domingo, 28 de abril de 2013

Sala & Sapatos


Das adversidades da Música de Concerto em um país de clima subequatorial


Pobre do azarado que, brasileiro, deu para gostar de música clássica. E não falo da excentricidade, do papel de pedante, e nem da velhice precoce que a música de concerto via de regra acaba causando... Talvez pela sua suposta aversão aos nossos planaltos tropicais, mais afeitos ao batuque que à batuta – falso problema que qualquer Heitor desmentiria –, ou mesmo, como coaxam por aí certos nostálgicos da República do Café, pela ignorância incorrigível do Zé Povo; pela razão que for: a infelicidade não é menor. O acesso é pequeno, o preço, enorme e as dificuldades, aos cachos.
            Começo, no diletantismo permitido a um cronista, pelo problema das orquestras: vivem de baixos incentivos, e poucas são de repertório – um claro reflexo dos costumes, já que a rigor a sociedade só produz o que precisa... ainda que, felizmente, sigam sempre existindo, por este Brasil de meu Deus, inúmeros conjuntos militares, juvenis, carnavalescos e recreativos, zelando pela música orquestral sem qualquer petulância. Agora mesmo me lembro da Lira São-joanense, que se proclama a orquestra mais antiga do Brasil (séc. XVIII), da qual qualquer bom morador de São João Del Rey falará de peito cheio mesmo que, numa missa na matriz, dificilmente a tal da orquestra consiga orquestrar alguma coisa. A profissionalização do artista, ainda que via de regra roube a sua alma, no caso de um complexo musical com mais de cinquenta instrumentistas não é lá má ideia: é preciso que sejam organizados, talentosos, bem pagos e, principalmente, estejam a serviço da população...
Meta distante: talvez pela falta de uma educação geral propriamente erudita – contraposta à musicalidade quase inata do brasileiro –, aliada à alergia de povo das supracitadas rãs do café com leite, o fato é que sala de concerto neste país ainda é sinônimo de champanhota e pince-nez. Tanto no preço quanto no acesso e na imaginação. Contra o que alguns programas já estão batalhando, ainda que silenciosamente – lembro-me agora do Projeto Curumim, e da Sinfônica de Heliópolis, como exemplos. Já o acesso, pelo menos em São Paulo, sofre daquela velha ironia, tão amarga quanto tapuia, de estar ao mesmo tempo à mão de todos e de ninguém: o Municipal, o São Pedro, o Cultura Artística e a Sala São Paulo ficam bem no Centro, na área de maior circulação e diversidade social da metrópole, bem servida de metrô, de trem, de ônibus – e mesmo assim, ficassem essas salas no Shopping Cidade Jardim e o público seria basicamente o mesmo. Uma situação que o preço da entrada, mesmo não sendo extraordinariamente absurdo, tem lá a sua parte na manutenção.
            Naquela noite escaldante de novembro, ainda existia a possibilidade de arranjar convite a dez reais – o saudoso Ingresso da Hora, vendido a dez minutos do começo do espetáculo. Bastava esperar numa fila e, portanto, chegar meio cedo, pré-requisitos aparentemente cumpridos conforme eu saltava, empapado de suor, na Duque de Caxias com a Júlio Prestes, consultando instintivamente o relógio do celular.
            - 8:20 ! – suspirei, repousando os olhos na avenida frenética. As cortinas de aço entreabertas ainda mostravam frutas podres, cheirando forte no calor da noite; alguns cabos de rede, azuis e pretos, blusas e camisas; num galpão azul-bebê, um pastor esbravejava, apocalíptico, a uma plateia abarrotada, e junto à porta três coreanos pareciam discutir, na sua língua absurda; do outro lado, ao redor da trincheira farpada da antiga rodoviária, círculos cada vez mais histéricos se aglomeravam, no coletivismo egoísta do crack: um cenário totalmente dostoievskiano que se armava para a noite da Luz, conforme eu, entre o fascínio e a pressa, deslocava os olhos do celular para os ponteiros da torre, atravessando a fila de táxis que já se espremia, vomitando madames na esquina da Júlio Prestes com a decadente rua Mauá.
            Adentrei pelos arcos bem policiados da praça, ao som da lataria do Trem Metropolitano. Afobado, tropecei umas cinco vezes na minha própria sandália, já escorregadia pelo suor, e quase deixei o pé esquerdo pelo caminho. Só quando pisei firme sobre o estrado de madeira envernizada, na elegante antessala com a estátua de Eleazar de Carvalho, foi que me acalmei de fato com o horário: não se tratava de um concerto trivial, escolhido ao acaso para matar o tempo. Era coisa imperdível, a 5ª sinfonia de Mahler, o judeu convertido à fé católica, o último romântico das canções de Des Knaben Wunderhorn e o primeiro moderno da 9ª sinfonia, o modelo para Morte em Veneza no livro de Mann e no filme de Visconti, o compositor por quem consigo ter a mesma paixão e idolatria que tive, aos 14 anos, pelos Beatles. Aliás só por isso que havia chegado tão cedo, meia hora antes: normalmente me atraso, quando muito chego em cima da hora. Só aquela confluência entre paixão desvairada e oportunidade única para me fazer me adiantar, mesmo assim nem tanto: no subsolo, entre casais respeitáveis e jovens descolados (entre quem música clássica já está se tornando cool), já se avolumava uma pequena fila. Ao lado conversava um pequeno grupo de rapazes, simples e até maltrapilhos, com mochilas nas costas e a tiracolo. Os grandes estojos apoiados no chão denunciavam estudantes de música, e de fato: logo reconheci um deles.
            - Salve! – me enfiei, feliz da vida por não ter que esperar sozinho.
            Cumprimentamo-nos, e fui apresentado aos desconhecidos.
            - Hoje a coisa vai ser boa... – esfreguei as mãos, ansioso.
            - Ah vai! – concordou, presto, meu amigo, de índole igualmente mahleriana.
            - É... meio longo, né... – suspirou um violinista, ali mais por uma obrigação profissional do que por amor à arte, adepto que era, claramente, de obras mais ligeiras e mais palatáveis.
            - Ah, que é isso! – indignou-se o meu amigo mahleriano – Como é que você pode...
            E começou uma daquelas intermináveis conversas de músicos eruditos, às quais mesmo um amante sincero da arte, como eu, tem poucas chances de participar, seja por ignorância bruta, seja por falta de paciência. Acabei mais folheando uns papéis, lendo um folheto sobre o maestro convidado, e por fim, ao constatar um aumento na fila, interrompendo a apaixonada discussão:
            - É bom a gente se apressar.
            Pegaram suas coisas e nos mobilizamos. Mas no que fomos para o “L” da fila, separado pelas cordas, meu amigo pisou em falso e, apoiando no meu ombro, quase me derrubou junto com um violino, não fosse eu me apoiar em uma coluna. Recomposto, pediu desculpas e constatou:
            - Ah, os cadarços...
            Esperei educadamente que ele os amarrasse, conforme os outros já se adiantavam: se ajoelhou ao meu lado, entrançou as duas cordinhas meio puídas, e demorou o olhar um pouco sobre meus pés, admirado. Quando levantou, numa expressão entre riso e desespero, pôs a mão no meu ombro e disse:
            - Bicho... como é que você vai fazer...?
            - Com o quê? – não entendi.
            - Com esse chinelo... você sabe que...
            - Não é chinelo, é... – entendi numa paulada - Puta merda, não vão me deixar entrar...! – e bati a mão sonoramente na testa, com um misto de raiva de mim e do mundo. – Ah, não... porra, e agora, quê que eu faço?
            Meu amigo olhou no relógio, virou para mim num suspiro, e disse
            - Chora.
            E como a fila andasse, me lançou um olhar de impotente compaixão, e seguiu para comprar os ingressos. Bem, e eu...? Voltar pra casa seria avassalador: fazia pelo menos uns dois meses que eu queria ver aquele concerto, contava os dias, e ter ido até a Luz para uma broxada daquelas ia ser de morte. Mas de chinelo não iam me deixar entrar... só se eu...
            - Gabriel, espera. – me adiantei, decidido. – Compra pra mim também
            Ele ainda olhou para as minhas sandálias, mas resolveu não insistir, pegou meu dinheiro e comprou, sob o olhar de reprovação de alguns que achavam que eu tinha furado fila. Quando eu peguei meu ingresso e agradeci a caixa, o gorila de terno que ficava ao lado, com o rádio na mão, percebeu o que eu calçava e já me puxou pelo ombro:
            - Amigo, com esse chinelo aí você não entra não...
            - Chinelo não, grande, é sandália. E vem cá, que história é essa, de que não entro?
            - Norma da casa – respondeu, seco e importante, como se a norma fosse de Deus, e a tal da casa fosse dele. – Aqui é lugar de gente decente.
            - Ah, então sandália é indecente?! Desde quando! – era tão absurdo que eu não conseguia replicar. Mas respirei fundo. – Meu irmão, esse calor...!
            - Lá dentro tem ar condicionado – cortou, já sem paciência, ainda que se visse, no seu rosto melado de suor, embrulhado num paletó e numa gravata excessivamente justos, que a sua condição discordava do tal ar condicionado.
            Tentei argumentar mais algumas obviedades, sabendo que não tinha nada a perder, mas o gorila esgotou a paciência e acabou chamando o gerente, antes de chegar aos finalmentes da sua tediosa profissão, que tantas aventuras promete, mas que raramente consegue chegar ao clímax de encher um impertinente de porrada.
            - Pois não, em que posso ajudá-lo? – chegou, todo afetado, um gordinho de óculos, com um crachá de gerente.
            - É o seguinte, meu caro... – tentei enxergar o nome – ... meu caro Gérson. Gérson, eu frequento esse lugar já faz um bom tempo; gosto de música clássica, acho a sala de vocês ótima. Já tenho o convite pra hoje, e esperei como um louco pra ver esse concerto. Só que com esse calor, eu acabei usando isso daqui...
            Apontei para os meus pés sujos, mas antes que eu pudesse concluir, ele completou.
            - ... e agora não vai poder entrar. – cantarolou, num sorriso de falsa lamúria.
            - Então, isso é um absurdo!
            - São normas, sinto muito.
            - Mas...!
            - Olha só – e me puxou para um canto da bilheteria, onde, numa moldura dourada, pendia uma ficha com letras miúdas e enfáticas –: “É terminantemente proibida a entrada de pessoas sem camisa, sem... sem calças...? Hum?! Ah, de bermudas, de chinelos...
- Mas são sandálias... – arrisquei.
- “...de sandálias... ou qualquer outro calçado que não cubra os pés inteiramente”. Está vendo? É isso aí.
- Mas...
- É, eu sinto muito... – afetou compaixão. – Mas se você quiser pode encaminhar uma reclamação à diretoria neste endereço aqui, ó – e me estendeu um cartão. – Daí eles veem.
            E, sem nem um boa-noite, virou de costas e me deixou falando com o vento. Como o segurança ainda me olhasse feio, desisti de persegui-lo e exigir explicações mais cabais: a não ser que invadisse a sala, me enfiasse por uma janela ou chamasse o presidente da república, não iria conseguir entrar naquele concerto, do meu compositor favorito, que esperei por tanto tempo, por causa da porra da caralha do chinelo...
            - Sandália! – me corrigi, mentalmente.
            Era isso e ponto. Por causa de um invólucro para os pés, criado certamente na Europa ou em qualquer lugar bem longe do trópico de Capricórnio, eu, que só de sandália já morria de calor, não ia poder ouvir música... e qualquer tentativa de elucidação lógica da relação entre sapatos e concertos estaria condenada, ou ao fracasso, ou pelo menos à constatação clássica da vitória absoluta do surrealismo na vida prática no território brasileiro. Sem ânimo para discutir com quem quer que fosse, já consciente da inutilidade dos apelos, e da fatalidade da derrota, subi as escadarias rumo à porta por onde entrei, na pça. Júlio Prestes. Ia dar meu ingresso, chutar umas pedras e ir andando até a Estação da Luz.
            A mesma base móvel de polícia seguia junto à entrada, ao longe as mesmas multidões do crack se juntavam, abençoadas pelo Cristo do Liceu, e alguns comércios terminavam de fechar do outro lado da Duque de Caxias. Os táxis eram poucos: já eram cinco para as nove. Parei por um momento, cansado, xingando o gerente e o gorila de terno: paus mandados do caralho... é assim que se estraga uma noite de uma pessoa cuja vida já não é lá muito emocionante! Não iria em baladas, não encheria a cara, não jantaria em alguma Família Mancini. Tudo que eu queria era assistir a um concerto, e isso porque o preço me cabia: normalmente, essas apresentações são de cinquenta, cem, duzentos reais. E nem por isso deixam entrar de chinelo...
            - Sandália – me corrigi.
            Ao meu lado, dois senhores respeitáveis tragavam apressados os seus cigarros, quase bitucas, ante a iminência do segundo sinal. Exfumante, numa situação crítica como aquela, era a oportunidade para me render: pedi um cigarro, que me concederam, solícitos. Mas quando me entregavam o isqueiro, uma voz esganiçada e inoportuna se intrometeu.
            - Ô gente com licença boa noite aí, será que cês num têm um real aí pra mim interar um lanche?
            Me virei, depois de devolver o isqueiro, enquanto os dois se afastavam para dentro da Sala como que se ninguém tivesse dito nada: diante de mim tinha um ser esquelético, envolto em trapos de uma cor indefinida, outrora aparentemente branca, carregando uma mala rasgada, a tiracolo. O rosto, apesar de sujo, era claro e até gentil, confluindo para um par de olhos bastante vivos embora frenéticos, insolentes e até opacos.
            - Ô amigo, deixa eu ver aqui... – solidarizei-me, tirando a carteira. Mas quando abaixei os olhos para checar os trocados, reparei no chão para os sapatos do camarada indigente: um par razoavelmente grande de coisas que um dia se chamaram tênis, de cor igualmente indefinida. Cadarços desfiando, um rombo enorme do lado esquerdo: era um troço, como se diz. Mas era minha salvação.
            Na hora deixei os trocados de lado, saquei uma nota de dez e entoei a ladainha.
            - Amigo, eu ia te dar umas moedas, mas vou te fazer uma outra proposta: eu preciso muito, mas muito desse sapato aí seu. Te dou dez mangos por ele. Que tal?
            O sujeito arregalou os olhos numa expressão perplexa, criada, naturalmente, pela proposta mais inusitada que ele já tinha ouvido na vida: tinha conseguido arrancar os sapatos de uma fiação tombada na chuva, quase morrendo eletrocutado, e desde então estava com eles. Certa vez, no pregão do crack, tentou vender, mas não deu. Seus olhos faiscaram com a possibilidade da grana. Mas, usando o bom senso, percebeu que estava em posição de negociar.
            - Te dou por vinte.
            “Que pilantra!”, pensei, fuçando a carteira.
            - Só tenho quinze... – blefei olhando as notas, e mostrando o dinheiro com bazófia.
            - É nóis – emendou sem hesitar, e já ia pegando a grana quando eu recuei a mão.
            - Tira o tênis antes, que eu te dou.
            O sujeito me olhou fundo uns dois segundos, e começou a tirar o sapato. Um cheiro de chulé com lixo se insinuou levemente, mas, pensando no bem da arte, consegui ignorar. Mal colocou na minha frente, lhe estendi o dinheiro.
            - Muito obrigado – apertei, exaltado, a mão calosa e áspera do indigente.
            - Valeu irmão– entressorriu este, num gesto sincero mas nervoso.
            - Esse sujeito está incomodando o senhor? – rompeu feito um cavalo o segurança daquela entrada, já querendo defenestrar, rua Mauá abaixo, o pobre do mendigo que tinha salvo a minha noite.
            - Não não não! – intervim – Muito pelo contrário...
            E o sujeito, encolhido, partiu em paz para fumar seus vinte contos. Apressei-me a tirar as sandálias, enfiá-las de qualquer jeito na bolsa, e calçar aqueles trapos que tinha regateado. Fedia realmente um bocado – a chulé, mais do que a lixo –, mas não era nada insuportável. Só número, que era um pouco menor do que o meu. Orgulhoso do meu achado, louco para esfregar na cara do staff as minhas manobras, marchei, vitorioso e calçado, Sala São Paulo adentro, faltando dois minutos para o começo do concerto. Na bilheteria, o brutamontes e o gordinho ainda tentaram me barrar.
            - Onde é que o senhor...
            Apenas apontei, e os dois se calaram. O segurança ainda tentou se opor:
            - Mas está todo nojento...! Olha isso! Pegou aí na Cracolândia, né, seu puto!
            - Calma aí, chefia! O regulamento diz que o sapato tem que ser novo? – perguntei, ar de ingênuo. E enquanto ele pensava em alguma resposta, adentrei, mostrando o convite, sob os narizes torcidos com o mau cheiro dos casais aristocráticos, terrivelmente indignados, mas sem qualquer pretexto jurídico para expulsar de lá um vitorioso par de sapatos malcheirosos.

sábado, 20 de abril de 2013

O valsar do realejo


            Foi na feira da Benedito Calixto. Confesso que, como pinheirense inveterado, já faz algum tempo que parei de ir lá, de tão cara e tão lotada que foi ficando, perdendo sua identidade. Mas recentemente – acho que por causa dos discos de música clássica, pouco procurados e, portanto, de preço baixo – dei de passar lá de vez em quando. Andava eu pelo lado da Lisboa, desbravando as multidões bem vestidas com a ajuda dos cotovelos, ao passo em que os olhos se ocupavam, do outro lado da rua, de uma morena charmosa, quando dei de frente, quase na entrada da quadra do choro, com um curvo e cansado tocador de realejo.
            Verdadeiro pesadelo nostálgico: pele batida de sol, bigodes de escovão grisalho sujo, indeciso entre o branco natural e o preto desbotado de alguma tinta vagabunda, uma boina surrada na calvície e um par de olhos aquosos, transbordantes. Em meio àquela colmeia de jovens descolados, olhando os discos de samba e as bijuterias de coquinho, parecia um alienígena sem apelo, um perdido, uma verdadeira mercadoria sem graça.
            E ainda pior era o seu papagaio: tinha jeito de ter vivido o dobro ou o triplo do dono. Ainda que velho, este pelo menos conseguia girar a manivela com vigor e constância: já o papagaio nem se mexia, inútil e borocoxô, resumindo seus gestos num ou noutro passinho lateral, no poleiro gasto, enjaulado num amarelo torto e desbotado. Não tinha mais aquele verde exuberante, que enobrece os louros da terra: parecia um pombo doente, ou o bigode do dono, espetado e sujo, e não fosse ele guinchar, feito um alarme, volta-e-meia, poder-se-ia perguntar àquele senhor o que no mundo o teria levado a engaiolar um espanador pintado de verde.
            Desisti dos discos e da morena, engolida que foi subitamente na multidão, e fiquei parado, meio sem jeito, admirando o fantasma tristonho girar maquinalmente a manivela da valsa torta – uma representação fiel do passado que, dia após dia, sinto escapar dolorosamente entre os meus dedos. E enquanto isso o sábado seguia seu refluxo frenético, apontando objetos, regateando, desfrutando obstinada e obrigatoriamente o seu lazer de dia livre. Plantado como uma barraca, no meio do caminho, sem desgrudar os olhos, comecei a sentir que estava atrapalhando a valer, sendo gentil e progressivamente atropelado por uma dupla de casais, que me desviaram, olhando feio. Achei melhor ir para um canto, mas continuei por ali, enfeitiçado que estava por aquela valsa manca, por aquele inválido do tempo, por aquele papagaio deprimente. Passaram-se assim uns bons dez minutos, até a insistência do olhar se tornar invasiva, e o velho desconfiar. Ainda tentei disfarçar, jogando os olhos pelas mercadorias, mas mal ele mergulhou novamente no além, voltei a observá-lo: queria ver se alguém ia falar com ele; se alguém, de consciência ingênua e de ar fantasioso, ainda se dobrava ao som de uma valsinha – que “já vendeu tanta alegria”, na canção do Chico; e mais: queria ver se alguém, independentemente do interesse folclórico, realmente faria o voto de confiança de deixar aquele frango esverdeado ler, ou bicar, o seu suposto futuro.
            Mas não vinha ninguém: um ou outro ainda olhava, por mera curiosidade, fazia agrados ao papagaio. Mas, sentindo a antipatia da ave, logo se afastava. Por fim, resignado à minha própria curiosidade, somada a um asqueroso, incômodo e católico sentimento de pena, abri caminho do meu canto até o realejo, disposto a fazer uma pequena contribuição, puramente cristã, para a existência daqueles dois seres – ainda que custasse ler, sem a menor fé, a tal da minha sorte.
            - Boa tarde! – exclamei, meio sem jeito.
            - Boa! – respondeu, com educada simpatia.
            - Cróóóó! – resmungou o papagaio.
            - Eu queria... eu queria, meu amigo...
“Que o senhor fosse eterno”, gritava minha alma, mas tudo que saiu foi:
- Tirar a sorte....!
            - Pois não.
            Semiabriu rapidamente a gavetinha empenada sob a gaiola, e atacou a manivela com afinco – no que a valsinha, até então torta e monótona, cresceu frenética e diabólica, como num número de circo. Por fim o papagaio, entendendo o sinal, acordou da sua inerme apatia, inclinou o corpo para frente e bicou um papelzinho do compartimento esquerdo da gaveta – estendendo-o para mim, pescoço em sanfona num gesto de impaciência..
            - Pode pegar – sorriu o velho pelos bigodes.
            Delicadamente, arranquei o bilhetinho do bico da criatura, não sem medo de que me mordesse. Mas o pernóstico, mal viu seu dever cumprido, recuou o corpo num arrepio, e voltou ao seu estado de esnobe contemplação.
            Desdobrei, sem vontade, e li:
         
           Cuidado para não tropeçar
nas pedras que encontrar no caminho
           
Uma frase que, tirando o apelo drummoniano, transferido do passado para o horizonte de expectativas, pouco sugeria além do seu sentido trivial, de tão batida e esvaziada que é a pobre da metáfora. A não ser que pedras de fato passassem a aparecer no meu caminho, e eu, distraído que ando, corresse o risco de tropeçar em uma delas. Ou em várias... amassei novamente o augúrio, enfiando-o no bolso da camisa, por recordação e, também, por segurança – vai saber!...
Mas era o de menos: não tinha feito aquilo por simples carência ou por absurdo misticismo: foi pra travar algum contato com aquela figura ancestral, baluarte de um passado ameaçado, se arrastando na terra com um papagaio e um realejo, sempre na espera, quem sabe, do dia em que tudo finalmente irá para o inferno.
- Muito obrigado. Eu... fazia tempo que eu não via um realejo, sabe? Uma raridade... e moro aqui desde sempre... o senhor não vem aqui sempre, vem....?
- Sábado sim, sábado não...
- Uma raridade, uma verdadeira raridade – prossegui. – Não tem muitos realejos hoje em dia, não é?
- Só alguns...
- E... dá pra viver?
- Se dá?! É essa hora só, que é ruim... mais tarde chegam as crianças... em um dia faço um bom dinheiro.
- E é mesmo, é? – me espantei com a intromissão do dinheiro imundo na minha melancolia.
- Ah é! As pessoas querem ler a sorte delas... e tiram foto, mexem com o louro. É um bom negócio! Quer ver, ó – parou por um instante a musiquinha insistente, futucou no bolso do colete e tirou um chumaço de cartões, separando um. – Aqui, toma. Dá uma olhada pra você ver.
Peguei incrédulo o cartãozinho – desde quando tocador de realejo tem cartão de visitas! Aproximei-o da vista, contra o sol, e, ao lado de um papagaio feliz, porcamente desenhado, li:

Associação paulista dos tocadores de Realejo
Marco da Silva

E atrás telefone, endereço, e-mail e o escambau.
- Se você quiser procurar...! – continuou, retomando o lenga-lenga da manivela, conforme um respeitável casal se aproximava, com dois pimpolhos. – A gente organiza festa, casamento... debutante, e... como que é? aquele de judeu...
- Bar mitzvah? – perguntei, incrédulo
- É! Isso! Tudo isso aí a gente faz! E tem o programa de TV também, se interessar...
- Programa de TV?!
- É – confirmou, com orgulho e seriedade –, na Globo, todo dia de manhã. Tem um programa lá agora, eles tão acompanhando o trabalho da gente. Acho que é às nove. Dá uma olhada lá!
E passou a atender o casal dos pimpolhos, no mesmo ritual mecânico de acelerar a música do órgão, cutucar o papagaio e abrir a gavetinha. Sem nenhuma reação, tentando digerir aquilo tudo, fiquei observando o trabalho regulamentado do realejo, com associação paulista, horário na TV, talvez com CLT e participação no Programa do Jô. Como a multidão arrefecesse, e mais duas famílias se aproximassem do realejo, esbocei de ir embora. Mas lembrei que faltava pagar.
- Ô... seu Marco: muito obrigado, viu? Pela sorte... e quanto é que fica aí, o bilhetinho?
- Imagina... é dez reais – respondeu, distraído.
- Quanto?!
- Dez reais. – confirmou, com naturalidade.
- Pelo...
- É, ué, pela leitura da sorte. Tem que alimentar o bichinho.
E sorriu, apontando o papagaio esnobe, que acabava de tirar um papel para uma criança rosada. Sem ânimo para discutir, saquei uma arara do bolso, odiando a mim e às minhas convicções, e a estendi para o senhor dos bigodes.
- Não é pra mim não... É pra ele – debochou.
No que o presto papagaio, ligeiro para os negócios, mais uma vez se deslocou, arrancando num gesto bruto o último dinheiro que eu tinha e depositando-o na mesma gaveta, ao lado dos bilhetes da sorte.
            “É o preço da saudade”, murmurei amargamente, conforme me enfiava de novo na multidão, que acorria para o Chorinho da praça Benedito Calixto.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O sibitinho


            Sabemos o nome de tudo: marcas de desodorante, linhas de ônibus, músicos e bandas, editoras, companhias de seguro categorias de carros – ao passo em que ignoramos, sem vergonha nenhuma, o nome dos bichos e plantas da nossa própria cidade.
            Quem me fez pensar sobre esse dilema, numa conversa de bar sobre passarinhos, deixou transparecer em sua frase ironia e raiva, meio nostálgicas. Mas de minha parte, se não deixo de me entristecer, nem por isso acho menos compreensível: natural só sabermos do que precisamos, e infelizmente é pouco o papel que resta aos passarinhos na vida de São Paulo. E mesmo assim talvez esteja cometendo uma injustiça, afinal, pombo também é passarinho... mas fico pensando, nas esperas nos pontos de ônibus, quando invariavelmente dois ou mais desses pássaros obesos e desengonços ciscam alucinadamente os restos de coisas irreconhecíveis, se talvez também não existam inúmeras espécies e subespécies de ratos com asas, cada uma com sua particularidade, tamanha é proliferação destes seres na capital paulista. Tem uns que nascem com um pé só, outros inflam mais o peito, alguns conseguem viver de plástico...
            Mas quando o ônibus chega é fatal que eu me esqueça desses absurdos. São pombos, e ponto. São árvores, e ponto. Já os pontos de ônibus, bem, entre eles é preciso saber a diferença, sob o risco do atraso que se podia evitar. E assim seguimos a vida: às vezes reparamos em uma ou outra ave que nos parece inusitada, pela plumagem, pelo tamanho, ou pelo canto... quem já se deparou com um urubu, pesado e meditabundo, no alto de algum edifício, guarda certamente a impressão do encontro. Uma vez pude ver, entre amigos, em plena Teodoro Sampaio, um gavião carijó atacando os transeuntes embasbacados.
            Se por curiosidade científica ou por sensibilidade ultrapassada, o fato é que sempre gostei de aves. Cresci e ainda vivo, por alguma felicidade ecológico-filosófica, na esquina de um cemitério, onde se ajuntam o esplendor de uma área verde e o silêncio dos necrotérios: lugar perfeito para passarinhos. Desde pequeno, o voo dos periquitos, verde-verdinhos, sempre em bandos tagarelas, me anunciava, com o sino da igreja do Calvário, as seis horas da tarde. A chegada de outubro nunca se impôs pelos calendários, mas sim pela sanha dos sabiás, que só cantam (e como cantam!) nessa época do ano. Mesmo com a orquestra caótica das construções que pipocam diariamente, a maritaca da rua de trás ainda berra esganiçada, garantindo a audiência dos prédios ao redor. Sem contar os bem-te-vis, os pardaizinhos, as rolinhas, carne de vaca por toda a capital, por onde voam e cagam livremente, provando, dia após dia, aos lordes Byron rastafáris da contemporaneidade, que ninguém precisa ir até a Bahia para “curtir a natureza” – seja lá o que “curtir a natureza” signifique.
            Basta observar, não ser passivo – tarefa difícil. Eu mesmo só comecei a me interessar por estas criaturas maravilhosas há muito pouco tempo, e estou longe de poder dizer, com todo o dandismo das excentricidades conscientes, que sou alguma espécie de ornitólogo amador. Quem me dera... a vida prática me devora pelas pernas, e o tempo é escasso... o jeito que achei, ou melhor, venho achando, é inserir a observação na vida prática. Na USP, por exemplo, se encontram aves incríveis, a que se dá pouca atenção. E sempre que posso me desdobro para encaixar os passarinhos nas atividades triviais: desvio rotas, crio caminhos, ando sem pressa.
            Mas, numa feliz ironia, a rota acabou se invertendo. Durante a Semana Santa, trancafiado em casa, coberto de livros, trabalho e preguiça do mundo, eu me torturava com a revisão de artigos sobre economia política quando um assoviozinho borbulhante flutuou aos meus ouvidos, mais forte do que as serras e as britadeiras da construção de vinte andares. A princípio ignorei, achando ser uma porta rangendo, ou um alarme de carro, mas o agudo e a insistência me levaram, por fim, a me virar, irritadiço, já achando se tratar de alguma nova do vizinho – já bastasse a obra em plena Semana Santa para atrapalhar meu trabalho. Mas ao me deparar com o delinquente, vi que não podia discutir: pululando entre os borrões de rosa e verde da primavera da varanda, sobre a pequenina pitangueira envasada, uma criaturinha amarela e esvoaçante pululava entre galho e grade, ora bebericando nas flores brancas e rosadas, ora virando seu bico minúsculo e triangular para mim no que parecia, pelos meus parcos conhecimentos na língua dos piados, uma bronca furiosa.
            Achei engraçado, aquela coisinha com tanto despeito e impostura. Acabei deixando o trabalho por alguns instantes e fui ter com ela, no sofá, junto à varanda, sem muito cuidado, pouco ligando se o bichinho ia voar ou ia bancar a aproximação. E não é que bancou? Ainda estremeceu um pouco, ameaçou voar embora, mas acabou firme, passarinhando com ainda maior determinação, me encarando como se encara um déspota a quem se odeia, ou um professor que nos reprova.
            Até me assustei. Bicho valente! Aposto que se chegasse mais perto, me atacava, e mais, levava a melhor. Mas preferi fazer gesto de paz e, indo até a cozinha, separei um mamão velho num pires, e levei para ele, num gesto de boa fé. Me olhou desconfiado, meio por cima, mas depois de alguns instantes, convencido da vitória, resolveu aceitar a comida, por magnanimidade. Depois de comer todo o mamão, assoviou um muxoxo agradecido e foi embora, para o cemitério, provavelmente.
            Achei o causo divertido, mas dali a dois dias já tinha me esquecido. Quando, mais uma vez, quebrava a cabeça na revisão de um texto, ainda de pijamas e com uma xícara de café, surgiu novamente o camaradinha, na neblina luminosa de manhã bem cedo. Desta vez nos cumprimentamos com cordialidade, e admito que fiquei muito contente, em meio à pasmaceira dos artigos de economia política, em ver que o felpudinho amarelo não pecava pela ingratidão. Ouvi um pouco a sua ladainha piada, e fui buscar mais mamão. Como minha vó tomasse café, aproveitei...
            - Vó, vem cá, me diz uma coisa.
            A senhora se levantou e me acompanhou até a sala, sem muita paciência. Mas se enterneceu logo que viu o passarinho irreverente mordiscando o meio mamão.
            - Que bonitinho, Pedro...
            - É, não é? Sabe como chama? – perguntei, naquela certeza infantil de que nossos avós sabem tudo sobre as coisas que achamos bonitas, e que temos por mortas, já que o mundo errado em que nascemos há muito já as dispensava.
- Ih, meu filho... – ariscou a dúvida, mas seu olhar aquoso se iluminou, e, num sorriso mineiro e debochado, exclamou. – é um sibitinho!
- Um o quê?
- Um sibitinho, uai... – e se riu, voltando pra tomar café.
Então o passarinho amarelo, de máscara preta e branca, com o cocuruto vermelhinho, que nos visitava quase todo dia, era um sibitinho! Todo dia pela manhã tinha o seu mamão, proseava alguns minutos de assovio, dava uma cagadinha e depois ia embora para o cemitério, cuja vista agora um prédio tapa. E eu passei a reparar na quantidade enorme de sibitinhos em São Paulo: na esquina de casa, no Hospital das Clínicas, na USP, no Anhangabaú, em Santana... ave comum, esse sibitinho!
Nas perambulações pela Cidade Universitária, se havia aves mais bonitas, vistosas, delgadas e exuberantes, de qualquer maneira a que mais me alegrava era o tal do sibitinho, com seu piado florido, igual ao daqueles apitos d’água pra imitar passarinho. Sempre que estava entre amigos e aparecia um, não perdia a oportunidade:
- Olha, olha só!
- O quê?
- Aquele passarinho ali, ó?
- Hum, que é que tem?
- Sabe como chama?
- Eu? Não!
- É um sibitinho.
- Um o quê?!
E eu explicava, paciente, para os mais ignorantes, e com gigantesca alegria. É que essa coisa de pássaros acaba tornando a vida em São Paulo menos insuportável, mais humana, até mais lírica, se posso dizer assim. Uma ave é um animal fortuito: voa, canta, caga, e dorme cedo, às vezes brinca, pula-pulando pelos galhos de alguma árvore, e faz visitas irreverentes quando menos se espera, e mais se precisa. No que se incluem até os pombos, por mais sujos e bestas que eles sejam. No cotidiano maquinal da cidade, uma ave é uma metáfora para o direito à respiração, ao inútil, quando apreciada vulgarmente, em momentos de superfície aparentemente vazia.
Acabei levando a coisa tão a sério que, passeando os olhos num sebo, comprei um livro, não tão velho, cheio de ilustrações, com o nome Fauna silvestre – os animais da metrópole paulistana, ou qualquer coisa assim. Data de alguns anos atrás, e não sei quantas das espécies descritas no livro já não foram extintas, ou desabrigadas de suas casas, dada a velocidade sanguinária das transformações do espaço urbano. Mas independente disso: o catálogo de aves é impressionante. Se soubéssemos da ínfima parte dos passarinhos que vivem em São Paulo! Coisa inimaginável. Alguns, mais raros, habitam áreas específicas, o entorno da represa, o parque Tietê, a Água Branca... mas outros podem ser vistos quase em qualquer lugar. Caso do gavião carijó, por exemplo. Algumas corujas, pica-paus, garças, e...
- Epa! – sustei, por um instante, ao ver um retrato conhecido
Tinha o mesmo amarelo, a mesma máscara branca, o vermelhinho na cabeça... fiquei cismado, será que... como já era tarde, fui dormir, mas determinado. No dia seguinte mal acordei e fui tirar a teima: às nove horas, como de costume, o sibitinho apareceu, atrás do seu mamão. Peguei logo o livro, abri na página marcada e tirei a prova real: olhei uma, duas, três vezes. Sibitinho coisa nenhuma! Era um bentevizinho-penacho-vermelho.
- Ô vó! Vem cá!
- Pois não, meu filho.
- A senhora não disse que ele era um sibitinho? Olha só...
Mostrei o livro aberto para ela, com o desenho do bichinho empoleirado. Mas ela caiu na gargalhada.
- Eu estava brincando, meu filho! Você levou a sério, foi?
- Ué, levei...
- Eu lá sei o nome do passarinho! Sibitinho era como seu avô chamava tudo os passarinhos que ele não conhecia o nome... seu avô é um debochado!
Enxerguei o velho alagoano apontando pr’um pássaro qualquer e chamando de sibitinho, assim como, quando eu pequeno, dizia pr’eu comer formiga que fazia bem pra vista... e caí no riso, também. Como o bichinho ainda estivesse na varanda, aproveitei para lhe passar uma pequena ensaboada: ora seu salafrário... nem pra me dizer o seu nome de verdade! Que tipo de bem-te-vi que não grita a frase do nome! Isso já era malcaratismo...
O bichinho me olhou perplexo, resmungou um muxoxo assoviado e levantou voo, para o mesmo cemitério. E depois parou de aparecer. Achei a coincidência absurda, e não queria terminar esse texto com a ideia de que o passarinho teria se ofendido: depois que fui descobrir, o sibitinho vinha mais era por causa da primavera florida. Quando despetalou, não tinha mais razão de visita.
- Mas e o mamão? – perguntei, chateado, para minha avó.
- O mamão ele comia por delicadeza – e sorriu mineiramente.