quinta-feira, 13 de junho de 2013

A tripla farsa

            São quase onze horas da noite e mesmo assim, daqui, do velho apartamento da rua Cônego Eugênio, ainda se ouvem os apitos estridentes das sirenes deslocando-se freneticamente. Penso, olhando a paisagem, num marciano que desembarcasse em São Paulo: acharia estarmos em guerra, e pior: vendo os rostos apinhados em torno das TVs dos bares, dos lares, das lojas, julgaria tal guerra tratar-se de um fenômeno corriqueiro, como a novela das 7. No caminho do centro para casa, ao passar pela Paulista, pude ver que uma nova praça de guerra se armava quase na esquina, à terrível imagem e semelhança da que pude presenciar na av. Consolação. Pela Dr. Arnaldo luzes vermelhas de camburões e ROCAMs riscavam a noite como tiros alucinados. Certamente, pensaria o marciano, os comunistas, os tapuias, os paraguaios ou os alemães estão para receber reforços na frente ocidental, e é preciso agir com energia.
            No céu, cinco helicópteros.
Mas de fora na av. Ipiranga e no começo da Consolação o mesmo marciano que teve por infelicidade aportar em São Paulo poderia, a essas horas, suspirar aliviado, já que saberia que a brutalidade é coisa tão trivial quanto corriqueira: o comércio, pequenos camundongos, punham seus bigodinhos para fora das cortinas de aço e, certificando-se da ordem cívica, quotidiana e apolítica, voltavam a servir fumegantes cappuccinos, chopes espumantes e sapatos para todos os casais que não conseguiram comemorar o Dia dos Namorados em tempo, e para os estudantes do Mackenzie e trabalhadores da região, em geral . Na Maria Antônia, já imperava a descontração, apesar de o vento, vez ou outra, trazer inconsequentemente os farrapos fedegosos das bombas de efeito moral, do gás de pimenta, da fumaça, enfim, dos restos da guerra que se alastrava Consolação acima.
São Paulo respira normalmente, a noite avança com temperatura amena. Embora com cicatrizes: na Augusta há lixos revirados, restos de fogueiras, comércio ainda fechado e, pasmem, esboços ou projetos de barricadas. A GCM, em formação marcial de fila, vela pela calma dos casais. A praça Roosevelt está sob estrito controle: aquele que quiser degustar o ar fresco da noite, levar o cachorro para evacuar ou mesmo andar de esqueite, pode ficar à vontade: cerca de dez viaturas estão estacionadas no local, e policiais devidamente armados, de trinta e oito a trabucos, em postos estratégicos, vigiam pela paz em cada esquina da baixa Augusta.
De um boteco na Rua Maria Antônia, enxugando as lágrimas e esperando o coração desacelerar, eu assistia ao desfecho da dupla farsa, degustando simultânea e anacronicamente certo sabor de 68, pela influência do local e pelo barulho insuportável das bombas. Refugiei-me para tomar um guaraná: no quebra-pau, conforme a polícia nos isolava e cercava na nova Praça Roosevelt, topei com o filho do meu professor de grego – um rapaz de 13 anos que lê Freud e Turguêniev – mais uma amiga sua, ambos com lenços no rosto e um tanto quanto desnorteados diante do caos apavorante em que se convertia a primeira manifestação das suas vidas, a que tinham ido sem a autorização dos pais. Ainda tentei metê-los dentro do Supremo Tribunal, mas o coração Justo dos servidores, disposto a assistir o circo incendiando de detrás dos vidros, já não mostraram tanta disposição assim para acolher duas crianças diante da cortina espessa de pimenta e efeito moral, da multidão amedrontada, do avanço do choque, das bombas, dos trabucos, dos camburões, das balas soltas.
Resultado: ficamos encurralados, nós e mais alguns. Sorte imensa não terem nos linchado ali mesmo. Alguém tinha vinagre, a irmandade da ocasião se impôs. Até que a linha de frente abriu uma brecha, e, com um moleque debaixo de cada braço (o que muito provavelmente me serviu de passaporte), passamos pelo lado e fugimos, entre estilhaços de vidro, pedaços de pedra e restos de fogueiras. Ruas vazias, camburões atravessados pela avenida perplexa. Uma linha do Choque fechava a Maria Antônia, e um deles gritava, trabuco em punhos, qualquer coisa contra um repórter. Era a guerra, ainda que assimétrica. Lembrei-me de alguns vídeos e fotos do 1º de abril de 1964, e pus-me a assoviar o hino nacional – mas ninguém entendeu.
Era a farsa, e ninguém, aparentemente, está entendendo nada. Nos botequins e estacionamentos, as pessoas assistiam pela televisão o que acontecia a duas quadras dali, sem sequer ter a curiosidade de dobrar uma esquina e ver ao vivo e a cores. “As imagens”, como diz o Datena. Mas, a primeira de todas as farsas: a “revolução” televisionada. “Isso é Goebbels”, me disse, num misto de ironia e desespero, meu professor de grego, que a essas tantas já tinha chegado atrás do filho, entre orgulhoso e emputecido pela ousadia do rapaz.
“E isso é Marx”, disse por fim, enquanto caminhávamos, chutando os pedregulhos e cacos de garrafas espalhados pela calçada. “A farsa”. Coisas que, como bombas e balas, dão no mínimo sobre o que pensar, se não sobre o quê chorar, agora já beirando a meia-noite, no mesmo apartamento, embora somente com o barulho dos caminhões de lixo que limpam a cidade para seu outro dia de fumaça e lixo. As sirenes se calaram. Leio nos jornais que mais de cento e cinquenta foram presos. As duas farsas foram concluídas: os telespectadores tiveram sua ração de sangue; eu, e muitos, a nossa de subversão. Ambas resumidas em uma única tragédia.
Quando, em que manhã, ao abrir a página de um jornal, conseguirei enfim ler nas linhas a justiça efetivada nos fatos? No Brasil, para o bem ou para o mal, temos o costume de rir muitas vezes que deveríamos chorar. Fico sonhando com o dia em que as notícias só me farão sorrir. Hoje, na manifestação, gritava-se “o povo acordou”, e de fato, até a chegada na Maria Antônia, a beleza e a justiça de tudo aquilo somavam-se numa confortável e farsesca sensação histórica, de despertar de algum porvir mais justo. Bem, sabe-se como tudo acabou. Vinte anos de ditadura seguidos de Sarney, Collor e Fernando Henrique, mais os ambíguos anos de Lula e sua gestora deram numa politização perneta, resumida ao período de eleição, e não estendida a tudo de político que nos toca. Não sabemos nos manifestar, estamos pesquisando. O Estado e a sociedade civil, pior ainda!, não sabem se portar diante da ação direta. Mas num boteco dois homens, mesmo que assistindo TV, se solidarizam ao me ver sentar, de olhos vermelhos, e puseram-se com ardor a praticar um dos mais antigos esportes brasileiros: meter a língua no governo. Dois moleques contrariam seus pais e vão na manifestação, por curiosidade, e, além de aprenderem com a vida, ainda me ajudam a me safar, na sua imponente fragilidade. O Datena muda de ideia com a mudança de Ibope.... bem, chega.

Ah, Vida futura, és difícil mas sem ti, esta noite, me recuso a dormir.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Na falta de crônica


Vai qualquer outra coisa, e aviso logo: isto aqui não é uma crônica.

Venho tentando compor, dos retalhos confusos de uma vida insossa, pequenas anedotas, comentários, ou mirabolações sobre tudo que se passa ou que poderia se passar nesta triste capital de estado sulista. Mas esse fim de semana não deu. E por um certo tipo de maldição moral, que empurra os escritores para a máquina mesmo que só pra sofrer de tédio, cá estou eu explicando as minhas faltas para o leitor que, muito provavelmente, está cagando para meu atestado de incompetência.
            E é pior: não há nada de original nesse tipo de artifício. Lembro-me agora de Drummond, no seu formidável “Cadeira de balanço” – mas não sei ao certo o que o poeta inventou no lugar da crônica faltante. Certamente não foram desculpas. E de fora ele mesmo ainda cita, por escrúpulos, outro caso de inadimplência literária confessa, referindo-se ao autor apenas como “o célebre cronista”, que me parece se tratar de Rubem Braga.
Ou seja: já não bastasse não ter escrito, não ter o que escrever e estar enrolando desculpas, de quebra ainda corro o risco de estar fazendo plágio, quase um biplágio, um plágio terceirizado, uma monstruosidade, enfim. Mas se contasse tudo que me privou, nestes dias, do convívio torturante e maravilhoso do Microsoft Word, teria ao menos o consolo da irreprodutibilidade inata de cada vida, e, dentro dela, a unicidade de cada fim de semana.
Lá vai um esboço.
            O escritor – na cabeça de qualquer ser honesto que queira ser um escritor – é uma espécie de santo. Deve se manter impassível diante das tentações terrenas, eternas e modernas, fazer da vida o que também o Drummond já dizia em seus versos: “um sol estático, que não esquenta nem ilumina”, ou qualquer coisa assim. Deve dormir pouco ou quase nada, acordar muito cedo e ter sonhado com imagens e motivos para a sua nova obra experimental-surrealista, que está para escrever já há dois anos e que muito provavelmente morrerá sem escrever, dilacerado em crônicas, resumos, resenhas, e quinta-colunismos em geral.
A boemia cai muito bem em filmes hollywoodianos, ou na imaginação glamorosa de certos inocentes – mas é inimiga feroz da literatura. Primeiro porque no tempo em que você enche seu copo de Brahma, comprada por sete reais à garrafa, era pra você estar em casa começando o seu romance. Depois porque, bebida a primeira a segunda a quinta garrafa (R$35,00 que você não tem, porque não escreveu nada), você começa invariavelmente, na sua inconsolável frustração de escritor perdido no mundo, a falar das obras e manobras que você está fazendo ou que sem sombra de dúvida ainda há de fazer, corrompendo seus projetos com estúpidos e etílicos arroubos narcisistas, submetendo-os aos intermináveis pitacos das mais antipoéticas criaturas da noturnidade (poetas sem versos, pintores sem telas, músicos sem melodias) e por fim – questão de saúde pública – caceteando o lazer de todos os infelizes que tiveram por bem se sentar à sua mesa, excluindo pela chatice qualquer possibilidade de arranjar companhia que te arrefeça as frustrações alcoolizadas.
            Inevitável conclusão: bêbado, sozinho, e, dependendo dos tipos com que anda, com uma conta onerosa registrada seu nome.
            Outra abominável armadilha para pegar escritor é a internet. Em tempos de pouco lirismo, nada mais caduco do que o escritor sentado atrás dos papéis em uma vasta escrivaninha de mogno, presidida pela majestade nostálgica de uma Remington ou de uma Olivetti, com bustos barbudos prendendo folhas soltas e um cinzeiro abarrotado de bitucas. O escritor de nossos dias, se não quiser ser mais anacrônico do que já é par excellence, tem que trabalhar com um computador: se moderno, usará o Windows; o pós-moderno não dispensa o Macintosh. E ambos serão igualmente tentados, ao finalmente conseguir se sentar junto à máquina com o intuito de escrever, pelos detalhes coloridinhos dos ícones do Chrome, do Explorer ou do Firefox. E daí já é um abismo sem volta, um labirinto de abas e janelas... notícias frescas, e-mails importantes, vídeos engraçados, letras sentimentais, joguinhos viciantes, mensagens intensas...
Isso para não mencionar o Facebook, que já seria uma crônica à parte... e isto, antes que eu me esqueça, não é uma crônica. É antes qualquer coisa de desagradável, uma confissão absurda de um incompetente que não conseguiu dois dias para escrever uma reles historinha, um causo, qualquer coisa de minúsculo e de humano que mereça ser contado para a alegria de poucos, sem que o autor, espécie de evangelista, ganhe o que quer que seja por isso. Mas pelo contrário.
Poderia contar, num artifício retórico, das peripécias que me afastaram das letras nesta última semana. Da pomposa festa junina de anteontem, e da consequente ressaca de que ainda me curo, depois de ter bebido uísque com gim e batida de maracujá, ensinado forró a uma francesa, escorregado no trânsito e quase voado pra debaixo de um carro pra acabar às quatro da manhã comendo macarrão com minha mãe, também chegada da balada, no velho apartamento da rua Cônego Eugênio. Poderia falar da polícia montada, que estava na Vila quando quase fui atropelado, desfilando pomposa e fedegosa pela rotatória da Fidalga, e que hoje passou num trote calmo e ameaçador pelas portas desse restaurante, em cujo subsolo eu vos escrevo... ou ainda, quem sabe?, descrever a quermesse da Igreja do Calvário, com seu animador tão insuportavelmente animado que seus gritos alcançam até mesmo este buraco onde eu tento me isolar, tornando este ingrato ofício de beletrista fajuto ainda mais impossível... e vou parando por aqui. Todas essas histórias, reflexos vagos de um conteúdo humano, seriam assuntos, talvez, para uma ou duas outras crônicas.

E isto não é uma crônica. É só o que deu pra fazer.

domingo, 2 de junho de 2013

Meia-noite e vinte


Na flutuação dos preços, um minuto vale ouro.

           Para a alegria dos dois sujeitos, irmanados pela espera naquela noite fria de junho, o último ônibus daquela linha veio passar cinco para meia-noite, dispensando táxis e desesperos. Sábado, e numa linha dessas raras e pouco frequentadas: o ônibus andava com a parte da frente no escuro, o cobrador cochilava, e bem no fundo se aninhava uma senhorinha murcha e encasacada – o único passageiro antes que aqueles dois subissem.
            Um deles, mais afobado, mal entrou e passou logo a catraca, cutucando polidamente o cobrador para que, com efeito, cobrasse, indo em seguida para o canto oposto ao da velha, onde capotou. Já o outro, de índole mais indecisa, hesitou alguns minutos na falta de inspiração para lugares, antes que se decidisse pelo exemplo do ex-companheiro de espera. Levantou-se do banco da frente, em que se apoiara, por pouco não sai voando numa curva violenta, enfim se estabilizou e pôs-se a escarafunchar as dobras e redobras da carteira, atrás do troco contado para a passagem de volta – uma pilha de moedas em valores multiformes.
            Mas ao estender o dinheiro para o cobrador mal-humorado, acordando-o num “boa-noite” quase mudo, o que recebeu quando ele terminou de contar cada moeda foi um dedo apontando o relógio do passa-cartão.
            - Já é três e vinte.
            - Como? É meia-noite ainda...
            - Então! – resmungou o cobrador com impaciência, como se fosse óbvio.
            - Então...? Se é meia-noite, não pode ser três e vinte – o pobre do sujeito, não bastasse o sono, de quebra ainda estava confuso.
            - Sabe ler? Ali, ó. – e apontou com negligência para o “Jornal da SPtrans”, onde se lia, num informativo colorido, com tipografia simpática, que a partir da meia-noite do 1 para o 2 já passava a valer o aumento da passagem.
            O homem mordeu o lábio com aflição, sentindo-se pequeno em sua ignorância dos movimentos financeiros, do relógio e do transporte. Mas sabia que eram só vinte centavos, e que ia conseguir dar um jeitinho...
            - Vixe, moço... eu nem sabia que era agora, não... quer ver só? – abriu a carteira, revirou cada meandro de seus infinitos compartimentos, para somar por fim, tendo quase arregaçado o couro velho e sujo, mais cinco centavos ao que já tinha entregado.
– Moço, é tudo que eu tenho.
– Ih... daí embaça, ein? – respondeu numa careta o velho da catraca, no claro e sádico intuito de alegrar um pouco o seu sábado às custas daquele pobre coitado. – Tem câmera aqui no busão, filho, se o fiscal me pega...
            Semelhante explicação, chamada em bom português de “migué”, fez com que o infeliz das moedas perdesse a compostura.
            - Porra irmão, mas o cara ali acabou de pagar três reais, que eu vi! Por que é que justo eu agora tenho que pagar essa merda de vinte centavos! Cê tá de sacanagem!
            - Calma lá, calma lá, pode abaixar esse tom! Ele passou antes da meia-noite... se você tivesse feito o mesmo, não tava aqui agora enchendo o meu saco. A cidade inteira sabendo do aumento e só o trouxa aí chega à meia noite no meu busão pra ficar criando caso. É mole? Tá achando que é fácil? Não dá pra andar de graça não, mermão!
            - Mas, caralho!, são só vinte centavos! – desesperava-se o possível estelionatário ante as proporções que a situação assumia.
            - Porque não vai sair do seu bolso, né, vagabundo!
            E prosseguiu a patética discussão por mais alguns pontos, avenidas e ruas. O motorista ria sozinho, do seu canto, só esperando pelo desfecho daquela inédita comédia; o outro homem, vendo que sobrava até pra ele, fingiu continuar dormindo. Uma hora alguém acabou fatalmente pondo a mãe no meio, e a coisa ameaçou ficar séria: os dois estavam quase se agarrando quando uma voz fininha e trêmula se enfiou no meio, conciliatória.
            - Toma, meu filho, uma moedinha pra pagar o moço. Não precisa brigar. – sorriu a até então amoitada velhinha, tirando um Deodoro amarelo de um moedeiro estampado com flores.
            - A senhora é muito gentil – se apressou o cobrador, antes que o sujeito pudesse esfregar o dinheiro na sua cara – mas esse cara aqui não fica no meu ônibus mais não, nem pagando vinte reais! Vai ficar é na rua, vai descer agorinha mesmo! Ouviu?! Milton, pode abrir pr’esse porra aí antes que eu perca a razão! Vai, vaza!
            Pasmo com o desfecho inesperado, o sujeito ainda ameaçou se indignar, mas um rápido olhar pela janela fez com que abaixasse a cabeça, respirasse fundo e murmurasse um “sim senhor” resignado. O tal do Milton, rindo feito o diabo, enfim encostou o ônibus e abriu a porta da frente, por onde o sujeito, quieto, desceu a passos lentos com as moedinhas na mão.
            “Assim que se viaja de graça!” sorriu, guardando o troco na carteira e pegando o caminho de casa, a uns vinte minutos daquele ponto.