domingo, 5 de maio de 2013

Saudoso José




            Peço a licença dos eventuais leitores – se é que eles existem – para tratar neste fim de semana de coisa diversa das que costumam ter lugar aqui, nesta página. É que, pelo efeito ambíguo do costume, pode ser que estejam esperando alguma anedota pretensamente engraçada, construtiva, ou com manias de sentimentalismo – e hoje esta coluna estará mais para um obituário tedioso, ou um afetado panegírico: as duas possibilidades humanamente disponíveis para a estupidez incontornável da morte. Peço, então, àqueles que esperavam saborear uma comédia de costumes, para fuçarem em outros blogues, como os que recomendo na coluninha da esquerda, para depois não culparem eventualmente o autor por terem gastado o seu precioso tempo de internet com uma coisa assim tão chata.
            Começo e termino num velho boteco da Cônego Eugênio Leite, rua onde morei e moro com a graça de Santa Luzia já há vinte anos, dois dos quais num sobrado bem em cima do tal do boteco. Ainda nesses tempos – aos quais, não se tratassem de apenas cinco anos atrás, eu me referiria de alma cheia pelo nome de “tempos de juventude” –, nos meus vai-e-vens pelas esquinas, nas escapulidas para fumar longe do olhar de meu pai, ou nas simples batidas de perna pelo bairro, sempre percebia, na ânsia de uma nova convivência na rua velha, o mesmo circunspecto e barbado cidadão, invariavelmente sentado atrás das folhas do Estado de São Paulo ou da Gazeta de Pinheiros, com um maço de Free Light e, depois do meio-dia, uma garrafa de cerveja. Não me lembro exatamente por que ou quando, mas num dia de dureza, mendigando cigarro, demos finalmente para conversar – pela gentil intervenção de Seu Medeiros, o dono do boteco, talvez. O tal sujeito se chamava José Ibrahim – e eu passaria a chamá-lo de Zé.
            - Eu já sou aposentado – murmurou num tom grave, limpando a espuma de Brahma da barba grisalha, ao redor dos lábios grandes e frouxos, que projetavam seu rosto sério para baixo. – Mas ainda trabalho... com sindicalismo, essas coisas....
            E não era de ontem: desde os tempos do ronca e de Dom Pedro Cipó Pau... principalmente do pau, e do chumbo. Se metera em algumas greves – na famosa de Osasco de 68 –, e até na luta armada contra o regime militar; conhecia o então presidente em pessoa, velhos companheiros de greve. E até do sequestro...
            - Aquele do embaixador...?! – perguntei, desacreditado.
            - É. Do embaixador americano... mas eu não participei – desviou os olhos opacos para a rua ensolarada –, na verdade eu... tem um documentário, que fizeram, acho que ia te interessar.
            Hércules 56 – o avião militar com que fui, certa feita, a Manaus, e que tinha sido, como descobri pelo documentário, o mesmo avião, comprado da sucata norte-americana, que levou os 15 trocados pelo embaixador Charles Burke até o México. E de lá para Cuba... no vídeo, em uma sala escura com os ex-presos espalhados por sofás, o mesmo rosto moreno a que me habituara ver envelhecido, sério e barbado aparecia extremamente jovem, olhos vivos, devorando grandes bolhas de fumo de um charuto, oferecido pelo próprio Fidel Castro, que se sentava ao seu lado...
            Mal terminado o filme, ainda atônito com a confluência de dois séculos tomando cerveja ali na rua, desci rapidamente a escadaria do sobrado para o boteco, doido para encontrar aquele herói sobrevivente.
            - Mas Zé! Você tem história, hein?
            Ele se riu, o seu riso largo e astucioso, e passou mais uma tarde me contando dos seus tempos de luta. Depois descobri que não o conhecia de agora – na verdade, quando pequeno, brincava com seu filho, estudávamos na mesma escola e morávamos na mesma rua... onde ainda moravam. Mas aquela nova afinidade, mais espontânea, que só poderia surgir entre um senhor vivido e um jovem curioso, era muito mais sólida do que qualquer recordação.
            Conversávamos algumas tardes inteiras. E já não mais só sobre os anos de chumbo, o cenário pré-golpe; mas sobre as mudanças do bairro, sobre cigarros, sobre a atualidade brasileira. Ia muito a Brasília, tinha um cargo importante, estava sempre por dentro. Ainda nas presidenciais de 2010, ponderava de maneira acertada:
            - Não... enquanto o PT tiver o PMDB, ele governa. E como governa! – exagerava eu, exaltado, e meio nervoso diante das proporções históricas de minha companhia de mesa.
            - É Pedro... governar ele governa, mas o PMDB pra eleger a Dilma vai querer aumentar o pedaço do bolo. Quem vai governar nos próximos anos é na verdade o PMDB.
            Me opunha, conforme as possibilidades, num impulso talvez inconsciente de aumentar meu próprio tempo, politicamente disforme e confuso, ante aqueles que na minha imaginação ainda pareciam os anos mais instigantes e importantes da história brasileira. Mas eu era, como ainda sou, ingênuo e inexperiente demais, e as conversas de um sujeito com 40 anos de política acabavam sendo, apesar da cerveja, mais do que diálogos: verdadeiras aulas de história e política.
            Um dia demos para discutir marxismo – tema espinhoso para quem quer que seja, mas ainda mais para quem lutou por ele, em seu modelo político, e o viu se desmanchar vergonhosamente em menos de dez anos. Já exaltado por algumas cervejas, nos primeiros anos de faculdade, me pus a defender novas ideias, a renovação do marxismo, seu tempo estrutural, o fim do dinheiro, e outras enrolações. No começo da conversa, ele e seu amigo – um senhor gordo e grisalho, bastante bonachão, que viva fazendo gracejos para que eu lhe desse um chapéu igual ao meu – ainda me ouviam interessados, discutiam, traziam informações. Mas com o passar do papo, pelas suas expressões entediadas, quase aborrecidas, percebi que tinha finalmente me tornado o tipo do moleque petulante. Quando percebi ainda tentei mudar de assunto, falar de amenidades, mas já era tarde: havia estragado o humor daquele almoço.
            Assim como o de alguns outros... conforme a relação se aprofundara, nossas ideias mais específicas se mostravam cada vez mais incompatíveis. E depois desse episódio – não sei se por causa dele, ou se ele mesmo tinha sido consequência de alguma transformação – começamos a nos ver cada vez menos. E não à toa: de meu lado, faculdade e trabalhos começavam a tomar cada vez mais o tempo e a dedicação que, no colégio, eu dispensava à vida do bairro e à conversa com seus moradores. Já do lado dele, sua atuação sindical aumentou; passava semanas inteiras em Brasília, articulava uniões, já não estava sempre na mesma cadeira, atrás dos jornais com seu maço de Free.
Nos últimos dois anos, se nos encontrávamos, era de maneira fortuita e apressada. Tinha até mudado de bar – brigou com o seu Medeiros, foi para a rua de trás, imaginem. Só recentemente, um sábado em que eu por milagre não tinha aula, e que ele esperava por alguém no velho boteco da Cônego, foi que deu para conversarmos direito, quase à maneira das primeiras vezes, quer dizer... com aquela mesma leveza, compreensão e interesse mútuos, ainda que por outros assuntos. Quando seu amigo chegou, conforme nos despedíamos, me abraçou e apresentou, rindo como ri um avô:
            - Esse rapaz aqui – virou-se para mim – me deve uma fortuna em cigarros! Lembro dele ainda moleque, vivia duro, e o pai dele dava umas coças por ele fumar. Era eu que salvava a pele dele! E agora virou essa coisa...
            E me deu alguns tapas nas costas, num afluxo de nostalgia e bem-querer.
Depois desse dia só fui vê-lo ontem, no mesmo bar, quase na mesma mesa, mas de maneira completamente outra. Quem me chamou a atenção foi o seu Medeiros, apontando para uma folha de jornal, com uma foto dele, pregada no orelhão em frente – onde deve ficar alguns dias, tão conhecido ele era pela freguesia do bar e do bairro. Depois de sobreviver à tortura e ao exílio, faleceu, aos 66 anos, de enfarto fulminante, nesta quinta-feira, dois de maio. O meu consolo de não poder se despedir – quem aliás tem tal privilégio? – foi justamente a data e o local: ele ainda conseguiu participar de um último Primeiro de Maio, no campo de Bagatelle; e eu fiquei sabendo de sua morte sentado na mesma mesa em que fiquei sabendo de sua vida.

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