segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Manhã de natal


            Acordo... Infelizmente acordo. E como se não bastasse tudo o de sempre, acordo com o som insistente de uma serra elétrica, de uma britadeira, não sei ao certo – o estado vegetal a que minha consciência se resume não permite ainda distinções de ordem substancial. Mas o barulho já é conhecido: a obra da rua de trás... ainda que alguma coisa me diga que hoje, especialmente hoje, religiosamente hoje, ela não devesse cantar, junto com as maritacas... enfim, estão trabalhando. Tateio um copo d’água, estico os ossos: inevitável o mergulho na “vida de fato”.
         Na sala um objeto incógnito vem me lembrar de certas razões: é vermelho, bem vermelho, tem dois olhos esbugalhados, usa um gorro, barbudo... é até bem fofinho, rechonchudinho, mas, por trás de aparente simpatia, me observa feito uma esfinge, esperando para me engolir antes que eu consiga engolir o meu café. Decifra-me, hô hô hô, ou... esfrego os olhos ainda perplexo, e coço instintivamente o saco: nada me vem à mente, nada de claro ou de lógico, pelo menos. Só um certo rebuliço estranho, antigo como que abandonado, tenta dar cambalhotas no meu peito e sair pulando. Como não encontra respaldo ou disposição na carapaça barbada que o carrega, se cala, e passa a procurar maquinalmente uma garrafa térmica e um calendário.
         Café servido, olhos na tábua geométrica dos dias: 24 de dezembro... e... diabo, o mundo ainda não acabou. Mas obviamente não é só isso. Isso, aliás, é o de menos. A explicação completa se esboça com a presença de um homem estranho dormindo no corredor, com a programação cacete da Rádio Cultura e com a azáfama nada costumeira de uma senhora de quase oitenta anos. Mais uma geladeira cheia de frutas multicores, carnes com molho, doces em calda, sucos e bebidas espumantes... é claro: é natal. Já sabia: me esqueci de propósito. Lembrar é razão pra crise.
         Mas não adianta: a contenção é rasgada pela rápida visão de uma senhora se esforçando, em cada ruga, músculo e cabelo branco, para enfeitar uma sala morta com quinquilharias que só lhe realçam a morbidez – ainda que o quadro completo, aos olhos de quem mal acordou, seja apenas mais outro império do absurdo. A visão contrasta com a de outros dias, e mais uma vez aquele mesmo rebuliço sai quicando por todos os lados do meu peito, com mais força, mesmo raiva, para logo se acalmar deixando, só, uma ardência como de soluço.
         Desisto. Dou um gole no café, tentando inutilmente pensar em outra coisa. É que não entendo nada... ou melhor, entendo, mas... tudo é estranho. Saber do natal, lógico que eu sabia, como todos... mas nem por isso sua chegada deixou de causar alguma surpresa. A surpresa do contraste. Há tantos anos e estaria eu mesmo cumprindo o papel de alma involuntária do evento, infernizando a minha avó, pendurando uma a uma cada bola vermelha e cintilante sobre os ramos das plantas, com os olhos ainda maiores e mais cintilantes, vidrados ao longo da noite em cadeias de luzinhas pisca-pisca e embrulhos lustrosos de presentes incógnitos. Na ceia, seria o primeiro a sentar, e, no que dependesse de mim, o último a sair.
         E isso sem taxar de cafonice, de consumismo, de capitalismo, de conformismo, etc.: era criança e ponto, bolas. Me lembro dos meus natais em Recife: até daquelas luzes horríveis, com que se tem o mal gosto de enfeitar o pobre do Capibaribe todo santo fim de ano, eu gostava doidamente. O que dizer do resto, então, que era a melhor parte? A família, ideia abstrata, reunida sob um único teto, com uma mesa cheia, numa unidade de espírito...
         - O sonho da propaganda de Panettone! – cuspo para o lado, quase engasgando com o café sem açúcar. Disso, hoje em dia, nada resta: em Recife, meu avô passa por maus bocados, minha mãe acordou e fugiu intencionalmente, minha tia mora no Rio, e com ela meu primo pequeno, meu tio ronca como um mamute, espremido no corredor, enquanto minha vó sustenta sozinha uma frágil ilusão natalina, espalhando pequenos enfeites pintados – trenozinhos, pequenas árvores, animais de pano – sobre móveis abarrotados de pastas, papéis e outros artefatos da vida útil e prosaica. E ela não só a sustenta como, por convicção ou desespero, dispõe dela para tiranizar: acabando de arrumar a sala, invade, sem mais nem menos, a cozinha, onde passa arbitrariamente a remanejar objetos e móveis sem sequer me consultar. Enquanto dava um gole do café, meu prato, com um sanduíche que nem consegui acabar de comer, foi subitamente rebocado para a pia, sendo o lanche despejado na lixeira. Foi eu querer reclamar para que também a xícara fosse dispensada, seguida do copo de suco, da toalha da mesa e enfim por mim mesmo, dispensado tirânica e gentilmente com um empurrãozinho e palavras de avó. Quis me revoltar, mas faltaram-me pretextos – aquele dia, suspirei, era dela. Humilhado e confuso, fugi para a sala.
         Mas lá agora quem ocupava era meu tio, lendo o jornal, no lugar em que costumo me sentar para ler. No fundo gostaria de ouvir alguma música, qualquer coisa de levemente alegre ou melancólico, que me desse forças para lidar com o tempo e com a passagem de outro ano. Mas foi eu me aproximar da vitrola para que o homem, por detrás dos óculos, soltasse politicamente um olhar de reprovação, aprendido nos departamentos da capital, um olhar daqueles que bastam para demitir um gabinete e cancelar páscoa e natal.
         Sem mais, retirei-me para o meu quarto – um depósito de figurinos onde estendo um colchão para dormir. Belo natal! Passaria o dia inteiro deitado, olhando para o teto e pensando na vida. Daquele colchão velho eu confraternizaria, só de raiva, com o universo todo. Cristo deve ter feito coisas desse tipo... mas acho que ele preferia dormir sem colchão. Cristo tinha o mundo inteiro, ou pelo menos todo o Oriente Próximo, e aposto que não diferenciava os dias. Aliás, Cristo talvez nem existisse... mas então o que estamos fazendo? Eu sei: nada. Comemos feito uns porcos e encontramos gente que já nem sabemos se nos amam mesmo, ou só acreditam nos amar. E nós também, é claro, fazemos o belo e hipócrita papel de familiares, pelo menos enquanto ganhamos presentes e não se metem na nossa vida. Mas não tenho a pretensão de dar lições a todo o mundo pretensamente cristão. Vou mais é cuidar da minha.
         E, sem paciência, vesti uma calça e saí sorrateiro pelos fundos, sem que minha vó percebesse a parte de seu natal que ia sendo frustrada, por uma alma rebelde à Santa Ceia. Saí de tão mau jeito e tão às pressas que esqueci de me calçar: no elevador reparei, tanto faz, é natal. Não é a primeira vez que ando descalço por aí. E só ia dar uma volta mesmo, aproveitar as ruas fantasmas, esvaziadas pela confraternização universal de particulares, e o tal do espírito natalino, que deixa a alma mais leve. Talvez, quem sabe, fizesse um irmão, fruto da ocasião de outra data quimérica.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Natal ideal


      "O cronista no telhado", coluna de Pedro Pinto 

      É
 com inexprimível alegria que anuncio, através desta crônica, o mais fantástico natal que esta cidade já viu e provavelmente verá. Chega de solarão no céu azul, em discrepância com o vermelho dos papais-noéis, chega de suadouro e de praia, frustrando as pistas de patinação e a neve sintética: tudo indica que neste fim de ano nosso natal será frio, senão gelado. Pelo menos em São Paulo – e é mais um motivo de orgulho para nos gabarmos para os outros estados, que, como nós, sempre sofreram da esquizofrenia entre os termômetros dos trópicos e o espírito natalino.
         Pode ser que seja arriscado cantar esta vitória agora: o tempo anda tão louco que tudo ainda é possível. Mas minha empolgação não tem limites: finalmente pude vestir pijama e pantufas em pleno dezembro, e o quadro se completa com um LP de George Gershwin – não à toa, a trilha sonora daquele filme do Woody Allen, “Manhattan”. É que sempre fomos a Manhattan subequatorial. Mas agora o clima ajuda. Neste natal, aqueles que têm o luxo de uma lareira poderão se esbaldar, até com aquelas meias vermelhas e felpudas, que vemos nos filmes, cheias de doces, enquanto crianças rosadas aguardam ansiosas o voo internacional do bom velhinho. Mas os que não têm, por escolha ou por fortuna, também têm privilégios:
         A av. Paulista.
         Ah, a Paulista! Meu coração se enche de caudalosa poesia ante a mais simples menção deste nome! Mas é indescritível! Mesmo infinitas resmas de papel branco e puro, ou mármore elevado, ou páginas num blogue da Folha, nada disto bastaria, nem sequer chegaria aos pés do verdadeiro ideal, se por acaso ou ousadia este que vos escreve se propusesse à homérica, à sacrossanta tarefa de descrever em todas as minúcias, em todos os ardis, em todos os mais vívidos e intensos detalhes esta avenida formosa, esta estrela d’alva da capital paulistana, ou melhor!, da nação brasileira! ainda não, do continente americano! Sem sequer mencionar a sua decoração de natal: as luzes borbulhantes do Conjunto Nacional; a teia iluminada nas altas árvores do Trianon; o visgo na pista do meio, do Paraíso à Consolação, com um simpático “Feliz natal” escrito em 58 idiomas diferentes; e, claro, aquele majestoso presépio pós-moderno, cheio de ursos, bonecos de neve, reis magos e outras coisas já tão tropicais quanto a anta e o tamanduá. A Paulista é, sem nenhuma dúvida, o passeio certo para namorados elegantes, para noivos apaixonados, para solteiros atrevidos, solteiras vicejantes, famílias dignas ou ainda mesmo, e falo por mim, para solitários e despretensiosos sonhadores natalinos. Em suas formas e luzes, é plena, e tudo abarca.
          E se sempre foi este monumento de urbanidade, esse charme excepcional, então o que não será este ano, com a temperatura na faixa dos 18 graus? Finalmente, um natal no inverno! Poderemos sair com nossos casacos mais finos, com os chapéus mais chamativos, com os sapatos mais rebuscados. E o melhor de tudo é que a Paulista dispensa pretextos: pode-se ir lá sem absolutamente qualquer razão, e não me refiro somente ao Masp ou à esquina da Al. Santos com a rua da Consolação. Pessoalmente, por rígido costume, vou lá todo fim de ano com bastante frequência, só para bater pernas, flanar, como se diz. Às vezes, lógico, acabo tomando um mate quente, indo ao cinema, empinando pipa, pescando paqueras, comprando um livro, comprando um lanche, comprando...
         Bem, é natural: na Paulista, comprar alguma coisa é tão simples e espontâneo quanto assobiar o “Hoje, é um novo dia, de um novo tempo...”. E é espantoso ver como, nessa época do ano, a avenida vai lentamente se enchendo de turistas de todos os cantos da cidade, do Brasil e do mundo, no mesmo ritmo em que se enche de parafernálias verde-vermelhas. Não é difícil distinguir suas origens: os gringos, lógico, estão sempre gringando, para cima e para baixo, como sempre. Os interioranos, normalmente em família, tiram fotos de tudo, do metrô ao prédio da Gazeta, da rua Augusta à praça Oswaldo Cruz, espantados, e com razão, pela grandeza ostensiva da artéria comercial-natalina. Já os da capital, como eu, passeiam esnobes e indiferentes, olhando com desdém para os caipiras que nunca viram um metrô e que parecem, mais do que nós, envolvidos por alguma aura mágica de natal. Mas no fundo nós também, naquelas calçadas largas, entre edifícios luminosos; entre casais de todos os tipos, numa licenciosidade que não se dão em outras ruas; entre pessoas normalmente bonitas, livrarias elegantes, cinemas cultos, shoppings diversificados, estações de metrô, bares, parques, artistas, enfim: nós também, em meio a tudo isso, estamos realizando alguma espécie de sonho de filme da Sessão da Tarde, e comungamos com todos os seres que passeiam naquelas calçadas.
         Comungamos. E comungamos pelo commércio, que, mais do que qualquer Jesus Cristo, nos une e sociabiliza nesta tão doce época do ano. Todos compram, levam sacolas grandes, das lojas de roupas, elegantes sacolinhas das livrarias, bolsas ecológicas com estampas descoladas. E vivemos, por algumas mágicas semanas, uma espécie aceita de delírio coletivo, que só peca por ainda não ser perfeito. Se dobramos uma rua errada, por exemplo, corremos o risco de cair em algum puteiro, de trombarmos com um mendigo fedido, de nos enfiarmos num bar sujo, com música de má qualidade e gente feia, suada e mal vestida. Nos shoppings, jovens bêbados e exalando hormônios perturbam a paz numa brutalidade abjeta.
          Às vezes nem precisa chegar a tanto: dezembro, normalmente, com o calor infernal que faz, fica difícil sustentar qualquer sonho elevado de plena sociabilidade moderna. Quem é que vive um sonho com 30 graus de inferno, numa avenida mal arborizada, concretada e cheia de carros! Acabamos bebendo cerveja e, quem pode, indo à praia. Mas esse ano, meus caríssimos, tudo indica que haverá a perfeição: a crise aqui não chega, a economia cresce e a temperatura é quase fria.
         Se tivermos sorte, neva.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A idade do cão


         A quem quer que se perguntasse na rua – ao dono do bar, ao sujeito da banca, até ao carroceiro – sobre o seu Borba, se receberia invariavelmente o mesmo sorriso de afeto. Seu Manuel Borba é figura querida, daquelas a quem se quer bem não porque tenha qualquer coisa de especial ou de excepcionalmente cativante, mas simplesmente por ser quem é, e por ser há tanto tempo. Com setenta anos, quarenta só daquela mesma freguesia, o senhor curvado, de olhos claros, elegante à moda antiga, tinha o dom da simpatia. Bastava passar em frente à alguma mesa ou algum comércio, e todos gritavam: “boa-tarde, seu Borba!” e “Boa-tarde, Totonho”
         É que quem não dissesse boa-tarde também ao Totonho caía logo no desafeto do bom velho. O que podia ser estranho para a gente nova na praça: não se via um sem o outro. Pena era que o segundo não fosse assim tão agradável. Totonho era o velho vira-lata do senhorzinho, pelo bom, outrora marrom e branco, mas já mais grisalhos do que o dono, focinho comprido e uns olhos desconfiados de todos que cumprimentavam aquele seu Deus e amigo único, que era o seu Borba. Se não falassem com ele, se punha a latir, ciumento. E mesmo se falassem: o cachorro tinha manias mineiras, nunca aceitava carinhos, ou aceitava só por condescendência, e isso quando tinha comida na jogada.
         Mas para o dono era mais meigo e engraçadinho que filhote, e ainda com toda a sabença e a elegância de um cachorro velho. Na cadeira cativa de seu Borba, quase todas as tardes, seu mútuo carinho e entendimento era de dar inveja aos irmãos e namorados. Quando se sentava, com um copo de café doce, o cachorro pouco a pouco se aninhava junto aos pés do dono, e este, entendendo o sinal, largava de cara os jornais para levantar o bichinho ao colo, e lhe falar mansamente, cheio de maneiras, expressões muito sérias, considerações. E o bicho reagia de tal forma que aquele monólogo com a criatura supostamente muda não poderia ser chamado de outra coisa senão de diálogo. De fato, era como se o cão respondesse. E era o único que tinha acesso às histórias e mirabolações do antigo funcionário do necrotério. Qualquer um que tentasse puxar assunto com o velho – como eu muitas vezes tentei, atrás das suas raras narrativas de velho servidor funerário – não levaria mais que alguns muxoxos, expressões cordiais e o mesmo e irresistível sorriso. Mas com o cachorro era tão falante, que às vezes, no mais profundo silêncio de rua paulistana, parecia partilhar cada intenso e remoto detalhe das suas vivências mais obscuras.
         Arranjara o bicho depois da morte da esposa, quarenta anos de casados. O filho ainda passou algum tempo em sua casa, para dar consolo e arranjar a vida nova, do seu fim de vida. Mas não se davam muito, nunca se deram, e logo seu Borba ficou reduzido à mais terrível das solidões. Como não quisesse sentar e esperar a morte, ele que passou a vida inteira trabalhando com cemitérios, tratou logo de adotar um bichinho. Filhote, Totonho ainda era simpático, mas foi amargando com o tempo, talvez pela vida de aposentado. Depois de quase quinze anos, sua rabugice acabou virando aquela manha penosa de cachorro velho, quase cego, meio manco, que embora tenha sempre sido um bruto com todo mundo acaba angariando simpatia pelo seu estado. Seu Borba não se dobrava: seguia levando o bicho aonde quer que fosse, e, quando até andar devagar se lhe tornou penoso, passou a carregá-lo no colo, como, aliás, já fazia de vez em quando.
         Mas ainda esses dias o encontrei, na banca, indo comprar cigarro, sem o cachorro. E me espantei.
         - Tarde, seu Borba! Mas... cadê o Totonho?
         O velho levantou os olhos tristes da gazeta e sorriu do mesmo jeito, feliz pelo cuidado geral pelo cachorro, e arrasado, certamente, pela ausência daquele seu filho e irmão.
         - Ô, Joaquim... o Totonho, hum, sabe, ficou lá em casa mesmo hoje... não está muito bonzinho, sabe? – e nisso torcia, aflito, a barra do paletó, como se afagasse o bicho ausente.  – Passou a noite inteirinha vomitando... ehn, tive de cuidar dele! Hoje ele vai ficar descansando. Amanhã já está bom. Chamei um veterinário, vai ficar bonzinho sim, bem rápido.
         Condoído na alma, por ver o que era um cão para um senhor de gravata verde e colete azul, tentei animá-lo, chamei para ir tomarmos um café, discutir os jornais. Mas ele, muito polido, recusou, sob o pretexto de ter de ir comprar alguns remédios. E nos despedimos.
         Alguns dias depois o encontrei mais uma vez, já ansioso por novas notícias sobre o sabujo Totonho, por quem passei a me preocupar. Mas a expressão do senhor, já longe do tradicional sorriso de inconteste cortesia, denunciava más notícias. Melhor era nem ter tocado no assunto, pensei, mas já era tarde: o veterinário tinha ido, e, bem, mesmo tendo medicado e feito alguns exames, agora o Totonho tinha dado para não comer.
         - Nem com a carninha que eu fazia pra ele quando ficava de manha – lamentou-se o velho, voz mais trêmula que nunca, marejando os olhos.
         Lembrei-me de passagem semelhante na morte de meu gato e me calei. Ainda fiz a mesma proposta de tomarmos um café, mas ele agradeceu e pretextou um compromisso.
         Quando deu uma semana que ninguém mais via o velho Borba, a rua inteira, ou pelo menos os habitués do bar começamos a suspeitar de uma tragédia. Que o cachorro ia expirar em pouco tempo, ninguém duvidava, mas o receio maior era o pobre do Borba, que podia não aguentar a violência desse tranco. Em caravana, eu, o Márcio, o Tobias e o Pelego resolvemos bater na sua casa pra pelo menos ver se precisava de alguma coisa. A luz – dava pra ver da janela – estava acesa, mas duas três batidas e ninguém respondeu .  Arriscamos a porta mesmo assim, e não estava trancada. Antes estivesse: a morbidez, que nos aguardava, seria assim guardada para Deus e pra si mesma.
         Num canto, sob a janela, no sofá, um Borba muito mais velho do que já era murmurava desacordado umas coisas desconexas, olhos vermelhos como brasas, de dar dó. E o pior: no centro da sala um altarzinho, muito caprichoso em se tratando de improviso, cercado de velinhas até de aniversário, abrigava um retrato do bichinho ainda filhote, junto de uma bola colorida. Ainda tinha uma coleira, um sininho, um tufo de pelos varridos, toda a dispersa reminiscência que o pobre Borba, desesperado e só, conseguira juntar de seu mais novo e falecido amigo.
         Quando nos viu, tentou desabrochar o velho sorriso cortês, murmurando.
         - Que bom que vocês... é a... é a missa... de sétimo-dia...
         E desmontou-se num choro angustiado. Meio perdidos, tentamos atinar o que se passava: no quintal, solene, se erguia agora um túmulo, feito em magistral improviso pelo próprio Borba, nesta semana de tortura. A cozinha abandonada, sem absolutamente nada, denunciava que a greve de fome do falecido cão tinha sido agora adotada pelo dono.
         - Márcio! – gritou o Tobias, se arrependendo depois por se lembrar de estar numa missa, falando baixinho – vai lá buscar um lanche pro seu Borba, vai! O velho está parece que não come!
         E lá fomos nós começar um mutirão de ajuda pro coitado. Só nessa noite, tivemos de alimentá-lo – contra a sua vontade  –, vesti-lo, niná-lo e arrumar a casa. O filho, um desnaturado, nem quis saber, quando conseguimos falar com ele, dizendo que cachorro não é motivo pra chororô, que o pai já era adulto, etc. Quem acabou cuidando dele fomos nós mesmos, revezando alguns serviços, fazendo turnos e rachando despesas. A coisa era tão grave que até tivemos medo de ele fazer uma besteira – era preciso estar de olho. Mas, depois do primeiro mês, de depressão profunda, a coisa foi parecendo ser solucionável. Admitindo a morte, foi se tornando racional, e até apático. Já não precisávamos estar lá o tempo todo, fazendo compras e dando comida, e com mais algum tempo o seu Borba, quarenta anos mais velho no andar e na aparência, voltou finalmente a seus passeios pela rua. Mas aquele sorriso, fonte de nosso afeto, tinha se perdido, junto ao cão, para a eternidade.

         Depois de um tempo, falando justamente sobre a solidão que ele devia viver, agora, sem o cachorro, já sem esposa e longe do filho, tivemos uma ideia brilhante, para coroar nossos esforços pra com aquele homem.
         - A gente devia era comprar um bicho novo pra ele... – sugeriu um Tobias já meio embriagado.
         A ideia foi imediatamente aplaudida. Mas que bicho? Uns queriam outro cachorro – rebati com veemência, alegando cinismo. Substituir o Totonho? O Márcio falou em gato, mas gato é bicho chato, que não liga pro dono. A conclusão unânime acabou sendo um papagaio, até porque o irmão do Pelego tinha um que a esposa queria porque queria que ele desse fim. Daí resolveu-se: é bicho bonito, parado, e que fala. Melhor que cachorro.
         Pouco tempo depois entrava o seu Borba, elegante como sempre, triste, passos lerdos. Cumprimentou a todos e se sentou no seu lugar, com seus jornais. Aproveitando a sua presença, fomos lá fazer consulta.
         - O seu Borba... bom você ter chegado...
         O velho levantou os olhos com melancólica simpatia.
         - Porque a gente aqui, seu Borba, é... a gente tava pensando, que desde que o... o Totonho morreu, sabe?, você não tem mais bicho...
         - Ai a gente queria te dar um outro!
         - Bicho, é? Hum... que bicho? - A simpatia do rosto se convertera em pura interrogação.
         - Um papagaio, seu Borba! – exclamei, triunfante. – É bonito, não tem que passear, e fala. O senhor gosta tanto de falar com bicho...
         Um segundo se passou de completo silêncio, como se o cadáver de Totonho se enroscasse por entre as pernas de seu Borba, lhe lembrando alguma coisa. Então, levantando novamente os olhos para nós, com muita calma, abriu como num milagre aquele mesmo sorriso, tão puro e cordial, que sempre nos cativara: mas, com o canto esquerdo levemente mais puxado, deformando a face inteira com galhofa, formava uma expressão de escancarado cinismo.
         - Bicho...? dá trabalho... e morre cedo. Só não é pior que gente.

         E foi a única história que arranquei de seu Borba sobre os seus tempos de funerária.

A mesa ao lado


Não se trata, de modo algum, de falar da vida alheia. Nem de especulação. Mas quantas vezes, sentados no canto de um bar, esperando um ônibus, na fila do banco, na biblioteca, em qualquer lugar em que não estamos sós, enfim, quantas vezes não nos chega quase por destino um rabo de conversa que no mesmo instante passa a integrar a nossa tarde e a nossa vida? E não porque seja uma novela, ou um barraco – que aliás também são ótimos de se ver –, mas mais por se tratar de um adendo indispensável à nossa própria existência, como a passagem que poderíamos ter vivido, gostaríamos de ter vivido, pelo menos para entender aquela outra pessoa que fala alto no telefone, o senhor baixo aflito com sua pasta de papéis, a criança morena fascinada com algum inseto: em suma, coisas simples que nos integram à humanidade, enquanto nos enfurnamos num livro, nos trancafiamos entre dois fones de ouvido ou simplesmente pensamos na morte da bezerra: o ônibus não vem? Vai chover amanhã? Será que ela vai responder?...
         E é bem nessas horas, por alguma ironia, que a vida na cidade acontece. Atentar para os detalhes, para as migalhas irrisórias de miséria ou de beleza que compõem os quadros mais banais da vida urbana: seria o trabalho ideal do cronista. O dia-a-dia é confuso, e só em alguma sociedade perfeita é que se poderia exigir de todos que atentassem para seus irmãos e irmãs no puro acaso. É preciso, mais do que nunca é preciso que alguém se disponha a coletar esse material disperso, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança: algo de seu conteúdo humano, que torna a vida mais digna de ser vivida, a cidade mais dócil de ser habitada.
         É nesse propósito que, ainda que temporalmente (ou seja, enquanto há tempo), oferecemos ao hipotético leitor deste pseudoperiódico este pequeno contributo, dessufoco  de algumas terças-feiras. E não é à toa: terça é aquele dia em que a semana se impõe – de segunda a semana ainda é vaga –, e a alma perturbada com tudo de prosaico que se compõe em pão, em banco ou em sono acaba procurando involuntariamente algum sentido neste correr de dias, nesta faina infindável e, não raro, vazia. Pois o pior é que é só terça: ainda faltam pelo menos três dias...
         Portanto, leitor hipotético, tome fôlego, pegue um ônibus, mas resista! Não ligue a música, não abra um livro, não se afobe: escute o que se passa a sua volta, qualquer que seja a cidade, a rua, ou a hora do dia. É um convite deste humilde cronista, que tanto já andou de ônibus, de metrô e de trem, que já filou cigarro em muitos pontos de ônibus, já pediu água da pia e já pediu informações, quase dormiu no relento, e que agora, que lhe sobra um tempo, acha digno compartilhar essas histórias, bem como o olhar que as entretece nestas linhas.

         Grato pela atenção
         Joaquim Terêncio