quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Demolidor de moinhos

     O  final do encontro, que de qualquer forma já se anunciava, foi dramaticamente marcado por uma notícia perturbadora: tinham chegado no terreno com máquinas, disse a dona do posto ao lado, companheira de urbanos quixotismos, e parece que iam pôr tudo abaixo, na calada da noite, como já tinham feito. Mas deram azar: estávamos lá mesmo, na outra esquina, e já num clima de articulações, de modo que foi só juntar as tralhas e ir para lá, com câmeras, ânimo e até, se precisasse, telefone da polícia na mão.
         Dessa vez não ia ser como na última. O casarão foi derrubado assim, tínhamos clara a lembrança: na calada da noite... baixaram lá com retroescavadeiras, operários, enfim. Dizem as testemunhas que começaram o trabalho pontualmente às sete. Às oito já não havia mais nada, o terreno estava vazio. Segundo o sacrissanto direito à propriedade, tudo em ordem, mas... ainda há alguma justiça neste país, e o imóvel havia sido encaminhado para o tombamento. Mas não teve nem discussão: o casarão já não existia, o que se pode argumentar? Depois a história é conhecida, a luta, simbólica, antes de mais nada, pela criação de um parque em frente ao colégio Godofredo Furtado, para aproveitar o espaço magnífico que ficou lá, vazio, com árvores gigantescas, maravilhosas. Há quem argumente, na inocência nociva do progresso, que já que foi posto abaixo mesmo, bolas, que se construa alguma coisa por lá, um condomínio residencial de não sei quantos andares, um “kinoplex”, clamam os tupiniquistas. Mas a coisa não é bem assim: já passou a hora de dar um basta. Apartamentos por mais de um milhão cada um...! Onde que isso democratiza o espaço do bairro? Muito pelo contrário. Só corrobora com a elitização, que expulsa, pouco a pouco, os moradores tradicionais, em sua maioria velhinhos, artesãos, lojistas, pequenos comerciantes, gente, essa sim, humilde, que é obrigada, ante o aviso de despejo e a delirante vertigem dos preços imobiliários, a ir com as tralhas para a periferia.
         Todas essas ideias já foram muito bem repetidas. E mesmo assim lá iam os donos do terreno, mais uma vez, nos fazer de trouxas. A liminar ainda não caiu, e tudo segue em discussão. Se fossem derrubar o que restou no terreno, seria apenas mais um desafio, uma humilhação às nossas quixotescas (e por isso tão nobres! Quem não quer viver numa cidade melhor?) reivindicações. Já chegamos lá com sete pedras em punho, eles que tentassem. Não somos mais um bando de idealistas, não só: advogados, jornalistas, funcionários públicos, todos estão engajados, conforme a sua especialidade e experiência de vida e luta, nessa pequena grande causa. Compraríamos a briga no atacado. E se não vencêssemos, que ao menos o inimigo perdesse um bom tempo lambendo as feridas.
         Em frente ao terreno praticamente baldio, repleto de árvores frondosas na colina que o caracteriza, só havia mesmo uma guarita, onde um homem simples, agasalhadinho, dormitava. Claro que as pedras foram jogadas ao chão, brigar com ele? Fomos claros: não pode mexer em nem uma folha, por tais e tais razões. O senhorzinho entendeu tudo, concordava, só estava trabalhando. Disseram que a retroescavadeira era só pra limpar o terreno, estava cheio de entulho, precisava mesmo de limpar. Mas ia ligar pro engenheiro, explicar a situação, o povo aqui é alarmado, não vai deixar passar batido não. De qualquer forma chamamos a polícia, vai saber... o homem concordou, ainda mais de ter ouvido a história da demolição do casarão, imagine!, se riu, na calada da noite, isso não se faz, tem que respeitar... ainda mais pra levantar condomínio pra grão-fino, vê se pode... ia ligar pro engenheiro mesmo, dizer tudo, o povo aqui não dorme em serviço. Só estava trabalhando.
         A polícia, a bem da verdade, não chegou ainda. Parece que há uma hierarquia de sangue nos atendimentos, quer dizer, quanto mais sangue, mais rápido eles chegam, o que é muito natural. E o nosso caso era uma retroescavadeira. Estava lá, no alto do morro, parada, animal de sono, imóvel, neutra, até que os homens a despertassem... talvez a máquina também não faça as coisas por vontade, é obrigada, é o trabalho dela. Não sabe da lei, e mesmo se soubesse: é paga para isso.
         Mas nós não ganhamos nada, nem um tostão. Talvez a alegria de saber que não estamos sós, o sofrimento não é mais isolado, estamos juntos. E um mostra as fotos da casa em que passou a infância, hoje demolida, outro lembra do córrego que passava na Henrique Schaumann, do mosteiro que virou estacionamento... chega um sujeito novo, quem será?, é jornalista, quer ajudar, tem informações novíssimas, importantes. Tudo por amor, pode-se dizer. E vamos abrindo caminhos, tortos, de paralelepípedos, mas apaixonados, na esperança (tão batida quanto nobre!) de uma cidade melhor. “Saudosistas!” clamam alguns, sem saberem-se eles mesmos saudosistas, comprando no atacado a ideologia caduca do progresso, getulista, militar, do século passado. Porque quem pensa de verdade no futuro, aliás, no presente!, somos nós, e todos aqueles que trabalham em silêncio, com calma apaixonada, pela preservação e melhoramento daquilo que já existe de bom. Londres, Paris, Moscou, Roma, Rio de Janeiro, Buenos Aires. Cidades que provam que ainda há uma convivência possível entre presente e passado, com perspectivas de qualidade de vida. “Mas isso daqui não tem mais jeito”, confessam os homens de pouca fé, entre a preguiça e a mesquinhez. E rebato, no chavão da primeira república: “derrotistas!”.
Tudo, menos o derrotismo. Enquanto houver vida, e gente decente, haverá o possível, mesmo que no papel leve o carimbo sujo do impossível. Mas ainda sairá do papel, seja o projeto do parque, concreto, visível, seja a fotografia da infância, remota e doce, mas que ganha vida na perspectiva da nossa própria velhice, e num futuro em que, queremos, nossos filhos poderão brincar com a calma e a dignidade que tivemos. E que se perdem na generalização, roídas pelas traças da indiferença farisaica.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A volta das capivaras


  Lê-se em reportagem da Folha de São Paulo do dia 19 de setembro do ano da Graça que, até 2015 o rio Tietê, bandeira da capital paulista, não federá mais. Trata-se de uma promessa espetacular, melhor do que todas as outras de campanha já feitas em nossa história, até porque, finalmente, Alckmin não poderá se reeleger, sendo notoriamente a vez do Serra. Isso se o osso da República tucana for finalmente entregue a Minas, e a proposta de campanha for finalmente esclarecida como “Viva a república do café”.

         Mas não posso deixar de me decepcionar com o atraso da proposta: o rio deveria estar apresentável até 2014. De que cor nos pintaremos quando todos aqueles estrangeiros nos visitarem durante a Copa? Vai que, suponhamos, faz o calor que tem feito e sobe aquele cheiro... tremendo papelão. Mas não me queixo. Contentemo-nos com os princípios da honestidade: nenhum rio cercado por dez ou mais autopistas pode ou mesmo deve cheirar bem, se formos pensar faz até parte da paisagem... o Tietê é motivo de orgulho, famosíssimo em todas as outras capitais da Federação, e não por sua tristeza, pelas bandeiras, pelos versos de Mário de Andrade: ele é famoso pelo cheiro. Claro que também há máximas como “cheirinho de Copacabana”, e pessoalmente tive experiências olfativas memoráveis no porto de Manaus, mas é com orgulho e honestidade que afirmo: não chega nem aos pés do Tietê, que fede invicto na estrela paulista da bandeira da Federação.
O Tietê, como diria Noel Rosa, se fosse paulista, é coisa nossa.
         Diz-se também na reportagem que o projeto desinfetante do rio começou em 92, data que me suscitou curiosidade. Lembro-me quando pequeno de ainda ver garças e, pasmem,  capivaras passeando calmamente pelas margens do canal, certamente imunizadas pelo hábito, ou sem poder aquisitivo para ir para o Pinheiros – que, fato notório, mesmo não fedendo menos vale muitíssimo mais. Não é qualquer capivara que pode se mudar para a marginal Pinheiros, qual! É grande a tentação de explicar esse sumiço com a especulação imobiliária, identificando um fenômeno massivo de gentrificação das capivaras, mas isso ainda não se aplica ao Tietê. O fato é que hoje em dia por lá mal se veem mosquitos, só mesmo umas plantinhas e o cartazinho do governo: postos de tratamento, ciclovias, etc. Até barco dizem que passa. Mas seres vivos... bem, houve, sim, o terrível boato dos jacarés albinos, que habitariam as profundezas do rio. Seres quase que de outro planeta, adaptados àquela sujeira toda, brancos como vampiros, e também dentuços... teve todo um rebuliço, mas no fim acabou como uma loira do banheiro qualquer, sem mais.
         De minha parte duvidava que qualquer coisa viva que se preze conseguisse viver naquele esgoto. Mas o artigo me contradiz: tem uma formidável espécie de peixe que parece ser capaz, não precisa de oxigênio, respira na superfície. Praticamente um golfinho. Golfinhos para o Tietê! E há ainda, no meu ingênuo otimismo, a possibilidade de que seja além de tudo um peixe comestível, saboroso, típico. Que belo negócio será: barraquinhas de peixe fresco frito às margens do Tietê. Nem precisa mencionar a cerveja... adicione-se um pôr do sol e uma Bossa-Nova e daí sim, nunca mais deveremos nada ao Rio de Janeiro. Até ciclovia as marginais já começam a ter, não duvido que daqui a pouco construam também um calçadão, se o experimento der certo, e ninguém morrer asfixiado.
         Já imagino, deslumbrado: “Calçadão do Tietê: não tinha, agora tem.”
          E se tivermos fé e esperança de verdade, daquelas que movem montanhas e despoluem esgotos, poderemos contar com toda uma fauna aquática fantástica, tropical mesmo, dentro de alguns anos, para alegrar a ressaca da copa e já esperando pelas Olimpíadas. Nada foi dito, confesso, mas guardo as mais luminosas expectativas de que, sim, as capivaras, assim como os seres humanos, voltarão para o Tietê, em clima de País do Futuro. Com ciclovias, oxigênio, calçadão e bossa-nova, vai se tornar sem dúvida alguma o próximo polo comercial de São Paulo, junto com a marginal Pinheiros, mas com a incrível vantagem de contar com um entretenimento muito mais diversificado. A iniciativa poderia até mesmo ser feita pelo próprio governo, por que não?, importando do interior do estado colônias de capivaras, dando-lhes a grande oportunidade de viver na capital.
Até porque a capivara, como também diria Noel Rosa, é coisa nossa.
         Em meio a toda esta euforia, bastaria, talvez, somente lembrar de sinalizar muito bem as marginais, com os simples dizeres “Travessia de capivaras”, e mais um desenho, quem sabe, em cada uma das dez ou mais pistas que tem o complexo viário. Pois infelizmente, ao que me consta, elas ainda não sabem usar as passarelas nem tampouco o CPTM. Detalhe que, embora simples, tornaria sua vida, num rio imundo entre dois gigantescos complexos viários, meio infernal, mandando-as sem dúvida alguma de volta para o interior do país.
Porque no fim a única prejudicada é a população.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Maldito escrevinhador!


Escrever por aí, onde quer que seja, quando e como a dita “inspiração” aparecer, é um hábito tão saudável quanto problemático. Quer dizer, saudável dentro de certas perspectivas, no meu caso, a de aspirante a homem de letras, pois dentro de outras inumeráveis perspectivas tal costume não passa de uma maluquice com riscos seríssimos de atropelamento ou exclusão social massiva, sob acusações de lunatismo. Não dou a mínima para estas questões. O problema maior, no meu caso, eu que não hesito em anotar versinhos ou motivos narrativos atravessando a Paulista ou num samba no Butantã, é quando as pessoas começam a achar, na sua humildade mais santa, que é sobre elas que eu estou escrevendo. Daí sim a coisa complica.
         Trata-se – não julgo – de um equívoco bastante natural. E não preciso fazer grandes reflexões históricas: peguemos a palavra “canetar” tão corrente quanto detestada. Ninguém caneta pelo bem alheio, o ato vem sempre de uma intenção perniciosa. O canetador é primo-irmão do amarelinho, do fiscal, do dedo-duro, e sempre que alguém tira o cilindro esferográfico do bolso e põe-se compenetradamente a rabiscar alguma coisa, pode ter certeza: de alguém ele deseja o mal.
         Não se pode dizer que este seja o meu caso. Quer dizer, só se se tratar do meu próprio mal, por perder tempo com as tintas enquanto podia fazer outra coisa; mas o mal dos outros, bem, pouco me importo que casem ou caiam num poço. Claro que não se pode exagerar, já que o ato criativo é de certa forma um ato de amor,  e, principalmente,  se não fossem as figuras com as quais me deparo no dia-a-dia, para o bem ou para o mal da vida prática, por certo não teria um único assunto para escrever, a não ser a lua, já rota e batida de tantos versos que se lhe escreveram. Eu prefiro mesmo escrever sobre os malucos que me rondam, não obstante muitas vezes serem eles os maiores inimigos deste ingrato métier.
         Andava eu pela Teodoro Sampaio quando uma placa de loja, com algumas letras caídas, me chamou a atenção, e achei digno de nota. Era perto de uma esquina de vila, e sendo um horário comercial, diversos carros se amontoavam folgadamente ao longo do meio-fio, quase invadindo o passeio. Pois foi eu tirar a caneta da camisa e o caderno do bolso, para escrever, que um sujeito entretido numa conversa de esquina parou tudo e pulou como uma mola na minha direção.
         - Opa opa opa amigo! Parei só cinco minutinhos, o piscalerta tá até ligado, ó! Não vai fazer isso comigo não...
         - Isso o quê?... – perguntei perplexo, e o sujeito ficou aflito.
         - Essa multa aí não é pra mim! Suei muito pra comprar esse carrinho! A quantidade de pilantra sem-vergonha que vive no bem-bom com o nosso dinheiro e você ainda vai dar mais pra eles, é?! Assim não! Eu sou patriota!
         - Ah... – caíra a ficha – não é isso não, amigo. Não sou CET não, isso aqui é... isso aqui é outra coisa!
         Mas ele era desconfiado.
         - Sei! Que é que é isso então, se não é multa?!
         Agora quem estava aflito era eu.
         - Isso aqui são só uns versinhos aí, que eu escrevo... tive uma ideia e resolvi passar pro papel... quer ver?
         O sujeito veio, meio sem muita fé, deu uma olhada nas besteiras que eu tinha acabado de escrever e se acalmou. Ia voltar pra conversa, depois de pedir desculpas, meio rindo, quando percebeu que o verdadeiro amarelinho, enquanto ele me fazia aquele absurdo interrogatório, tinha acabado de arrancar uma folha do talão de multas e enfiado no vão do para-brisa.
         No fundo, achei bem feito: ele nem pra elogiar os meus versos!

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         Outra foi num restaurante, ainda que com outros contornos. Era um daqueles tradicionais do Centro da cidade, na rua Aurora, um italiano digníssimo já desde os tempos em que meu avô trabalhava por lá. Como estivesse inspirado por aquele mosaico formidável de edifícios e azul do céu da avenida São João, mal me sentei junto à mesa e tirei o pedido e logo comecei a anotar alguns versos, freneticamente. Volta e meia, como a inspiração respirasse, parava e observava o garboso restaurante, seus garçons antigos, até que finalmente a palavra faltante chegava e eu retomava a escrita, com cega dedicação.
         Só quando já tinha jogado toda a minha reserva de estrofes sobre o papel foi que pude perceber o tratamento diferenciado que passara a receber dos garçons. Não só pelo excelente couvert que tinham posto em minha mesa, mas também pelo frescor fumegante, bem apresentado e farto do pretenso simples macarrão ao sugo que havia escolhido pelo preço, cheio de ervas, especiarias e até – quem diria! –  uns gordos tecotos de carne. O estranhamento cabal foi quando, ao dar a primeira garfada, descobri a taça de vinho tinto que tinham servido discretamente, num canto da mesa, como que propositalmente escondida.
         Levei um susto. Mal sabia se os vinte dois merréis que tinha no bolso bastariam pra pagar a massa, quanto mais toda aquela regalia! Presto chamei o garçom, que, de um canto, parecia me olhar junto com todo o serviço do salão, e voou para me atender.
         - Pois não, senhor?
         - Ô amigo, seguinte: você me trouxe esse vinho aqui e...
         - Que foi? Não está bom? Quer que troque? – desesperou-se o homem.
         - Não, não é nada disso. Eu nem toquei nele, aliás. Mas é que eu não tinha pedido isso não, e nem tenho como...
         - Ah, sim, senhor. A casa é que está oferecendo!
         - A casa está pagando também? – desconfiei.
         - Mas é claro!
         - Bem... sendo assim... muito obrigado, é... Está tudo muito bom, viu! Só... você pode me trazer um queijinho ralado, também, fazendo o favor?
         Despachando o garçom, dei outra boa olhada em minha volta: era o único que tinha uma taça de vinho, que dirá de por conta da casa! Daquele mesmo canto o serviço ainda me observava, entre cochichos e olhares de expectativa. Olhei para a caderneta fechada ao lado do prato e finalmente juntei lé com tré: ali se passara algum engano, certamente me tomaram por algum crítico, gastrônomo, algo assim. Que fazer? Desmentir? Ser honesto? “Não, senhores, sinto muito, eu não...” Mas e depois, o vinho, o couvert, a conta? Passaria uma boa tarde lavando pratos, isso sim, a recompensa pela honestidade!
Não, se a burrada era deles, eles que se virassem! Não tinha dó de ninguém e nem pretendia voltar ali tão cedo. Agora só teria de levar a farsa até o fim. Com trejeitos esnobes e sapientes, pus-me a balançar a taça de vinho, imitando os ditos entendidos, e só então dei um gole, minúsculo, quase imperceptível, para saboreá-lo. O efeito na plateia, bisoiei, foi maravilhoso: os garçons estavam em completa tensão, causada com certeza pela pressão do gerente. Prossegui o almoço com as mesmas maneiras, percebendo o sucesso absoluto da desonestidade. Volta e meia fazia uma cara severa, degustava, e rabiscava qualquer porcaria na caderneta, pra coisa parecer séria. Até que me dei conta do anedótico de tudo isso e anotei de fato, para poder escrever depois.
Por fim, depois de tomar um café, também oferecido e pago pela casa, levantei-me. Agradeci elogiosamente ao garçom, velho simpático!, e fui para o caixa acertar o que tinha pedido. Mas quando me aproximava, o gerente me barrou.
- E que tal, senhor, gostou? Estava tudo certo? Foi bem atendido?
         - Hum... sim, claro. Tudo muito bom. Só o molho, estava um pouquinho ácido.
         A expressão do homem se nublou de um tal modo que até me arrependi, e emendei.
         - Mas eu gosto. E era só isso. Tudo perfeito, excelente, não há mais restaurantes deste porte em São Paulo, são raríssimos. Conte com uma crítica extremamente favorável, de minha parte.
         - Ah, senhor! Muita bondade. Aliás, bondade desde o princípio, ter aceitado vir aqui fazer esta matéria. Volte sempre que quiser!
         - Voltarei. Agora para acertar...?
         - Acertar?! Não senhor! Hoje você é nosso convidado, já estava nos planos. Aliás, tome este chocolatinho.
         Me estendeu um chocolate e um imenso, quase patético sorriso. Chega senti pena do homem, mas a alegria do almoço na faixa era maior do que tudo. Dei um sonoro “adeus, muito obrigado!” a todos os garçons e ia saindo pela porta, quando esbarrei com um sujeito todo janota, acompanhado por uma mulher excessivamente produzida. O carro da Abril do lado de fora não me deixou mais dúvidas: dobrei a São João como uma cobra e disparei pro Anhangabaú. Se não me desse bons versos, pelo menos uma história das boas a tarde já tinha me dado.

         Qual o problema com o papel e a caneta? Difícil pergunta. Parece ter alguma magia, aura de respeito e autoridade, por mais que neste país não haja a menor consideração pelo escritor. Mesmo que entrasse o Lima Barreto no bar da edição de um jornal e pedisse uma pinga, ninguém iria perceber, corria até o risco de ser maltratado. E ao mesmo tempo... bem, ao meu ver, é puro medo. Quem escreve, reza a lenda!, tem que pensar. Por mais que se possa dar mil contraexemplos... a começar pelo fato de que o pobre do papel não escolhe a tinta: aceita tudo. Mas mesmo assim, há muitos que prefeririam aparecer na grande mídia, nem que na última página, num rodapé depreciativo, do que morrer num honesto anonimato. E para tanto, claro, não economizam hipocrisias. É aquela história de arrumar o penteado antes da foto, passar maquiagem, por mais que infelizmente hoje existam os photoshops da vida.
         Mas não na literatura. O que escrito foi, amém!, escrito está. E daqui a paúra de muitos. E o desespero de outros. Uns ditadores queimam livros... outros os abençoam. Curioso é o homem de letras, coitado, esquecido e ao mesmo tempo central neste genérico ridículo, que ele se resume a captar, mas de quem só se lembram na hora de incriminar por alguma calúnia provavelmente verossímil. Lembro-me agora de Nikolai Vassílievitch Gógol, que resumiu, há 200 anos e em poucas palavras, tudo o que quis dizer:

         Qualquer que seja o nome inventado, sem dúvida se encontrará, em algum recanto do nosso país, pois ele é grande, alguém que tenha esse nome, e que sem falta ficará furioso, e criará um caso de vida ou morte: dirá que o autor foi já às escondidas para espioná-lo, para descobrir quem é ele, e que tipo de casaco veste, e qual é a Agrafena Ivánovna que ele visita, e o que gosta de comer. [...] Entre nós, agora, todos os portadores de títulos e cargos estão tão exacerbados, que tudo o que aparece em letra de forma já lhes parece ofensa pessoal – deve ser por causa das condições atmosféricas. Basta que se diga que numa cidade reside um homem tolo, e isto já constitui alusão pessoal: de repente saltará um senhor de aspecto respeitável e gritará: “Acontece que eu também sou um homem, portanto, eu também sou tolo!”. Em suma, perceberá logo do que se trata.

         Tivesse eu citado desde o começo, não precisava nem escrever essa crônica... nem mais nada, nunca mais. Seria uma excelente solução: livrar-me-ia não somente desse texto, mas ainda, o que é mais importante, dos problemas pentelhos, que tive o trabalho de narrar, só por ter ideias, caneta e papel sempre à mão.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ai de ti, Largo da Batata!

 
Quero ficar ausente
            O que os olhos não veem
            O coração não sente
                                                Adoniran Barbosa

Não queria passar pela região do Largo dos Pinheiros, com medo de morrer de desgosto. Ouvi notícias, horrorizei-me com algumas fotos, reportagens. “Largo da Batata ficará para 2013”, dizia algum jornal, e me lembrei feliz de quando a previsão tinha sido dada para 2009, 2010, 2011... quem sabe nessas não duraria para sempre, o pobre, sujo e largado Largo da Batata? Sonhar é de graça.
Esse tal Largo, verdade seja dita, nunca nem sequer existiu. Existia na boca do povo, nas referências, na imaginação. Agora é que resolveram dar esse nome, cinicamente, como um batizado de defunto, o último estandarte, selando a lenta vitória que remonta aos anos 90, Paulo Maluf. Havia antes a Martim e a Baltazar Carrasco, a Belchior Coqueiro, a Miguel Isasa, enfim, uma série de ruas que formavam aquele conjuntinho admirável de casas e quebradas antigas, às vezes uma praça, uma vila, um beco. Isso até mesmo depois da Nova Faria Lima, que cruzou o bairro como uma trincheira ou uma locomotiva, dividindo-o e abrindo as chagas que, infeccionadas, hoje o mataram. Mas o que importa é que o Largo da Batata, se antes era real mas não existia, hoje em dia, talvez até exista, mas não é real.
Me lembro da última vista que fiz ao pobre: o quarteirão que ficava entre a Faria Lima e a Fernão Dias, separando o Largo dos Pinheiros do dito da Batata, ainda estava de pé, vazio e fantasma. Talvez uma lotérica, um boteco ainda funcionassem. Mas o belíssimo edifício de meados do século passado, que ficava justo na esquina da Martim Carrasco, já tinha sido desocupado, e mesmo parte do quarteirão já deixava ver o outro lado, num rombo grotesco, preconizando o fim de tudo aquilo.
Aliás, me lembro, ali ficava uma excelente tabacaria, comércio dos mais antigos do bairro, que terá sido feito dela? Triste pergunta.
Retardei esta visita enquanto pude, mas era fatal. Dei de passar lá de ônibus, claro, já que é caminho entre minha casa e a Universidade de São Paulo. Tentava não prestar muita atenção, ler, ouvir música, dormir, enfim, mas um dia na volta da aula me levantei mecanicamente, dei sinal e desci na rua Butantã, pouco antes do Largo dos Pinheiros, propriamente dito, diante da praça Septímio Severo.
De lá, realmente, a única coisa intacta é a igreja, e mesmo assim foi caiada de branco há coisa de três anos, ficou feíssima, a pobre, antes era tão agradável naquele cinza escuro... a torre ainda se ergue eterna, como uma bênção, um voto desesperado para aquela terra arrasada, moderna barbárie!, da avenida Faria Lima e de seu largo natimorto.
Não me abri para sentimentalismos, o que outrora faria sem falta, por medo do vexame e do ridículo de chorar um pedaço de terra tão nojento como aquele. Ia passando pelas ruas, a princípio subi a própria Butantã: lá, por hora, não há nada de novo. Até o meu barbeiro – graças a Deus! – segue firme e forte na mesma esquina com a rua São Miguel, ao menos era isso que se lia na placa com o desenho do pente e da tesoura, letras em diagonal. Mas também se leem muitas outras placas de “Vende-se”, anunciando o inevitável em eufemismos de câmbio. Do outro lado da rua uma fantasmagoria de há muito já deixava entrever esse mesmo risco, nas casas e galpões, mortos, que antecedem o posto de gasolina ao lado da igreja. Lá é certeza: subirá outro prédio.
E pensar que essa é uma das partes que foi menos afetada. Seguindo para cima o retrato é ainda mais absurdo. Quem se lembra hoje em dia de que havia uma esquina – e que esquina! – entre as ruas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde? Claro que na teoria, geometricamente, a esquina ainda existe, assim como o Largo da Batata também, só que não. Virou um descampado de cimento, como, aliás, quase tudo por lá. Onde não sobrou barraca ou instalações de obras eles plantaram uns pinheirinhos sem-vergonha, projeto a longo prazo!, como que pra rir da cara dos trouxas nós outros, mesmo. Aquela, que eu me lembre, era uma esquina bem formosa, com sobrados comerciais de dois andares, uma vida ativa, alguns bancos, lojas populares, enfim. Tudo isso já faz ano e meio foi posto abaixo, quando me ausentei já não existia, assim como aquele trechinho da Cardeal Arcoverde que dava na velha Cooperativa Agrícola de Cotia, cheio de cabeleireiros.
Mas a surpresa maior foi o outro lado do quarteirão, da Martim Carrasco, transformado tupiniquim e cinicamente em um boulevard, tão charmant quanto a avenida São João. Completamente arrasado! Em tese, outra vez em tese, não era surpresa nenhuma, era muito óbvio que aquilo aconteceria, mas nem por isso deixei de sentir certa tristeza por aquele vazio tão sentimental quanto geográfico. Ali outrora houve uma vida comercial das mais ativas e, por que não, até agradáveis. Bons botecos, cabeleireiros, fliperamas, ferragens, marcenarias, costureiras, relojoarias, tabacarias, açougues, sapateiros, lotéricas, enfim: todo o pouquinho que há de bom nessa triste sociedade brasileira dava lá, até o governo baixar, muito obrigado, sim senhor.
Isso porque não citei o tal do sítio arqueológico que acharam no meio das obras. Denúncia anônima! Fez-se um escândalo, pararam as obras, e depois, claro, jogaram um belo de um pano quente, com direito a uma ridícula exposição do Sesc Pinheiros justificando a completa demolição e continuação das obras do Largo. Passando de ônibus, se via muito bem a velha manjedoura, achado do sítio arqueológico, carcomida pelo capim e pelas barracas do canteiro de obras. Agora já deve estar como estava antes: debaixo da terra, isso se não foi pr’algum lixão.
Por toda parte ainda imperam os tapumes, as vigas, as portas improvisadas, os caminhões, os cones, as britadeiras, as faixas, os improvisos, o progresso. Até porque estamos em ano de eleição, alô alô, macacada!, prefeitura trabalhando. Progredimos! Mas mesmo quando abrir, não há nada de novo: vai ser a mesma coisa que aquelas partes já reformadas ao redor da Faria Lima – que, não por acaso, recentemente recebeu a autorização do prefeito Jassab para que se construíssem mais prédios –, da Martim Carrasco, da Cardeal Arcoverde, perto do Mercado de Pinheiros – esse ainda resiste – e da velha Cooperativa Agrícola, onde, silenciosamente, se produz um shopping na calada da noite. Dizem que não, mas é certo. Sem falar da quantidade enorme de prédios que surgem como cogumelos de aço, sem aviso prévio, na Fernão Dias, na Cardeal Arcoverde, na Faria Lima... me poupo, pois esse assunto me faz mal ao estômago.
A única alegria foi ver que o Cu do Padre, tradicional boteco da região, segue firme e forte atrás da igreja. Sem o velho surdo que trabalhava lá, diga-se de passagem. Mas fora isso é tudo cínico, até o doentio: não há mais luta possível, nem a revolta íntima, humilde, inútil mas justa, do ser que se indigna em silêncio, que cospe ou xinga por pura convicção, nem essa revolta tem mais qualquer beleza ou serventia, pois mesmo a alma se oblitera diante dos trinta e tantos andares espelhados, do engarrafamento de carros do ano, da estação de metrô, do Progresso, enfim. E não pretendo ficar de fora deste festim: viva o progresso! O Largo foi ganho. Meus parabéns! Quem ganhou, faça um favor, agradeça a quem perdeu. Eles bem que merecem. E de fora é como já disse algum estúpido: aos vencedores, o Largo da Batata!