ao governo sobre onde se vive e desde quando, e talvez por quê. Por fim vem a prescrição, segundo a qual se confirma e  oficializa  que o estudante tal a partir de tal e tal convênio com a universidade tal firmado no dia tantos de certo ano está oficialmente, de tal data àquel’outra, estudando aqui.
         E, quase me esquecia, ainda uma quarta e importantíssima documentação: no meu caso, já que moro no alojamento da  Universidade, há a autorização, dependente da total regularização dos outros três, mais um formulário, cópia da Registração e uma foto ¾ colorida não plastificada. E era justamente aí que a história  engrossava para o meu lado.
         Para adquirir esses documentos, bem... eis a epopeia do papel. Tudo se inicia com uma autorização provisória, por assim dizer a primeira fase, mas percorrendo cerca de dez ou vinte salas, falando com as pessoas certas, nos horários e dias de funcionamento adequados, com as devidas indicações, esse  papel pode se multiplicar em até outros sete, ou oito, se não me engano, de diversas cores e  tamanhos. Um espírito um pouco mais lúdico que o meu conseguiria fazer uma verdadeira coleção. Mas o objetivo final mesmo, para evitar problemas, é conseguir aqueles quatro que já descrevi. Digamos  que a fase em que eu me encontrava já era bem avançada, contando com metade dos documentos finais e engatilhado para os outros dois. Mas o terceiro, a Prescrição, estava tardando a chegar, e o provisório do quarto papel que me garantia a moradia estava prestes a expirar, me garantindo a incrível e real narrativa de um despejo de final de inverno no ex-país dos sovietes.
         - Você entende? – perguntei por fim à moça, que me ouvia com sincera atenção. – Este papel não chega de jeito nenhum, e já estão me cobrando no alojamento...
         -Ah, não se preocupe – sorriu ela, meigamente. – Olha só, pegue este papelzinho aqui – e me estendeu um formulário, que acabava de preencher e assinar -, e leve ele agora ao gabinete 177, no primeiro andar. Hoje é... quarta-feira, certo? Sim, ele funciona hoje. Mas corra, se não fecha! Leve esse papelzinho lá, fale que você passou por aqui. Seu documento vai ficar pronto até a semana que vem – disse, olhando um formulário enterrado numa das muitas gavetas do móvel. – Pode ficar tranquilo.
         Me desejou “tudo de bom”, e nos despedimos. Confesso que, apesar de não ser muito bonita, de sua profissão não ser das melhores e de eu não querer nem um pouco passar o resto de minha vida neste país, mesmo assim minha vontade sincera naquele momento era de pedi-la em casamento, ali mesmo, e confessar a história de meu amor delirante por ela, desde que havia me atendido com tanta meiguice e dedicação, no meio daquele pântano moral do funcionalismo da universidade etc. etc. Mas a obrigação me chamava, e era preciso correr.
         Dois elevadores – “Não, esse não para no primeiro andar”, “com licença”, tive de descer -, e o segundo finalmente me deixou no terreno conhecido do primeiro andar. Depois de atravessar os grandes saguões e esbarrar com estudantes desleixados e cidadãos respeitáveis já me encontrava novamente em terreno oficial. Mas pelo menos este não me era estranho – tinha passado por lá na minha chegada. Só não conseguia novamente achar o diabo da sala... da sala... qual sala mesmo?
- Ah, 177! - Olhei num papelzinho amassado que guardara no bolso da camisa. Passei por uma 175, é verdade, e também por uma 180, e mais adiante até uma 717, quer dizer, não, 117. Finalmente fui parar num saguãozinho, onde estudantes de diversas etnias se aglomeravam em filas mudas. O único ruído, para além do de máquinas e lápis, vinha de uma funcionária azeda, óculos grossos e batom carmim, que brigava com um chinês.
- O que é que você precisa, hein?! hein?! Só me aborrecer! Não vê quanta gente aqui esperando! Que diabo! Tá olhando o quê?!
Mas como o pobre do chinês não entendia quase ou absolutamente nada, e seguia com a mesma cara de súplica, com uma folha timbrada na mão feito caneca de esmola, a briga era tão injusta quanto estúpida. Por fim a mulher se deu conta  das dificuldades comunicativas, virou-lhe as costas e entrou numa sala no fundo, fechando a porta com barulho. Nesta, se lia “177”.
“Essa agora é boa...”, gelei, constatando no papelzinho amarrotado que o destino me reservara, junto à situação delicada, uma funcionária de mal-humor. Mas respirei fundo e me preparei para o ataque, dando só uns minutinhos para que, quem sabe, sua disposição se recompusesse ao menos para com os ocidentais, e para que eu mesmo tomasse alguma coragem e preparação linguística.
Me aproximei e bati na porta.
- Sim?! Pode entrar!
- Olá, com licença, eu, bem...
Ela já me olhava com impaciência. Mas não aquela impaciência brasileira, com as quais lidamos todos os dias, que faz questão de deixar muito claro àquele a quem se dirige o quão indesejável ele é, e o quão inúteis serão suas perguntas, gentilezas, esforços e invectivas, diante da rigidez soberana da má-vontade, praticamente uma maneira gentil de pedir para que suma dali o mais depressa possível. Aqui é uma impaciência cínica, que se diverte fleumaticamente a cada grosseria possível, que busca empecilhos a cada gesto de um interlocutor fragilizado, escravizado pela hierarquia do papel, e que faz da escrivaninha que nos separa praticamente um altar, e do burocrata, um sacerdote. Mas mesmo assim não me abalava: tinha respirado bem fundo.
- ... daí como não chega de jeito nenhum, eu, bem, me deram esse papelzinho aqui, e, hum, como eu preciso prolongar minha estadia, eu...
- Deixe-me ver.
Dei-lhe o papel e comecei uma prece.
- Hum... hum, hum. Hum? Ahã... – levantou os olhos para mim, e voltou para o papel – hum, ham. Coff, coff, ruff! – tossiu com força. - Huhum. Isso não está certo...
- Como não?
- Onde está a sua registração?
- Então, é o que eu tinha dito... não está pronta... mas na semana que vem com certeza já vai...
- Volte então na semana que vem – respondeu com aquele tom de presunção de uma resposta óbiva. Mas não desisti.
- Não tem como! Preciso renovar minha estadia pelo menos até sábado, entende?
Ela me lançou um olhar de impaciência, que respondi mantendo firmemente a minha cara de pobre coitado exigindo justiça. Até que ela finalmente cedeu, num suspiro de desgosto, e passou a organizar outros papéis. Esperei um pouco olhando para a mesa, onde uma quantidade inacreditável de formulários, aplicações, boletos, protocolos, petições, tabelas e outras criações do moderno estado-nação se distribuíam, entre carimbos, apontadores e grampeadores, num sentido obscuro ao visitante desavisado, mas necessário e diria até vital para o funcionamento do funcionalismo. “E depois na União Soviética faltava papel para fazer livros...!” pensei com amarga ironia.
Finalmente ela retirou  um formulário da quarta ou quinta gaveta, preencheu-o com uma caligrafia incompreensível e me entregou com outro suspiro de desgosto.
- Sala 179. Leve esse formulário lá.
- Ahã... isso fica onde?
- Aqui, em frente!
- E é só esse formulário mesmo?
Ela me olhou com ódio profundo, ao que agradeci e me levantei num dois. Felizmente dessa vez a coisa era simples: de fato a sala 179 ficava em frente. Lá fui até que bem recebido, mas levei um chá de cadeira, como as três funcionárias desse escritório conversassem acaloradamente sobre temas urgentes de suas vidas pessoais, e depois de me entregarem dois novos papéis me mandaram à sala 175, que ficava no fim do mesmo corredor. Embora não tão bem recebido, a sala 175 era agradável e não tive que esperar muito, já que a pobre da funcionária, seja porque trabalhasse sozinha ou porque não tivesse uma vida pessoal tão interessante, não tinha com quem ou sobre o quê falar, de modo que fui logo encaminhado para a sala 185. Mas dessa vez esqueci de perguntar onde ficava, e era do outro lado do prédio, o que me rendeu mais quinze minutos de perna batida até que resolvesse perguntar outra vez, achasse o lugar e trocasse todos os cinco ou seis formulários por um único papel, novo, de caligrafia compreensível e aspecto pomposo. E me encaminharam novamente para conhecida sala 177.
Entrei e cumprimentei a funcionária como se fôssemos amigos de infância.
- Quanto tempo! – arrisquei numa piada, tão bem recebida quanto uma cantada de pedreiro. Calei a boca e entreguei o papel, ao que ela logo se pôs a fuçar novamente nas pastas e gavetas atrás da minha ficha, até que, contrariando todas as expectativas, ao invés de outro formulário retirou um novo documento e se pôs a preenchê-lo.
- Não precisa mais trazer a registração. Você só tem que trazer depois uma fotografia, para que aí então eu possa... – murmurou num sorrisinho sádico.
- Eu já tenho – estraguei ingenuamente sua satisfação retirando de pronto uma fotinha amassada da carteira. Ela pegou, olhou com algum desprezo, mas logo colou no documento, retirou um carimbo da gaveta e, num gesto decidido e estrondoso de um finale, abençoou um papel até então prosaico com a marca divina do estado Russo, transmutando-o da água para o vinho em documento oficial.
- Aqui, pegue, por favor. Daqui a um mês você volta aqui para renová-lo.
Peguei o documento, agradeci com sinceridade e me retirei do gabinete, contendo a minha alegria até sair da zona dos escritórios. Quando finalmente me senti seguro tirei o documento do bolso, beijei-o e dei um pulo de alegria: não sei se por estupidez ou se por socialismo, mas o fato é que se esqueceram de me cobrar o aluguel.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O homem socialista

“Moscou não é Rússia”, dizem quase todos os russos que conheci por aqui, numa espécie de consolo. É verdade que a inexistência do artigo na língua russa pode gerar tanto o sentido de “Moscou não é Rússia” quanto “Moscou não é A Rússia”, mas no caso não importa muito: o principal é que há alguma esperança à pessoa educada e mais ou menos gentil que queira se relacionar com a população desse país. Porque se depender de Moscou, bem... estará perdido. Eu mesmo, nas situações mais corriqueiras, como ao entregar um casaco, pegar uma condução, esperar numa fila, já passei por desgostos mortais, daqueles que a gente se questiona o que está fazendo aqui e o que foi exatamente o que fez para merecer tanta grosseria.
No fundo cada um tem lá seu pecado, mas mesmo assim Moscou é cruel demais. Coisa de capital, dizem alguns, se lembrando do senso comum sobre Paris e mesmo sobre os jeitos bruscos do fluminense regular. Mas aqui não é só a cara feia nas situações corriqueiras, em que é realmente difícil e quase beatífico manter o bom humor, mas também nas mais simples e tranquilas, que até mesmo em São Paulo nos acostumamos a contar, se não com a gentileza, pelo menos com a cordialidade do outro ser humano. Mas o moscovita dispensa cordialidades: ele sabe o que quer, quando quer e como quer, e se por alguma razão esse objetivo final é atrapalhado, é óbvio que o outro ser humano é digno de desprezo. Na entrada dos metrôs, nas filas dos supermercados, nos restaurantes: é preciso estar sempre pronto para a guerra. Você talvez ignore o seu crime, mas o moscovita estressado de trás sabe muito bem como você atrapalha a vida dele. O único lado bom dessa incrível falta de paciência, que já deve imperar aqui há muitos anos, é que como todo mundo já se acostumou a receber patadas dia e noite ninguém mais se incomoda com nada. Sob o véu da impaciência, a paciência do moscovita é infinita. A grosseria não significa que ele te odeia: é a única forma que ele tem de se relacionar.
Estamos, eu e minha companheira brasileira, no monastério de Novodevitche, não muito longe da universidade. O monastério é realmente lindo, construído no século XVIII, e a primavera fez com que se tornasse um dos lugares mais agradáveis por onde já andei aqui – relva fresca, flores nascendo, passarinhos voltando, popes barbudos filosofando antes da missa... infelizmente, boa parte dos edifícios é fechado para a visitação. Inclusive uma torre enorme, gigantesca, onde ficam os sinos, e de onde certamente pode-se ter uma vista fenomenal da parte sul de Moscou. Que era fechado à visitação, bem, não havia dúvidas. Mas... quem sabe uma conversinha com a pessoa certa não ajudasse?
- Meu senhor, com licença... será que a gente não pode entrar ali naquela torre grande ali?
O guardinha só olhou para nossa cara, com um misto de desprezo e indiferença, respirou fundo e respondeu:
- Ali é a torre do sino. O senhor é sineiro?
- Pelo que eu sei, não
- Então. Não.
Eis uma forma original de dizer não. E o passeio acabou ali mesmo.

Agora estamos na condução pública. É difícil, quase impossível, explicar num único texto todas as vicissitudes do transporte público terrestre dessa cidade, até porque eu mesmo quase não o uso, a não ser no pequeno trecho que separa a estação de metrô do alojamento em que moro. Cabe apenas dizer: confuso, como o próprio trânsito. E assim sendo é natural que se pergunte de vez em quando ao motorista qual o trajeto do ônibus, se passa no lugar tal, enfim. Mas essas coisas, a meu ver, exigem um mínimo de educação e respeito que o moscovita médio, aparentemente, desconhece.
Entra uma moça cheia de dengos no ônibus, salto alto, bolsa enorme, a típica boneca, e se dirige ao motorista, com a mais irritante das vozes.
- Por favor, esse ônibus passa no prédio central da universidade?
Cabe explicar que o motorista é separado do convívio público por uma grossa parede de vidro, na qual abre uma pequena janelinha somente para pegar dinheiro e dar bilhetes. O sonolento motorista, atrás de espessos bigodes, vendo que alguém se dirigia a sua pessoa não com dinheiro mas com perguntas, pôs-se a abrir a janelinha para tentar escutar. Mas a moça era implacável.
- Por favor, eu disse, esse ônibus passa ou não passa no prédio central da universidade?
- Ehn? – resmungou o motorista de lá de dentro
- Passa na universidade?! É já a terceira vez que eu pergunto, vou ter que perguntar mais outra? A pergunta é difícil?!
Na porta, estava tudo escrito até que com clareza, sem o que eu mesmo nem teria entrado naquele ônibus – eu ia para lá também. O motorista não perdeu a chance.
- Tenha a bondade, a senhorita sabe ler?
- Ehn?
- Está tudo escrito na porta. Não se dirija ao motorista.
E fechou a janelinha. Cutuquei a moça e expliquei que sim, passava. Com pena da gente dessa cidade, tentei contar quantos dias ainda tinha até minha passagem de volta.

Na fila do refeitório, cinco sujeitos se intrometem na minha frente sem dizer nada, e quando eu reclamo, me xingam. Depois uma moça me olha feio quando eu finalmente consigo sentar numa mesa suja de canto, porque aparentemente ela tinha visto primeiro. Quando tento ser gentil, claro, sem ceder nem um dedo o meu suado lugarzinho, ela vira as costas e ri com a amiga da minha cara. Ai no elevador, enfurnado entre mais dez pessoas, sufocado com a abundância de perfumes com que as russas se banham toda manhã e a abundância de suor que os russos emitem naturalmente, percebo com desespero o meu andar se aproximando. E eu no fundo do elevador.
- Com licença, posso passar?
- Pode tentar.
Armei meu cotovelo como um broquel, e abri caminho nas selvagens terras do elevador eslavo. Mas ainda assim fui pedindo desculpas, que eram recebidas com a maior das indiferenças.

“A solução é fazer como eles”, pensei certa tarde, depois de quase levar uma portada na entrada do metrô, num dia particularmente ruim. “Pelo menos enquanto eu tiver que sobreviver nesse lugar”.

Antes do teatro, passo na chapelaria para deixar meu casaco. Ninguém me perguntou se eu de fato quero deixá-lo lá – são as regras, é assim em todo canto, embora eu mesmo preferisse, talvez, carregá-lo comigo para o balcão. Já sabia de antemão que meu casaco não tem com que se pendurar, fonte de constantes aborrecimentos em teatros, já que os malacos das chapelarias sempre cobram vinte rublos pelo aluguel do cabide. Mas nesse dia, seja porque não tivesse vinte rublos, seja porque estivesse afim de confusão, fui de cara explicando.
- Não precisa de cabide.
- Como? – olhou uma velha enrugada feito uma meia, com uma voz roufenha e desagradável.
- Cabide, não precisa, ok?
- Sei, não precisa, e como é que eu penduro isso daqui, ein?
- Muito simples – respirei fundo -, é só pendurar. Você pega, faz assim e – pronto! Está pendurado. Quer que eu te mostre?
- Por favor – respondeu a velha com raiva, e abriu a cancela da chapelaria.
Entrei, peguei meu casaco, olhei pelo número onde devia pendurá-lo e pendurei-o, segundo as minhas próprias explicações. Depois agradeci e fui ao espetáculo, temendo somente encontrar um pote de graxa derramado no meu bolso quando voltasse para buscá-lo. Mas não só não achei graxa como, percebi, fui tratado com mil vezes mais amabilidade, respeito, até, diria, do que quando cheguei. “É assim que eles se entendem!” Fui pensando, no bonde. E depois pus-me a contar novamente os dias até minha partida, se não da Rússia, ao menos de Moscou, nem que fosse para ir à cidade ao lado, ou qualquer lugar de alma um pouco mais socialista, nessa pequena fraternidade das situações cotidianas, que se não abole a miséria, a fome e o trabalho mecânico, pelo menos colore com tons humanos o vazio das situações corriqueiras, das quais muitos já saem para o alcoolismo, o suicídio ou para a total indiferença.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Guerras patrióticas


Os dois museus se localizam, por clara e, pode-se dizer, justa insinuação, junto à estação de metrô Parque da Vitória, principal atrativo da região. E apesar do tempo bom ter permitido uma agradável caminhada, não foram as árvores, crescendo de novo, nem as crianças de patinete o sentido de meu  passeio.
         O primeiro se localiza justamente na praça 1812, e foi o único em que entrei, pelo tempo de que dispunha e por um interesse especial nestas primeiras décadas do séc. XIX. A construção é moderna, parece que data do período soviético, e leva o nome da batalha decisiva contra as tropas de Napoleão – Borodino. Há uns versos formidáveis de Lérmontov sobre a batalha, mas ainda não tive paciência para os traduzir. E eles propriamente não importam: o ponto é que um romântico como Lérmontov e o socialismo soviético julgaram indispensável a celebração dessa vitória, lembrada vagamente pelo Ocidente em geral.
         Em Lérmontov a coisa é mais clara: a busca do romantismo pelos fundamentos nacionais, o sentido narrativo da História e de seu herói, o povo, a glória dos tempos passados no marasmo pós Congresso de Viena, etc. A vitória da Rússia contra Napoleão, que tem como data decisiva o ano de 1812, foi fundamental para a afirmação desse então império junto ao concerto dos estados europeus. De estado distante, desconhecido e bárbaro, passou ao primeiro plano das potências ocidentais. E mais: determinou todo o futuro deste dito concerto de estados, já que a paúra contrarrevolucionária triunfante teve sua salvação justamente em Moscou. Se a Polônia desapareceu, se a Prússia ganhou influência sobre a Europa Central, se a Áustria se restabeleceu etc. etc. tudo isso foi em grande parte encabeçado daqui do Leste, inclusive a tal da Santa Aliança, arquirreacionária coalisão de forças.
         Por isso é até engraçado que os soviéticos tenham decidido homenagear essa vitória. Quer dizer, engraçado mas compreensível, tendo-se em vista as tendências claramente nacionalistas que o socialismo ironicamente tomou ao longo do século XX. Inclusive há certa anedota, de que nos anos 60, quando resolveu-se traduzir e editar as obras completas de Marx e Engels em russo (um verdadeiro fenômeno para o centro mundial do socialismo), e gastou-se uma fortuna na compra de arquivos e financiamento de pesquisas minuciosas, deixou-se intencionalmente uma obra de fora: “A política externa da Rússia tzarista”, não sei ao certo a data. E é compreensível: as ácidas tintas com que o velho Marx pintou a maior potência reacionária da Europa pós Napoleônica, com aquela sua capacidade notável de síntese e sarcasmo, poderiam ofender os ânimos de alguns patriotas, mesmo os menos exaltados.
         De fora, pouco se pode falar sobre o museu propriamente dito. Além do painel da fachada, muito bonito, em mosaico, com representações do incêndio de Moscou e da expulsão dos franceses, segue a mesma lamentável receita do empilhamento de tralhas sob o critério cronológico, mas com o ainda mais lamentável diferencial, a título de descontração, de um sujeito vestido de soldado-fofão (com uma gigantesca e assustadora cabeça) e uma enorme e tediosa reprodução de um panorama da batalha de Borodino, onde, de quebra, por ficar num ponto mais alto do museu, fazia um calor desagradável. Tinha umas panelas largadas pelos cantos, uma cabana desmoronando, com direito até a luzinhas vermelhas, fazendo-se convincentemente de brasas. Tudo bem, confesso já ser velho demais para essas coisas, e alguma criança pode ter se encantado com o soldado fofinho e sorridente que por um salário, creio, medíocre, equilibrava a cabeça enorme no salão principal. Mas não posso deixar de me frustrar com a falta de critério predominante nos museus históricos: um monte de retratos de figurões desconhecidos, armas e pistolas dos tempos de dom João Pamparra e dom Pedro Cipó-Pau, alguns mapas para localização dos fenômenos e essas lamentáveis reproduções de cenas “históricas”. Lá o que se salvava eram algumas caricaturas da época, que infelizmente eram poucas, e alguns quadros relevantes à história da representação da batalha. Mas mesmo assim... dar um museu a uma batalha já é duvidoso. E de fora: tenho a impressão que os museus históricos, em relação aos seus primos museus de arte, já são completamente antiquados e descompassados com os seus propósitos. A história, como narrativa e investigação, carece de critérios. E sem esses critérios o tempo não se explica, parece simplesmente o fruto dos relógios e das coincidências. Os museus históricos deveriam tentar acompanhar as pesquisas e tendências acadêmicas, através da curadoria, organizando materiais que se relacionassem num sentido maior, para além do pitoresco ou do anedótico: o narrativo. Mas fica valendo, pelo menos, a narrativa de um domingo turístico, de tempo bom, mas abafado.
         E 130 anos depois, quer dizer, uma hora depois, passeando já pelo Parque da Vitória, eis que me deparo com mais outros inúmeros monumentos e lembranças de uma outra guerra, em que mais outra vez a Rússia determinou a organização de toda a Europa. É curioso pensar como a Segunda Guerra Mundial, aqui chamada “Grande Guerra Patriótica”, teve sua origem fundamental na Primeira Grande Guerra, e desta destrinchar o aparente absurdo de que um único assassinato político na Bósnia tenha culminado em duas guerras monstruosas, que alguns historiadores mais ousados já denominam “A Guerra dos 30 anos do séc. XX”, a meu ver com muita razão. Mas o curioso: outra vez o Leste, o “Vespeiro Balcânico”, e quando tudo se desenvolveu na Segunda Grande Guerra, outra vez a cartada final foi lançada de Moscou. Não entrei no museu nesta ocasião e portanto não vou falar dele, nem dos grandiosos monumentos que o cercam, nem do obelisco, com inscrições dos nomes dos grandes cercos, e que tem um centímetro de altura para cada dia de guerra.
O que pretendo com essas observações? Não aquela amargura clássica das discussões da Guerra Fria, não crescer um comunismo defunto ante o tão abundante quanto enjoativo material norte-americano sobre os triunfos yankees contra o fascismo. Mas deixar no ar o papel do Leste na história do Ocidente, e mais, não só o Leste, mas tentar pensar o papel do mundo na história da Europa. Desde questões coloniais – a Revolução Americana, a partilha da África, etc. -, até a recente Guerra Fria – Revolução Cubana, guerra do Vietnã, etc. E também tentar pensar o papel da Rússia, essa Rússia que mais de uma vez determinou a política europeia, na confusa situação internacional nos dias de hoje, dias de aparente liberdade e democracia, de estados soberanos, de novas potências, de paz europeia. Dará as cartas mais uma vez? E que diabos de cartas são essas as de nossos tempos? Não tenho pretensões a uma resposta definitiva. Eu, de minha parte, acabei o domingo passeando no parque, tomando um sorvete, e depois voltei para casa e continuei lendo meu Hobsbawn.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ode à temperatura positiva


         O ideal mesmo seria escrever em alguma forma grandiloquente, majestosa, forte, que pudesse exprimir em todos os seus aspectos a divindade da temperatura positiva. Talvez um soneto, pensei, mas o pobre do soneto anda tão antiquado, que talvez soasse irônico. E meu sentimento é sincero. De fora, é tão difícil escrever um soneto... uma ode! Já que o título saiu desse jeito, não seria mal se esforçar para... não, impossível, eu mesmo nem sei como se faz uma ode. O título fica a título de pura alegoria e homenagem. E colocar “homenagem” como título seria formal demais, acabaria saindo uma nota, facilmente compreendida e, portanto, sem as proporções e a seriedade que o tema realmente exige. Já sei: uma epopeia, uma verdadeira epopeia, solene, grandiosa e simples, com todos os mais fundamentais aspectos dessa aventura climática que... ora pílulas, de onde tirar versos para uma epopeia? E um herói, então? Certamente não será o termômetro. E muito menos eu mesmo, que ainda estou aqui atravancado nessa guerra de Troia, sem parceiros aparentes e pior, sem histórias para contar. A única solução que me restou foi o bom e velho verso branco, sem grandes compromissos formais ou melódicos, simples, expressivo, e que cá entre nós me agrada bastante. Mas mesmo o verso branco... ah, não, não vou fazer a poesia de capacho para as minhas impressões mesquinhas. A poesia é grande demais para qualquer impressão efêmera, leviana, e se os ditos poetas conseguem fazer dos botões de uma calça alexandrinos perfeitos, é porque há realmente qualquer coisa de infinito e, vá lá, de alexandrino nos botões das calças.
 Não sou poeta e estou de cueca. O tempo finalmente melhora, é preciso escrever sobre ele. Vá lá, uma crônica talvez dê conta do recado.
Não se trata simplesmente do sol; às vezes, quando esse aparecia sobre a desagradável temperatura de menos 7 graus para baixo, apesar de melhorar o humor igualmente desagradável dessa população do norte, e claro, o meu próprio e desesperado humor, conseguia por incrível que pareça apenas piorar a situação: o vento engrossava, o frio soava cínico sob a luminosidade gentil, e algum ingênuo latino-americano como eu poderia se enganar (como de fato me enganei) e, pela fórmula tradicional dos trópicos, julgar a palavra sol algum sinônimo da expressão bom tempo. E daí as suas consequências, como sair de bom humor e levar uma patada na rua, ou sair de roupas leves e ganhar um resfriado. Nem todo sol é aquele em que se pode “rever-te sob o sol de tropical”. Aqui o próprio sol se agasalhava decentemente quando resolvia sair na rua.
Mas agora não tem erro: é chegada a primavera. Quer dizer, espero que assim fique, e que também esse texto não se torne amanhã fruto de uma leviandade desesperada, pronta para se abrir em alegria ao menor sinal de um tempo amistoso - 16 graus positivos! Diz um provérbio russo, que poderia se encaixar ao nosso outono: a primavera engana.  Mas se amanhã isso se revelar uma estupidez, caro leitor, saiba que, por puro orgulho, não vou desmentir essas esperançosas palavras, e que pelo menos do outro lado do globo passem a pensar que aqui tudo vai bem, pelo menos no tocante a questões climáticas.
Mas mal, muito mal, notícias de jornal, etc. Não basta que pensem, preciso sentir o tal do calor e andar na rua sem medo ou capote, sem as tradicionais três camadas de vestimenta que até agora me obrigaram a acordar uma hora mais cedo para conseguir me vestir decentemente. Pois que valha a impressão do dia de hoje: roupas leves, rostos mais leves. A neve já desapareceu de todos os cantos da universidade, e, ao que me parece, também de todas as ruas. Se isso foi serviço do tempo, ou dos caucasianos que ganham uma merreca pra varrer a neve da rua, são questões que agora não me preocupam. A minha atual impressão é ótima: de lá de baixo, apesar de serem já quase onze horas da noite de uma arquetípica segunda-feira, alguns russos jogam alegremente futebol. Gostaria de estar inspirado por algum espírito da raça e descer, jogar bola com eles, dar uma lição na nossa arte, como se esta fosse embutida nos meus pés pelo simples fato de ter nascido na América do Sul. Mas não sou boleiro e estou com preguiça. O mais provável seria que eles mesmos me dessem uma sova e de quebra eu ainda colaborasse ao vil desmerecimento de nosso país no estrangeiro, estragando nossa majestosa fama no futebol e afastando possíveis turistas na próxima copa. Portanto aqui fico, escrevendo sobre o tempo e suas implicações culturais.
O nosso verão em relação ao norte é eterno. Realmente desconhecemos o sentido da palavra inverno, e de seu correlato inferno. Cá entre nós, graças a Deus, ou a Dom Manuel, é preciso pensar. Mas ao menos aqui semelhante desgraça climática permite ao observador estrangeiro o espetáculo da transformação diária da realidade, em virtude dos termômetros. Mais gente, muito mais gente agora se aventura a sair de casa, ocupar as ruas, os parques, as praças, até porque agora há efetivamente um espaço a ser ocupado, aquele que antes se resumia a gigantescos montes de neve suja. E pode ser que seja somente a minha impressão pessoal, de quem hoje pela primeira vez na sua vida em Moscou ouviu um “obrigado” por dar licença ao carrinho de alguém no supermecado. Tudo bem que foi um “obrigado” baixinho, quase imperceptível, discreto, mas minha alegria foi tamanha que sinto certa pena em desmerecê-lo. Já nem me lembro direito como funcionam essas coisas em São Paulo, cidade, cá entre nós, também das mais mal-educadas, junto com a gloriosa cidade do Rio. Mas como lá en los trópicos muy queridos faz sol o ano inteiro, nunca pude observar como o passar dos meses influencia esses costumes. Quer dizer, sei que ao sábado à noite a educação não é das melhores, e de terça ao fim da tarde alguém na rua é bem capaz de te assassinar se você não der passagem na hora. Se a temperatura influencia nessas coisas, bem, daqui não posso afirmar.
Mas que a vida é melhor nas nossas condições, por Deus, como é! Sair na rua sem medo ou preguiça, poder ficar parado, esperando, ou simplesmente andar sem rumo até que o próximo compromisso se faça sentir, ficar estirado ao sol feito uma lagartixa... e outras bênçãos da vida ao sul do Equador. Se isso só depende da temperatura, repito, é questão difícil que não me compete. Pelo menos por aqui a relação pode ser determinada quase que diretamente. Mais do que a Revolução Socialista, mais do que a vitória contra os nazistas, mais do que a abertura da cortina de ferro, essa mudança anual de todas as condições de vida merece ser comemorada. Infelizmente, o povo daqui não percebe, pra eles é normal. Um ou outro escreveu alguma coisa sobre a primavera, Maiakóvski, Stravinski, enfim... a cidade trabalha indiferente, os compromissos são os mesmos, os trens passam nos mesmos intervalos, o fuso-horário marcha lento e firme na estrada da produtividade. Mas eu não pude passar batido: pois viva a temperatura positiva!

domingo, 15 de abril de 2012

Pelos canos

 
É claro que tinha de ser justo quando resolvi sair para fumar. Estava sentado nos degraus da escadaria, junto ao cinzeiro, pensando na vida, quando o fuzuê que se formava no corredor se fez ouvir e eu, com a alegria dos fumantes curiosos entediados, fui logo ver.
         Mas foi só bater o olho para que a alegria se desfizesse: o tal do fuzuê era bem na minha porta, e, ao me ver, o então guarda do sétimo andar, que já estava por lá, preocupado, junto a um outro guarda que eu não conhecia, acenou para que eu me aproximasse. Despedi-me do cigarro e dos outros fumantes e fui, reclamando. E de fato, no quarto, me esperava uma cena desagradável: meu vizinho, alemão digno do título, olhos claros, loiro, somente de cuecas, fazendo jus ao sábado, olhava perplexo para os dois guardas preocupados, que perguntavam com impaciência o quê se passava, ignorantes do fato de ele ignorar a língua russa, os três juntos formando uma admirável conversa entre um surdo e dois cegos. Não fosse a imensa poça d’água que ficava entre eles a incompreensão seria completa, mas a situação se explicava nos fatos: a água da pia escorria lenta e cruelmente, numa cascata que sem mais opções acabou desembocando na própria sala, formando uma espécie de Mar Cáspio nos territórios de Moscou, infiltrando pelo soalho e finalmente alcançando o sexto andar.
         - Reclamaram agora há pouco – me explicou, com calma, Sacha, o guarda do sétimo andar. - Sabe o que foi que ele fez? – e apontou para o perplexo alemão de cuecas.
         - O que houve? Por quê essa água toda?! Até lá embaixo está vazando! – disse o outro guarda, com bem menos paciência.
         - Eu vou ver, ah, bem, ele não entende russo. – expliquei na dita língua, e numa manobra mental me voltei em inglês para a figura. – Que porra é essa?
         - Eu não sei! – balbuciou com franqueza. – Esse negócio não fecha direito, eu coloquei o balde, mas parece... que não ajudou.
         O balde estava realmente lá, debaixo da pia, mas já cheio, transbordante e impotente, servindo só pra testemunhar a sinceridade da iniciativa de meu vizinho. Mas não ter conseguido fechar a torneira era pura incompetência: eu tinha pego o macete de apertar e puxar em três dias, enquanto essa criatura rosada do primeiro mundo não tinha nem... bem, não importa. A coisa está pingando.
         Arregacei a barra da calça e alcancei a pia, fechando  a torneira, e depois peguei  um pano que estava lá estendido no banheiro e comecei a tentar enxugar, mas a primeira passada de pano comprovou o ridículo da iniciativa, já que a água era muita e o pano um só. Nessas percebi o problema: o cano que levava a água da pia tinha soltado, e a pia agora dava direto para o chão do banheiro. Tentei reencaixar, o que funcionou um minuto, para minha alegria, para logo se soltar novamente, para meu desespero. Não tinha saída, era chamar o encanador.
         - Sacha – virei-me para o guarda, que ainda observava, ora a situação, ora o alemão de cueca -, tem alguém aqui que possa, hã, bem, ajudar? – desconhecia a palavra “encanador” na língua russa.
         - Ah, tem sim! Já chamamos o Vseslav, daqui a pouco ele chega. Só faça o favor enquanto isso de enxugar um pouco, pra vazar menos no sexto andar.
         Retomei a saga do pano, com o auxílio de uma pá e do alemão, agora já decentemente vestido, jogando de quando em quando a aguaceira imunda na banheira. Logo os dois guardas se despediram, Sacha dizendo que depois voltava, e ao outro pedi que se desculpasse por mim aos compatriotas do andar de baixo. Depois de umas dez passadas de pano, a poça reduzida a umidade, uma conversa ruidosa e escandalosa passou a vir do corredor, se aproximando cada vez mais. Uma voz grossa, rude e extremamente ligeira dominava a palestra, deixando a uma segunda, anasalada e seca, a humilde tarefa de algumas ponderações. Finalmente a conversa estava na minha porta: um sujeito loiríssimo e baixinho, zarolho como a própria Rússia, trazia uma pochete e atrás de si dois camaradas silenciosos, a puro título de companhia. Sem mais nem menos já foram entrando.
         - Que é que foi, é daqui que a água vem? Olá! É aqui, ein? Que é que foi?
         O olho esquerdo me encarava enquanto o direito se dirigia para o meu vizinho, a voz grossa expressando uma infinita impaciência e uma rudeza quase como se no dia anterior tivéssemos nos encontrado no boteco e eu, bêbado,  tivesse xingado a sua mãe. Assustado e sem vocabulário para sistemas de encanamento e sua necessária manutenção doméstica, resumi a resposta apontando para o cano solto, o que ele presto entendeu, entrou no banheiro num passo e se sentou na poça d’água, resmungando. Dos outros dois um se encostou à porta do banheiro, também presto a passar materiais necessários e a concordar com o monólogo incessante do encanador, e o outro por alguma razão nem sequer entrou no quarto, e ficou andando de um lado para o outro no corredor.
         - Você não sabe o  que o cachorro disse... nunca vi um canalha tão folgado... e ainda por cima ele... me passa a chave!.. ainda por cima ele disse que ia aparecer na quarta... se ele aparecer, ah, eu mostro como... me passa a fita!... deixa eu ver isso aqui...
         Confesso que, apesar de ter estudado quase quatro anos de língua russa, dois dos quais com muito afinco e frequência, a linguagem e a velocidade com as quais o encanador articulava suas pragas foi para mim o maior de todos os desafios que já encontrei desde que me decidi por esse tortuoso caminho.          Posso entender uma aula de história, um poema de Púchkin, até escrever uma carta ou cantar uma russa, mas aquele encanador desafiou todas as minhas capacidades linguísticas, não só pelo ritmo, mas pela riqueza em expressões, pelo volteio das palavras. Sem mais, impotente e alheio, desisti de tentar entendê-lo pus-me a observar humildemente o seu trabalho.
Arrancou a peça que ligava o fundo da pia ao sistema geral, examinou cuidadosamente com seu olho direito, e exclamou.
         - Lixo! Seu cano quebrou por  causa do lixo. Por lixo, tem que pagar.
         Lembrei das toneladas de chá preto esvaziadas na pia mesmo, me senti um jumento e um medo instantâneo.
         -  Quanto? – arrisquei.
         - 400 rublos.
         Bem, até que não era tão caro assim... fazer o quê? Não jogar mais chá preto na pia, claro. E também, claro, pedir metade do dinheiro ao alemão. Bati na sua porta, e lá estava ele novamente de cuecas, deitado na cama, assistindo algum seriado americano. Pedi o dinheiro, e ele, sem qualquer resistência, me deu no ato.
         - Esse cano aqui não engancha de jeito nenhum... – praguejava o encanador, compenetrado. - Vou precisar do... Aleksei!
         E o sujeito que andava no corredor entrou no quarto no mesmo instante, como se já estivesse esperando o momento de oferecer qualquer utilidade à causa. O encanador pediu a ele, no mesmo tom de impaciência e raiva, nada pessoal, uma série de coisas, para as quais infelizmente me falta vocabulário até mesmo em português, imaginem então os senhores em russo. “Coisas” já basta.
         E lá se foi o sujeito, correndo, atrás das coisas. Nesse ínterim, enquanto o encanador continuava conversando com o assistente, aproveitei para já lhe entregar o dinheiro – “que seja!” pensei -, e ir fumar outro cigarrinho. Quando voltei, lá estava o compenetrado encanador, com duas peças novas encostadas num canto e um imenso, gigantesco chumaço de cabelo, talvez crina de cavalo, juntado num rolo, que ele com muito esforço enrolava em torno das juntas dos canos. Realmente nojento, eu diria, mas também curioso. Talvez alguma tradição eslava, ou fruto dos duros períodos de escassez e guerra que esse país de quando em quando atravessa. Em pouco tempo, algumas tentativas e muitos xingamentos, o cano estava encaixado, o encanador exausto e o banheiro inundado, cheio daquele cabelo nojento, espalhado por tudo quanto é canto, servindo de liga para o encanamento. Por alguma razão, respeito, talvez, ou porque o trabalho realmente me parecesse bem feito, fucei atrás de cinquenta rublos na minha carteira e, quando o encanador se afastava, com seus dois assistentes atrás, chamei-lhe.
         - Aqui! Pegue, por favor. – ele me olhou perplexo. – Pelo serviço.
         Ele guardou o dinheiro, me olhou com o olho esquerdo como se eu fosse louco, e murmurou um “obrigado”. Depois foi embora.
         Voltei ao banheiro: já era tarde, e tinha que me ajeitar para dormir, escovar os dentes, essas coisas, e também lavar uma louça, coisa de dois pratos, que como não temos cozinha própria nos quartos acabamos usando a pia do banheiro mesmo. Logo que entrei percebi com grande desgosto que o rolo de cabelo havia ficado por lá, talvez como gentileza, em caso de outras eventualidades. Chutei a criatura para um canto e cuidei de meus afazeres: tudo certo durante a escovação de dentes, a lavagem das mãos, o primeiro prato, o segundo... mas quando chegou nos talheres, um barulho de bolha seguido do da água batendo no chão veio confirmar meus temores: o trabalho havia sido mal-feito. Foi em vão que tentei juntar o cano novamente, encaixá-lo, até mesmo repetir o grotesco processo de enrolar o cabelo em torno das juntas até que se fixassem; o máximo que consegui foi que o cano não caísse mais, apenas pingasse em volumosas correntes a água da pia.
         - Nós pagamos. Deveríamos realmente matar esse sujeito – disse o alemão, em tom de brincadeira, ao constatar a ineficiencia total do conserto.
         Pusemos o balde novamente embaixo da pia, e está lá até hoje.