tag:blogger.com,1999:blog-37550351797671359522024-03-05T03:31:00.211-08:00O semanário indigentePedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.comBlogger62125tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-65826170723304375652013-06-13T21:01:00.000-07:002013-06-13T21:01:14.532-07:00A tripla farsa<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="MsoNormal">
São quase onze horas da noite e mesmo assim, daqui, do velho
apartamento da rua Cônego Eugênio, ainda se ouvem os apitos estridentes das
sirenes deslocando-se freneticamente. Penso, olhando a paisagem, num marciano
que desembarcasse em São Paulo: acharia estarmos em guerra, e pior: vendo os
rostos apinhados em torno das TVs dos bares, dos lares, das lojas, julgaria tal
guerra tratar-se de um fenômeno corriqueiro, como a novela das 7. No caminho do
centro para casa, ao passar pela Paulista, pude ver que uma nova praça de
guerra se armava quase na esquina, à terrível imagem e semelhança da que pude
presenciar na av. Consolação. Pela Dr. Arnaldo luzes vermelhas de camburões e
ROCAMs riscavam a noite como tiros alucinados. Certamente, pensaria o marciano,
os comunistas, os tapuias, os paraguaios ou os alemães estão para receber
reforços na frente ocidental, e é preciso agir com energia.</div>
<div class="MsoNormal">
No céu,
cinco helicópteros.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Mas de fora na av. Ipiranga e no
começo da Consolação o mesmo marciano que teve por infelicidade aportar em São
Paulo poderia, a essas horas, suspirar aliviado, já que saberia que a
brutalidade é coisa tão trivial quanto corriqueira: o comércio, pequenos
camundongos, punham seus bigodinhos para fora das cortinas de aço e,
certificando-se da ordem cívica, quotidiana e apolítica, voltavam a servir
fumegantes cappuccinos, chopes espumantes e sapatos para todos os casais que não
conseguiram comemorar o Dia dos Namorados em tempo, e para os estudantes do Mackenzie
e trabalhadores da região, em geral . Na Maria Antônia, já imperava a
descontração, apesar de o vento, vez ou outra, trazer inconsequentemente os
farrapos fedegosos das bombas de efeito moral, do gás de pimenta, da fumaça,
enfim, dos restos da guerra que se alastrava Consolação acima. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
São Paulo respira normalmente, a
noite avança com temperatura amena. Embora com cicatrizes: na Augusta há lixos
revirados, restos de fogueiras, comércio ainda fechado e, pasmem, esboços ou
projetos de barricadas. A GCM, em formação marcial de fila, vela pela calma dos
casais. A praça Roosevelt está sob estrito controle: aquele que quiser degustar
o ar fresco da noite, levar o cachorro para evacuar ou mesmo andar de esqueite,
pode ficar à vontade: cerca de dez viaturas estão estacionadas no local, e
policiais devidamente armados, de trinta e oito a trabucos, em postos estratégicos,
vigiam pela paz em cada esquina da baixa Augusta.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
De um boteco na Rua Maria Antônia,
enxugando as lágrimas e esperando o coração desacelerar, eu assistia ao
desfecho da dupla farsa, degustando simultânea e anacronicamente certo sabor de
68, pela influência do local e pelo barulho insuportável das bombas. Refugiei-me
para tomar um guaraná: no quebra-pau, conforme a polícia nos isolava e cercava
na nova Praça Roosevelt, topei com o filho do meu professor de grego – um rapaz
de 13 anos que lê Freud e Turguêniev – mais uma amiga sua, ambos com lenços no
rosto e um tanto quanto desnorteados diante do caos apavorante em que se
convertia a primeira manifestação das suas vidas, a que tinham ido sem a
autorização dos pais. Ainda tentei metê-los dentro do Supremo Tribunal, mas o
coração Justo dos servidores, disposto a assistir o circo incendiando de detrás
dos vidros, já não mostraram tanta disposição assim para acolher duas crianças
diante da cortina espessa de pimenta e efeito moral, da multidão amedrontada,
do avanço do choque, das bombas, dos trabucos, dos camburões, das balas soltas.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Resultado: ficamos encurralados,
nós e mais alguns. Sorte imensa não terem nos linchado ali mesmo. Alguém tinha
vinagre, a irmandade da ocasião se impôs. Até que a linha de frente abriu uma
brecha, e, com um moleque debaixo de cada braço (o que muito provavelmente me
serviu de passaporte), passamos pelo lado e fugimos, entre estilhaços de vidro,
pedaços de pedra e restos de fogueiras. Ruas vazias, camburões atravessados
pela avenida perplexa. Uma linha do Choque fechava a Maria Antônia, e um deles
gritava, trabuco em punhos, qualquer coisa contra um repórter. Era a guerra,
ainda que assimétrica. Lembrei-me de alguns vídeos e fotos do 1º de abril de
1964, e pus-me a assoviar o hino nacional – mas ninguém entendeu. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Era a farsa, e ninguém,
aparentemente, está entendendo nada. Nos botequins e estacionamentos, as
pessoas assistiam pela televisão o que acontecia a duas quadras dali, sem
sequer ter a curiosidade de dobrar uma esquina e ver ao vivo e a cores. “As
imagens”, como diz o Datena. Mas, a primeira de todas as farsas: a “revolução”
televisionada. “Isso é Goebbels”, me disse, num misto de ironia e desespero,
meu professor de grego, que a essas tantas já tinha chegado atrás do filho,
entre orgulhoso e emputecido pela ousadia do rapaz. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
“E isso é Marx”, disse por fim,
enquanto caminhávamos, chutando os pedregulhos e cacos de garrafas espalhados
pela calçada. “A farsa”. Coisas que, como bombas e balas, dão no mínimo sobre o
que pensar, se não sobre o quê chorar, agora já beirando a meia-noite, no mesmo
apartamento, embora somente com o barulho dos caminhões de lixo que limpam a
cidade para seu outro dia de fumaça e lixo. As sirenes se calaram. Leio nos
jornais que mais de cento e cinquenta foram presos. As duas farsas foram concluídas:
os telespectadores tiveram sua ração de sangue; eu, e muitos, a nossa de
subversão. Ambas resumidas em uma única tragédia.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Quando, em que manhã, ao abrir a
página de um jornal, conseguirei enfim ler nas linhas a justiça efetivada nos
fatos? No Brasil, para o bem ou para o mal, temos o costume de rir muitas vezes
que deveríamos chorar. Fico sonhando com o dia em que as notícias só me farão
sorrir. Hoje, na manifestação, gritava-se “o povo acordou”, e de fato, até a
chegada na Maria Antônia, a beleza e a justiça de tudo aquilo somavam-se numa
confortável e farsesca sensação histórica, de despertar de algum porvir mais
justo. Bem, sabe-se como tudo acabou. Vinte anos de ditadura seguidos de
Sarney, Collor e Fernando Henrique, mais os ambíguos anos de Lula e sua gestora
deram numa politização perneta, resumida ao período de eleição, e não estendida
a tudo de político que nos toca. Não sabemos nos manifestar, estamos
pesquisando. O Estado e a sociedade civil, pior ainda!, não sabem se portar
diante da ação direta. Mas num boteco dois homens, mesmo que assistindo TV, se
solidarizam ao me ver sentar, de olhos vermelhos, e puseram-se com ardor a
praticar um dos mais antigos esportes brasileiros: meter a língua no governo. Dois
moleques contrariam seus pais e vão na manifestação, por curiosidade, e, além
de aprenderem com a vida, ainda me ajudam a me safar, na sua imponente
fragilidade. O Datena muda de ideia com a mudança de Ibope.... bem, chega. </div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Ah, Vida futura, és difícil mas
sem ti, esta noite, me recuso a dormir.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-85861747260688931882013-06-10T15:59:00.000-07:002013-06-10T15:59:00.933-07:00Na falta de crônica<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Castellar; line-height: 150%;"><span style="font-size: x-large;">V</span></span>ai qualquer outra coisa, e aviso logo: isto aqui não é uma
crônica. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Venho tentando compor, dos
retalhos confusos de uma vida insossa, pequenas anedotas, comentários, ou
mirabolações sobre tudo que se passa ou que poderia se passar nesta triste
capital de estado sulista. Mas esse fim de semana não deu. E por um certo tipo
de maldição moral, que empurra os escritores para a máquina mesmo que só pra
sofrer de tédio, cá estou eu explicando as minhas faltas para o leitor que, muito
provavelmente, está cagando para meu atestado de incompetência.</div>
<div class="MsoNormal">
E é pior:
não há nada de original nesse tipo de artifício. Lembro-me agora de Drummond,
no seu formidável “Cadeira de balanço” – mas não sei ao certo o que o poeta
inventou no lugar da crônica faltante. Certamente não foram desculpas. E de
fora ele mesmo ainda cita, por escrúpulos, outro caso de inadimplência
literária confessa, referindo-se ao autor apenas como “o célebre cronista”, que
me parece se tratar de Rubem Braga. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Ou seja: já não bastasse não ter
escrito, não ter o que escrever e estar enrolando desculpas, de quebra ainda
corro o risco de estar fazendo plágio, quase um biplágio, um plágio
terceirizado, uma monstruosidade, enfim. Mas se contasse tudo que me privou,
nestes dias, do convívio torturante e maravilhoso do Microsoft Word, teria ao
menos o consolo da irreprodutibilidade inata de cada vida, e, dentro dela, a unicidade
de cada fim de semana. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Lá vai um esboço.</div>
<div class="MsoNormal">
O escritor
– na cabeça de qualquer ser honesto que queira ser um escritor – é uma espécie
de santo. Deve se manter impassível diante das tentações terrenas, eternas e
modernas, fazer da vida o que também o Drummond já dizia em seus versos: “um
sol estático, que não esquenta nem ilumina”, ou qualquer coisa assim. Deve
dormir pouco ou quase nada, acordar muito cedo e ter sonhado com imagens e
motivos para a sua nova obra experimental-surrealista, que está para escrever
já há dois anos e que muito provavelmente morrerá sem escrever, dilacerado em
crônicas, resumos, resenhas, e quinta-colunismos em geral. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
A boemia cai muito bem em filmes
hollywoodianos, ou na imaginação glamorosa de certos inocentes – mas é inimiga
feroz da literatura. Primeiro porque no tempo em que você enche seu copo de
Brahma, comprada por sete reais à garrafa, era pra você estar em casa começando
o seu romance. Depois porque, bebida a primeira a segunda a quinta garrafa
(R$35,00 que você não tem, porque não escreveu nada), você começa
invariavelmente, na sua inconsolável frustração de escritor perdido no mundo, a
falar das obras e manobras que você está fazendo ou que sem sombra de dúvida
ainda há de fazer, corrompendo seus projetos com estúpidos e etílicos arroubos
narcisistas, submetendo-os aos intermináveis pitacos das mais antipoéticas
criaturas da noturnidade (poetas sem versos, pintores sem telas, músicos sem
melodias) e por fim – questão de saúde pública – caceteando o lazer de todos os
infelizes que tiveram por bem se sentar à sua mesa, excluindo pela chatice qualquer
possibilidade de arranjar companhia que te arrefeça as frustrações alcoolizadas.</div>
<div class="MsoNormal">
Inevitável
conclusão: bêbado, sozinho, e, dependendo dos tipos com que anda, com uma conta
onerosa registrada seu nome.</div>
<div class="MsoNormal">
Outra
abominável armadilha para pegar escritor é a internet. Em tempos de pouco
lirismo, nada mais caduco do que o escritor sentado atrás dos papéis em uma vasta
escrivaninha de mogno, presidida pela majestade nostálgica de uma Remington ou
de uma Olivetti, com bustos barbudos prendendo folhas soltas e um cinzeiro
abarrotado de bitucas. O escritor de nossos dias, se não quiser ser mais
anacrônico do que já é <i>par excellence</i>,
tem que trabalhar com um computador: se moderno, usará o Windows; o pós-moderno
não dispensa o Macintosh. E ambos serão igualmente tentados, ao finalmente
conseguir se sentar junto à máquina com o intuito de escrever, pelos detalhes
coloridinhos dos ícones do Chrome, do Explorer ou do Firefox. E daí já é um
abismo sem volta, um labirinto de abas e janelas... notícias frescas, e-mails
importantes, vídeos engraçados, letras sentimentais, joguinhos viciantes,
mensagens intensas... </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Isso para não mencionar o
Facebook, que já seria uma crônica à parte... e isto, antes que eu me esqueça,
não é uma crônica. É antes qualquer coisa de desagradável, uma confissão
absurda de um incompetente que não conseguiu dois dias para escrever uma reles
historinha, um causo, qualquer coisa de minúsculo e de humano que mereça ser
contado para a alegria de poucos, sem que o autor, espécie de evangelista,
ganhe o que quer que seja por isso. Mas pelo contrário.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Poderia contar, num artifício
retórico, das peripécias que me afastaram das letras nesta última semana. Da
pomposa festa junina de anteontem, e da consequente ressaca de que ainda me
curo, depois de ter bebido uísque com gim e batida de maracujá, ensinado forró
a uma francesa, escorregado no trânsito e quase voado pra debaixo de um carro
pra acabar às quatro da manhã comendo macarrão com minha mãe, também chegada da
balada, no velho apartamento da rua Cônego Eugênio. Poderia falar da polícia
montada, que estava na Vila quando quase fui atropelado, desfilando pomposa e
fedegosa pela rotatória da Fidalga, e que hoje passou num trote calmo e
ameaçador pelas portas desse restaurante, em cujo subsolo eu vos escrevo... ou
ainda, quem sabe?, descrever a quermesse da Igreja do Calvário, com seu
animador tão insuportavelmente animado que seus gritos alcançam até mesmo este
buraco onde eu tento me isolar, tornando este ingrato ofício de beletrista fajuto
ainda mais impossível... e vou parando por aqui. Todas essas histórias,
reflexos vagos de um conteúdo humano, seriam assuntos, talvez, para uma ou duas
outras crônicas. </div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
E isto não é uma crônica. É só o
que deu pra fazer.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-87111068073211335712013-06-02T16:57:00.001-07:002013-06-02T17:01:45.993-07:00Meia-noite e vinte<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="MsoNormal">
<br />
<div style="text-align: right;">
<i>Na flutuação dos preços, um minuto vale ouro.<br /><br /></i></div>
</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: x-large;"><i>P</i></span>ara a alegria dos dois sujeitos,
irmanados pela espera naquela noite fria de junho, o último ônibus daquela
linha veio passar cinco para meia-noite, dispensando táxis e desesperos.
Sábado, e numa linha dessas raras e pouco frequentadas: o ônibus andava com a
parte da frente no escuro, o cobrador cochilava, e bem no fundo se aninhava uma
senhorinha murcha e encasacada – o único passageiro antes que aqueles dois
subissem.</div>
<div class="MsoNormal">
Um deles,
mais afobado, mal entrou e passou logo a catraca, cutucando polidamente o
cobrador para que, com efeito, cobrasse, indo em seguida para o canto oposto ao
da velha, onde capotou. Já o outro, de índole mais indecisa, hesitou alguns
minutos na falta de inspiração para lugares, antes que se decidisse pelo
exemplo do ex-companheiro de espera. Levantou-se do banco da frente, em que se
apoiara, por pouco não sai voando numa curva violenta, enfim se estabilizou e pôs-se
a escarafunchar as dobras e redobras da carteira, atrás do troco contado para a
passagem de volta – uma pilha de moedas em valores multiformes.</div>
<div class="MsoNormal">
Mas ao
estender o dinheiro para o cobrador mal-humorado, acordando-o num “boa-noite”
quase mudo, o que recebeu quando ele terminou de contar cada moeda foi um dedo
apontando o relógio do passa-cartão.</div>
<div class="MsoNormal">
- Já é três
e vinte.</div>
<div class="MsoNormal">
- Como? É
meia-noite ainda...</div>
<div class="MsoNormal">
- Então! – resmungou
o cobrador com impaciência, como se fosse óbvio.</div>
<div class="MsoNormal">
- Então...?
Se é meia-noite, não pode ser três e vinte – o pobre do sujeito, não bastasse o
sono, de quebra ainda estava confuso.</div>
<div class="MsoNormal">
- Sabe ler?
Ali, ó. – e apontou com negligência para o “Jornal da SPtrans”, onde se lia,
num informativo colorido, com tipografia simpática, que a partir da meia-noite
do 1 para o 2 já passava a valer o aumento da passagem.</div>
<div class="MsoNormal">
O homem
mordeu o lábio com aflição, sentindo-se pequeno em sua ignorância dos movimentos
financeiros, do relógio e do transporte. Mas sabia que eram só vinte centavos, e
que ia conseguir dar um jeitinho...</div>
<div class="MsoNormal">
- Vixe,
moço... eu nem sabia que era agora, não... quer ver só? – abriu a carteira,
revirou cada meandro de seus infinitos compartimentos, para somar por fim, tendo
quase arregaçado o couro velho e sujo, mais cinco centavos ao que já tinha
entregado.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
– Moço, é tudo que eu tenho.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
– Ih... daí embaça, ein? –
respondeu numa careta o velho da catraca, no claro e sádico intuito de alegrar
um pouco o seu sábado às custas daquele pobre coitado. – Tem câmera aqui no
busão, filho, se o fiscal me pega...</div>
<div class="MsoNormal">
Semelhante
explicação, chamada em bom português de “migué”, fez com que o infeliz das
moedas perdesse a compostura.</div>
<div class="MsoNormal">
- Porra
irmão, mas o cara ali acabou de pagar três reais, que eu vi! Por que é que
justo eu agora tenho que pagar essa merda de vinte centavos! Cê tá de
sacanagem!</div>
<div class="MsoNormal">
- Calma lá,
calma lá, pode abaixar esse tom! Ele passou antes da meia-noite... se você tivesse
feito o mesmo, não tava aqui agora enchendo o meu saco. A cidade inteira
sabendo do aumento e só o trouxa aí chega à meia noite no meu busão pra ficar
criando caso. É mole? Tá achando que é fácil? Não dá pra andar de graça não,
mermão!</div>
<div class="MsoNormal">
- Mas, caralho!,
são só vinte centavos! – desesperava-se o possível estelionatário ante as
proporções que a situação assumia.</div>
<div class="MsoNormal">
- Porque
não vai sair do seu bolso, né, vagabundo!</div>
<div class="MsoNormal">
E
prosseguiu a patética discussão por mais alguns pontos, avenidas e ruas. O
motorista ria sozinho, do seu canto, só esperando pelo desfecho daquela inédita
comédia; o outro homem, vendo que sobrava até pra ele, fingiu continuar
dormindo. Uma hora alguém acabou fatalmente pondo a mãe no meio, e a coisa
ameaçou ficar séria: os dois estavam quase se agarrando quando uma voz fininha
e trêmula se enfiou no meio, conciliatória.</div>
<div class="MsoNormal">
- Toma, meu
filho, uma moedinha pra pagar o moço. Não precisa brigar. – sorriu a até então
amoitada velhinha, tirando um Deodoro amarelo de um moedeiro estampado com
flores.</div>
<div class="MsoNormal">
- A senhora
é muito gentil – se apressou o cobrador, antes que o sujeito pudesse esfregar o
dinheiro na sua cara – mas esse cara aqui não fica no meu ônibus mais não, nem
pagando vinte reais! Vai ficar é na rua, vai descer agorinha mesmo! Ouviu?!
Milton, pode abrir pr’esse porra aí antes que eu perca a razão! Vai, vaza!</div>
<div class="MsoNormal">
Pasmo com o
desfecho inesperado, o sujeito ainda ameaçou se indignar, mas um rápido olhar
pela janela fez com que abaixasse a cabeça, respirasse fundo e murmurasse um
“sim senhor” resignado. O tal do Milton, rindo feito o diabo, enfim encostou o
ônibus e abriu a porta da frente, por onde o sujeito, quieto, desceu a passos
lentos com as moedinhas na mão.</div>
<div class="MsoNormal">
“Assim que
se viaja de graça!” sorriu, guardando o troco na carteira e pegando o caminho
de casa, a uns vinte minutos daquele ponto.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-26114175711036561592013-05-25T10:50:00.004-07:002013-05-26T09:56:36.741-07:00O verde e o vermelho<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right; text-indent: 36.0pt;">
<i>Tão difícil que é se entender, meu caro
anjo, e tão incomunicável que é o pensamento, até mesmo entre pessoas que se
amam!<br /><o:p></o:p></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right; text-indent: 36.0pt;">
C.
Baudelaire, "Os olhos dos pobres"</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
<br />
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-family: Courier New, Courier, monospace; font-size: x-large;">S</span>aímos do espetáculo de braços
colados, mãos fundidas, respirando o mesmo ar nas exatas mesmas pulsações e ritmos.
Se o espetáculo era bom, se a atuação convencia, se o enredo era digno – me
perguntassem sobre qualquer desses assuntos, presumidamente nítidos na mente de
quem sai de um teatro, e eu não teria sequer um palpite. Não tínhamos assistido
nada: de olhos fechados, havíamos assistido, com as mãos, os meandros de nossos
próprios corpos.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Mas num instante, surpresos com o
acender de luzes e o explodir de palmas, ajeitamo-nos como pudemos e começamos
a aplaudir, gritando “bravos” e rindo, de nós mesmos. Apesar de não termos
visto absolutamente nada, nem por isso se poderia dizer que não tivéssemos
gostado. Aliás, muito pelo contrário: estava pessoalmente bastante sentido com
o fim do espetáculo, e foi só a contragosto que, derrotado, puxei a mão de
minha amiga para sairmos, conforme o fluxo de verdadeiros, ou, talvez, supostos
espectadores formava uma fila em direção à porta.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Lá fora tudo estava coberto por
uma noite morna, quase sufocante, com apenas um vento bissexto que trazia,
quando nos lambia, o aroma pesado de suor e fumaça, misturando-se ao hálito de
fritura e álcool que dominava a entrada do teatro. Dos jardins junto à Igreja, até
se esboçava um cheiro de mato, mas antes que nos alcançasse era reprimido pelo
bodum das sacas de lixo, reviradas pelos cantos e postes. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
- Vamos beber alguma coisa? –
entressorriu, insinuante, num esplendor de olhos verdes. – A noite está tão
boa...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Como fosse a exata ideia que eu maquinava,
dispensei palavras: dei-lhe um beijo e meu braço, e seguimos a passos lentos,
como que ensaiados, pela calçada estreita e iluminada dos teatros da praça
Roosevelt, colhendo em nosso brilho e alegria a atenção de todos os artistas
noitevagantes pelos bares.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Não podia esconder meu paraíso:
meus olhos voavam alto, mais alto que o Itália ou o Copam, conforme as ideias passeavam
pela paisagem da praça nova, bem frequentada, decorada com gosto e com a imponência
do velho Colégio Caetano de Campos. Com suas árvores monstruosas e vitrais,
parecia medir e conter em si todo o século atravessado pela praça, da República
do Café até a gestão Kassab. Falassem os prédios e eu perguntaria “e que tal, a
nossa cidade? Com quantas formas e nomes você já não viu este lugar, de cartola
e sobrecasaca, com gravatas e andaimes e viadutos, depois indigentes,
travestis... e atores, até chegar nesta praça plana, finalmente ocupada com o
brilho de intelectuais e esqueitistas...? E mais: de todas essas versões do
tempo e do espírito, qual seria a melhor entre todas?...”</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Perguntas retóricas, típicas de
uma mente estragada pelos livros. As janelas não falam, e eu tinha a resposta:
aquela era, indubitavelmente, a melhor praça do mundo, em seu instante de glória.
Afinal era por lá que <i>eu e ela</i>
estávamos passeando, e, para qualquer efeito histórico ou cultural, isso mais
do que bastava.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
De fora: comparando com o
parnasianismo aristocrático e o progressismo militar, não seriam de fato
melhores dias? </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Voltando do trajeto dos anos aos
braços de quem me acompanhava, sugeri que parássemos no que parecia ser o
melhor dos bares, com o melhor dos preços. Cadeiras justapostas, mãos
emaranhadas: ainda murmuramos uma ou outra amenidade, mas já estávamos naquele
lugar, tão fantástico quanto confuso, em que as palavras se tornam inúteis ou
mesmo incômodas. Somente os olhos se entendem, e os nossos passeavam pela
paisagem descortinada sobre a praça e a Viação Leste-Oeste, rolando preguiçosos
pela cerca opressiva de prédios, careada aqui e ali por umas tantas avenidas. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Da nossa mesa, sentíamo-nos pertencendo àquilo
tudo... e transcendíamos. Respirávamos o mesmo ar dos carros, mas em nossa
expiração destilávamos o desprezo; brindávamos e bebíamos como todos, mas em
nossos brindes evocávamos a miséria generalizada da noite, ao que, talvez, só
nós escaparíamos. <i>Nós...</i> a consciência
da penúria paulistana. Daquele abraço e daqueles copos, numa simples conjugação
carnal, espalharíamos a Luz pela cidade inteira, começando pelas outras mesas
do bar, repletas de intelectuais decrépitos e artistas tão medíocres quanto
embriagados.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Aquela praça, reformada e limpa,
ainda havia de ser só nossa.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
O bar se abarrotava progressiva e
insuportavelmente, castrando o nosso espaço de contemplação. Tive um arroubo de
cavalheirismo, incendiado por algumas cervejas e outras tantas fantasias
bellépóquicas, e pretextei ir ao banheiro, para poder pagar a conta. Voltando à
mesa, estendi o braço à minha companhia com uma leve inclinação de cabeça,
indicando sem volteios o sentido do convite. Ainda me encarou com seus enormes
olhos verdes, explodindo, por fim, na risada.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
- Você é ridículo...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
E se agarrou com força ao meu braço.
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Subimos calmamente a pequena escadaria
entre os canteiros – rasgou-se o panorama de concreto e verde à nossa frente. Formidável,
essa praça reformada! Nem uma só lembrança daquele estacionamento pichado,
mijado, hostil e avesso ao bom convívio urbano. Só a base da polícia, que ainda
é a mesma: os canteiros são limpos, não faltam bancos nem árvores. O espaço,
antes largado e inabitável, havia sido finalmente ocupado, por amantes,
esqueitistas, famílias, músicos – um convívio harmonioso, e até encantador. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Mas, caindo de nosso deleite
contemplativo, nossos olhares tropeçaram numa massa sólida e convulsa. Destoando
do ambiente de sábado e gozo, atrapalhando a rota dos esqueites e o silêncio voraz
dos abraços, um sujeito em trapos grunhia e se contorcia junto ao chão, no que
os leigos costumam apontar certas apavorantes e irreproduzíveis alucinações
deslanchadas pelo craque, ou pela sede. Falava desordenadamente sobre a mãe, em
cima da árvore, um cachorro, o senhor delegado – “não, eu sou amigo dele! eu
sou!” – expressando em cada gesto um sofrimento incalculável, e incompreensível
para todos nós, esquerdistas sabatinos. Não é que estivesse incomodando alguém,
propriamente, no sentido corpóreo e interindividual do termo incomodar. Mas sua
simples existência ali já era ofensiva, pesada, como se podia ler em alguns
olhares e gestos, e no afastamento assustado de alguns casais.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Quando finalmente se virou para
nós, senti circular em cada veia e em cada nervo uma pena dolorosa: seus olhos,
pretos e avermelhados, cavados em enormes olheiras, por pouco não se reviravam,
e escancaravam um estado de total e confuso desespero. De seu rosto saltavam
feridas e marcas – e estava solto no mundo. Minha alma se rachou entre o êxtase
de antes e a angústia daquele agora: não seria o caso de ajudar? Ligar para um
hospital, um abrigo, algum centro...? Impossível era não fazer nada, fingir alguma
absurda indiferença, o que os grunhidos esporádicos descartavam de antemão. Aflito
e pesado, esqueci que junto ao meu braço e ao meu peito havia outra pessoa, com
suas próprias impressões e desejos. Mas ao ver que um rapaz já se dirigia a um
policial, apontando para o alucinado, me fiei desesperadamente àquela que me
acompanhava, e cuja compreensão de meus anseios já havia chegado ao ponto de
dispensar as palavras, ou de até mesmo adivinhá-las.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Lancei-lhe um olhar angustiado –
e com que alívio encontrei a mesma aflição naquele verde lacrimoso, que se
adiantou à fala com um aperto histérico em minha mão!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
- Que horror, coitado...! Vamos
embora, querido?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 36.0pt;">
Ainda meditei um pouco sobre sua
pergunta, enquanto um policial finalmente arrastava aquele desvairado para
longe da praça nova, e do sábado sagrado. Depois de muito pensar acabei sugerindo
a Vila Madalena – lugar onde, pretextando doença, sono ou dor de cabeça,
poderia ir para casa, para não me encontrar nunca mais nem com ela, nem com
seus olhos, nem com a minha própria, estúpida e incompetente consciência.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-26320804649857169562013-05-05T09:06:00.000-07:002013-05-05T09:11:04.660-07:00Saudoso José<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="MsoNormal">
<br /><br /><br /> <span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 22.0pt; line-height: 150%;">P</span>eço
a licença dos eventuais leitores – se é que eles existem – para tratar neste
fim de semana de coisa diversa das que costumam ter lugar aqui, nesta página. É
que, pelo efeito ambíguo do costume, pode ser que estejam esperando alguma
anedota pretensamente engraçada, construtiva, ou com manias de sentimentalismo
– e hoje esta coluna estará mais para um obituário tedioso, ou um afetado
panegírico: as duas possibilidades humanamente disponíveis para a estupidez
incontornável da morte. Peço, então, àqueles que esperavam saborear uma comédia
de costumes, para fuçarem em outros blogues, como os que recomendo na coluninha
da esquerda, para depois não culparem eventualmente o autor por terem gastado o
seu precioso tempo de internet com uma coisa assim tão chata.</div>
<div class="MsoNormal">
Começo e
termino num velho boteco da Cônego Eugênio Leite, rua onde morei e moro com a
graça de Santa Luzia já há vinte anos, dois dos quais num sobrado bem em cima
do tal do boteco. Ainda nesses tempos – aos quais, não se tratassem de apenas cinco
anos atrás, eu me referiria de alma cheia pelo nome de “tempos de juventude” –,
nos meus vai-e-vens pelas esquinas, nas escapulidas para fumar longe do olhar
de meu pai, ou nas simples batidas de perna pelo bairro, sempre percebia, na ânsia
de uma nova convivência na rua velha, o mesmo circunspecto e barbado cidadão,
invariavelmente sentado atrás das folhas do <i>Estado
de São Paulo </i>ou da <i>Gazeta de
Pinheiros</i>, com um maço de Free Light e, depois do meio-dia, uma garrafa de
cerveja. Não me lembro exatamente por que ou quando, mas num dia de dureza, mendigando
cigarro, demos finalmente para conversar – pela gentil intervenção de Seu
Medeiros, o dono do boteco, talvez. O tal sujeito se chamava José Ibrahim – e
eu passaria a chamá-lo de Zé.</div>
<div class="MsoNormal">
- Eu já sou
aposentado – murmurou num tom grave, limpando a espuma de Brahma da barba
grisalha, ao redor dos lábios grandes e frouxos, que projetavam seu rosto sério
para baixo. – Mas ainda trabalho... com sindicalismo, essas coisas....</div>
<div class="MsoNormal">
E não era
de ontem: desde os tempos do ronca e de Dom Pedro Cipó Pau... principalmente do
pau, e do chumbo. Se metera em algumas greves – na famosa de Osasco de 68 –, e
até na luta armada contra o regime militar; conhecia o então presidente em
pessoa, velhos companheiros de greve. E até do sequestro...</div>
<div class="MsoNormal">
- Aquele do
embaixador...?! – perguntei, desacreditado.</div>
<div class="MsoNormal">
- É. Do
embaixador americano... mas eu não participei – desviou os olhos opacos para a
rua ensolarada –, na verdade eu... tem um documentário, que fizeram, acho que
ia te interessar.</div>
<div class="MsoNormal">
<i>Hércules 56</i> – o avião militar com que
fui, certa feita, a Manaus, e que tinha sido, como descobri pelo documentário,
o mesmo avião, comprado da sucata norte-americana, que levou os 15 trocados
pelo embaixador Charles Burke até o México. E de lá para Cuba... no vídeo, em uma
sala escura com os ex-presos espalhados por sofás, o mesmo rosto moreno a que
me habituara ver envelhecido, sério e barbado aparecia extremamente jovem,
olhos vivos, devorando grandes bolhas de fumo de um charuto, oferecido pelo
próprio Fidel Castro, que se sentava ao seu lado...</div>
<div class="MsoNormal">
Mal
terminado o filme, ainda atônito com a confluência de dois séculos tomando
cerveja ali na rua, desci rapidamente a escadaria do sobrado para o boteco,
doido para encontrar aquele herói sobrevivente.</div>
<div class="MsoNormal">
- Mas Zé! Você
tem história, hein?</div>
<div class="MsoNormal">
Ele se riu,
o seu riso largo e astucioso, e passou mais uma tarde me contando dos seus
tempos de luta. Depois descobri que não o conhecia de agora – na verdade,
quando pequeno, brincava com seu filho, estudávamos na mesma escola e morávamos
na mesma rua... onde ainda moravam. Mas aquela nova afinidade, mais espontânea,
que só poderia surgir entre um senhor vivido e um jovem curioso, era muito mais
sólida do que qualquer recordação.</div>
<div class="MsoNormal">
Conversávamos
algumas tardes inteiras. E já não mais só sobre os anos de chumbo, o cenário
pré-golpe; mas sobre as mudanças do bairro, sobre cigarros, sobre a atualidade
brasileira. Ia muito a Brasília, tinha um cargo importante, estava sempre por
dentro. Ainda nas presidenciais de 2010, ponderava de maneira acertada:</div>
<div class="MsoNormal">
- Não...
enquanto o PT tiver o PMDB, ele governa. E como governa! – exagerava eu,
exaltado, e meio nervoso diante das proporções históricas de minha companhia de
mesa.</div>
<div class="MsoNormal">
- É Pedro...
governar ele governa, mas o PMDB pra eleger a Dilma vai querer aumentar o
pedaço do bolo. Quem vai governar nos próximos anos é na verdade o PMDB.</div>
<div class="MsoNormal">
Me opunha,
conforme as possibilidades, num impulso talvez inconsciente de aumentar meu próprio
tempo, politicamente disforme e confuso, ante aqueles que na minha imaginação
ainda pareciam os anos mais instigantes e importantes da história brasileira.
Mas eu era, como ainda sou, ingênuo e inexperiente demais, e as conversas de um
sujeito com 40 anos de política acabavam sendo, apesar da cerveja, mais do que
diálogos: verdadeiras aulas de história e política.</div>
<div class="MsoNormal">
Um dia
demos para discutir marxismo – tema espinhoso para quem quer que seja, mas ainda
mais para quem lutou por ele, em seu modelo político, e o viu se desmanchar
vergonhosamente em menos de dez anos. Já exaltado por algumas cervejas, nos
primeiros anos de faculdade, me pus a defender novas ideias, a renovação do
marxismo, seu tempo estrutural, o fim do dinheiro, e outras enrolações. No
começo da conversa, ele e seu amigo – um senhor gordo e grisalho, bastante
bonachão, que viva fazendo gracejos para que eu lhe desse um chapéu igual ao
meu – ainda me ouviam interessados, discutiam, traziam informações. Mas com o
passar do papo, pelas suas expressões entediadas, quase aborrecidas, percebi
que tinha finalmente me tornado o tipo do moleque petulante. Quando percebi ainda
tentei mudar de assunto, falar de amenidades, mas já era tarde: havia estragado
o humor daquele almoço.</div>
<div class="MsoNormal">
Assim como
o de alguns outros... conforme a relação se aprofundara, nossas ideias mais
específicas se mostravam cada vez mais incompatíveis. E depois desse episódio –
não sei se por causa dele, ou se ele mesmo tinha sido consequência de alguma
transformação – começamos a nos ver cada vez menos. E não à toa: de meu lado,
faculdade e trabalhos começavam a tomar cada vez mais o tempo e a dedicação
que, no colégio, eu dispensava à vida do bairro e à conversa com seus
moradores. Já do lado dele, sua atuação sindical aumentou; passava semanas
inteiras em Brasília, articulava uniões, já não estava sempre na mesma cadeira,
atrás dos jornais com seu maço de Free. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Nos últimos dois anos, se nos
encontrávamos, era de maneira fortuita e apressada. Tinha até mudado de bar – brigou
com o seu Medeiros, foi para a rua de trás, imaginem. Só recentemente, um sábado
em que eu por milagre não tinha aula, e que ele esperava por alguém no velho
boteco da Cônego, foi que deu para conversarmos direito, quase à maneira das
primeiras vezes, quer dizer... com aquela mesma leveza, compreensão e interesse
mútuos, ainda que por outros assuntos. Quando seu amigo chegou, conforme nos
despedíamos, me abraçou e apresentou, rindo como ri um avô:</div>
<div class="MsoNormal">
- Esse
rapaz aqui – virou-se para mim – me deve uma fortuna em cigarros! Lembro dele
ainda moleque, vivia duro, e o pai dele dava umas coças por ele fumar. Era eu
que salvava a pele dele! E agora virou essa coisa...</div>
<div class="MsoNormal">
E me deu
alguns tapas nas costas, num afluxo de nostalgia e bem-querer. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Depois desse dia só fui vê-lo
ontem, no mesmo bar, quase na mesma mesa, mas de maneira completamente outra.
Quem me chamou a atenção foi o seu Medeiros, apontando para uma folha de jornal,
com uma foto dele, pregada no orelhão em frente – onde deve ficar alguns dias,
tão conhecido ele era pela freguesia do bar e do bairro. Depois de sobreviver à
tortura e ao exílio, faleceu, aos 66 anos, de enfarto fulminante, nesta
quinta-feira, dois de maio. O meu consolo de não poder se despedir – quem aliás
tem tal privilégio? – foi justamente a data e o local: ele ainda conseguiu
participar de um último Primeiro de Maio, no campo de Bagatelle; e eu fiquei
sabendo de sua morte sentado na mesma mesa em que fiquei sabendo de sua vida.</div>
<br /></div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-4687404697875550992013-04-28T12:23:00.003-07:002013-04-28T12:23:58.220-07:00Sala & Sapatos<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<i>Das adversidades da
Música de Concerto em um país de clima subequatorial<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 20.0pt; line-height: 150%;">P</span>obre do azarado que, brasileiro, deu para gostar de
música clássica. E não falo da excentricidade, do papel de pedante, e nem da
velhice precoce que a música de concerto via de regra acaba causando... Talvez
pela sua suposta aversão aos nossos planaltos tropicais, mais afeitos ao
batuque que à batuta – falso problema que qualquer Heitor desmentiria –, ou
mesmo, como coaxam por aí certos nostálgicos da República do Café, pela
ignorância incorrigível do Zé Povo; pela razão que for: a infelicidade não é
menor. O acesso é pequeno, o preço, enorme e as dificuldades, aos cachos.</div>
<div class="MsoNormal">
Começo, no diletantismo
permitido a um cronista, pelo problema das orquestras: vivem de baixos
incentivos, e poucas são de repertório – um claro reflexo dos costumes, já que
a rigor a sociedade só produz o que precisa... ainda que, felizmente, sigam
sempre existindo, por este Brasil de meu Deus, inúmeros conjuntos militares,
juvenis, carnavalescos e recreativos, zelando pela música orquestral sem
qualquer petulância. Agora mesmo me lembro da Lira São-joanense, que se
proclama a orquestra mais antiga do Brasil (séc. XVIII), da qual qualquer bom
morador de São João Del Rey falará de peito cheio mesmo que, numa missa na
matriz, dificilmente a tal da orquestra consiga orquestrar alguma coisa. A
profissionalização do artista, ainda que via de regra roube a sua alma, no caso
de um complexo musical com mais de cinquenta instrumentistas não é lá má ideia:
é preciso que sejam organizados, talentosos, bem pagos e, principalmente, estejam
a serviço da população... </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Meta distante: talvez pela falta
de uma educação geral propriamente erudita – contraposta à musicalidade quase
inata do brasileiro –, aliada à alergia de povo das supracitadas rãs do café
com leite, o fato é que sala de concerto neste país ainda é sinônimo de
champanhota e pince-nez. Tanto no preço quanto no acesso e na imaginação. Contra
o que alguns programas já estão batalhando, ainda que silenciosamente – lembro-me
agora do Projeto Curumim, e da Sinfônica de Heliópolis, como exemplos. Já o
acesso, pelo menos <st1:personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São
Paulo</st1:personname>, sofre daquela velha ironia, tão amarga quanto tapuia,
de estar ao mesmo tempo à mão de todos e de ninguém: o Municipal, o São Pedro,
o Cultura Artística e a Sala São Paulo ficam bem no Centro, na área de maior
circulação e diversidade social da metrópole, bem servida de metrô, de trem, de
ônibus – e mesmo assim, ficassem essas salas no Shopping Cidade Jardim e o
público seria basicamente o mesmo. Uma situação que o preço da entrada, mesmo
não sendo extraordinariamente absurdo, tem lá a sua parte na manutenção.</div>
<div class="MsoNormal">
Naquela
noite escaldante de novembro, ainda existia a possibilidade de arranjar convite
a dez reais – o saudoso Ingresso da Hora, vendido a dez minutos do começo do espetáculo.
Bastava esperar numa fila e, portanto, chegar meio cedo, pré-requisitos
aparentemente cumpridos conforme eu saltava, empapado de suor, na Duque de
Caxias com a Júlio Prestes, consultando instintivamente o relógio do celular.</div>
<div class="MsoNormal">
- 8:20 ! –
suspirei, repousando os olhos na avenida frenética. As cortinas de aço
entreabertas ainda mostravam frutas podres, cheirando forte no calor da noite;
alguns cabos de rede, azuis e pretos, blusas e camisas; num galpão azul-bebê,
um pastor esbravejava, apocalíptico, a uma plateia abarrotada, e junto à porta
três coreanos pareciam discutir, na sua língua absurda; do outro lado, ao redor
da trincheira farpada da antiga rodoviária, círculos cada vez mais histéricos
se aglomeravam, no coletivismo egoísta do crack: um cenário totalmente dostoievskiano
que se armava para a noite da Luz, conforme eu, entre o fascínio e a pressa,
deslocava os olhos do celular para os ponteiros da torre, atravessando a fila
de táxis que já se espremia, vomitando madames na esquina da Júlio Prestes com
a decadente rua Mauá.</div>
<div class="MsoNormal">
Adentrei
pelos arcos bem policiados da praça, ao som da lataria do Trem Metropolitano. Afobado,
tropecei umas cinco vezes na minha própria sandália, já escorregadia pelo suor,
e quase deixei o pé esquerdo pelo caminho. Só quando pisei firme sobre o estrado
de madeira envernizada, na elegante antessala com a estátua de Eleazar de
Carvalho, foi que me acalmei de fato com o horário: não se tratava de um
concerto trivial, escolhido ao acaso para matar o tempo. Era coisa imperdível, a
5ª sinfonia de Mahler, o judeu convertido à fé católica, o último romântico das
canções de <i>Des Knaben Wunderhorn</i> e o
primeiro moderno da 9<span style="font-size: 11.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">ª sinfonia</span>, o modelo para <i>Morte em Veneza </i>no livro de Mann e no filme de Visconti, o
compositor por quem consigo ter a mesma paixão e idolatria que tive, aos 14
anos, pelos Beatles. Aliás só por isso que havia chegado tão cedo, meia hora
antes: normalmente me atraso, quando muito chego em cima da hora. Só aquela
confluência entre paixão desvairada e oportunidade única para me fazer me
adiantar, mesmo assim nem tanto: no subsolo, entre casais respeitáveis e jovens
descolados (entre quem música clássica já está se tornando <i>cool</i>), já se avolumava uma pequena fila. Ao lado conversava um
pequeno grupo de rapazes, simples e até maltrapilhos, com mochilas nas costas e
a tiracolo. Os grandes estojos apoiados no chão denunciavam estudantes de
música, e de fato: logo reconheci um deles.</div>
<div class="MsoNormal">
- Salve! –
me enfiei, feliz da vida por não ter que esperar sozinho.</div>
<div class="MsoNormal">
Cumprimentamo-nos,
e fui apresentado aos desconhecidos.</div>
<div class="MsoNormal">
- Hoje a
coisa vai ser boa... – esfreguei as mãos, ansioso.</div>
<div class="MsoNormal">
- Ah vai! –
concordou, presto, meu amigo, de índole igualmente mahleriana.</div>
<div class="MsoNormal">
- É... meio
longo, né... – suspirou um violinista, ali mais por uma obrigação profissional
do que por amor à arte, adepto que era, claramente, de obras mais ligeiras e
mais palatáveis.</div>
<div class="MsoNormal">
- Ah, que é
isso! – indignou-se o meu amigo mahleriano – Como é que você pode...</div>
<div class="MsoNormal">
E começou
uma daquelas intermináveis conversas de músicos eruditos, às quais mesmo um
amante sincero da arte, como eu, tem poucas chances de participar, seja por
ignorância bruta, seja por falta de paciência. Acabei mais folheando uns
papéis, lendo um folheto sobre o maestro convidado, e por fim, ao constatar um
aumento na fila, interrompendo a apaixonada discussão:</div>
<div class="MsoNormal">
- É bom a
gente se apressar.</div>
<div class="MsoNormal">
Pegaram
suas coisas e nos mobilizamos. Mas no que fomos para o “L” da fila, separado
pelas cordas, meu amigo pisou em falso e, apoiando no meu ombro, quase me
derrubou junto com um violino, não fosse eu me apoiar em uma coluna.
Recomposto, pediu desculpas e constatou:</div>
<div class="MsoNormal">
- Ah, os
cadarços...</div>
<div class="MsoNormal">
Esperei educadamente
que ele os amarrasse, conforme os outros já se adiantavam: se ajoelhou ao meu
lado, entrançou as duas cordinhas meio puídas, e demorou o olhar um pouco sobre
meus pés, admirado. Quando levantou, numa expressão entre riso e desespero, pôs
a mão no meu ombro e disse:</div>
<div class="MsoNormal">
- Bicho...
como é que você vai fazer...?</div>
<div class="MsoNormal">
- Com o
quê? – não entendi.</div>
<div class="MsoNormal">
- Com esse
chinelo... você sabe que...</div>
<div class="MsoNormal">
- Não é
chinelo, é... – entendi numa paulada - Puta merda, não vão me deixar entrar...!
– e bati a mão sonoramente na testa, com um misto de raiva de mim e do mundo. –
Ah, não... porra, e agora, quê que eu faço?</div>
<div class="MsoNormal">
Meu amigo
olhou no relógio, virou para mim num suspiro, e disse</div>
<div class="MsoNormal">
- Chora.</div>
<div class="MsoNormal">
E como a
fila andasse, me lançou um olhar de impotente compaixão, e seguiu para comprar
os ingressos. Bem, e eu...? Voltar pra casa seria avassalador: fazia pelo menos
uns dois meses que eu queria ver aquele concerto, contava os dias, e ter ido
até a Luz para uma broxada daquelas ia ser de morte. Mas de chinelo não iam me
deixar entrar... só se eu...</div>
<div class="MsoNormal">
- Gabriel,
espera. – me adiantei, decidido. – Compra pra mim também</div>
<div class="MsoNormal">
Ele ainda
olhou para as minhas sandálias, mas resolveu não insistir, pegou meu dinheiro e
comprou, sob o olhar de reprovação de alguns que achavam que eu tinha furado
fila. Quando eu peguei meu ingresso e agradeci a caixa, o gorila de terno que
ficava ao lado, com o rádio na mão, percebeu o que eu calçava e já me puxou
pelo ombro:</div>
<div class="MsoNormal">
- Amigo,
com esse chinelo aí você não entra não...</div>
<div class="MsoNormal">
- Chinelo
não, grande, é sandália. E vem cá, que história é essa, de que não entro?</div>
<div class="MsoNormal">
- Norma da
casa – respondeu, seco e importante, como se a norma fosse de Deus, e a tal da casa
fosse dele. – Aqui é lugar de gente decente.</div>
<div class="MsoNormal">
- Ah, então
sandália é indecente?! Desde quando! – era tão absurdo que eu não conseguia
replicar. Mas respirei fundo. – Meu irmão, esse calor...!</div>
<div class="MsoNormal">
- Lá dentro
tem ar condicionado – cortou, já sem paciência, ainda que se visse, no seu
rosto melado de suor, embrulhado num paletó e numa gravata excessivamente
justos, que a sua condição discordava do tal ar condicionado.</div>
<div class="MsoNormal">
Tentei
argumentar mais algumas obviedades, sabendo que não tinha nada a perder, mas o
gorila esgotou a paciência e acabou chamando o gerente, antes de chegar aos
finalmentes da sua tediosa profissão, que tantas aventuras promete, mas que raramente
consegue chegar ao clímax de encher um impertinente de porrada.</div>
<div class="MsoNormal">
- Pois não,
em que posso ajudá-lo? – chegou, todo afetado, um gordinho de óculos, com um
crachá de gerente.</div>
<div class="MsoNormal">
- É o
seguinte, meu caro... – tentei enxergar o nome – ... meu caro Gérson. Gérson,
eu frequento esse lugar já faz um bom tempo; gosto de música clássica, acho a
sala de vocês ótima. Já tenho o convite pra hoje, e esperei como um louco pra
ver esse concerto. Só que com esse calor, eu acabei usando isso daqui...</div>
<div class="MsoNormal">
Apontei
para os meus pés sujos, mas antes que eu pudesse concluir, ele completou.</div>
<div class="MsoNormal">
- ... e agora
não vai poder entrar. – cantarolou, num sorriso de falsa lamúria.</div>
<div class="MsoNormal">
- Então,
isso é um absurdo!</div>
<div class="MsoNormal">
- São
normas, sinto muito.</div>
<div class="MsoNormal">
- Mas...!</div>
<div class="MsoNormal">
- Olha só –
e me puxou para um canto da bilheteria, onde, numa moldura dourada, pendia uma
ficha com letras miúdas e enfáticas –: “É terminantemente proibida a entrada de
pessoas sem camisa, sem... sem calças...? Hum?! Ah, de bermudas, de chinelos...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Mas são sandálias... –
arrisquei.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- “...de sandálias... ou qualquer
outro calçado que não cubra os pés inteiramente”. Está vendo? É isso aí. </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Mas...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- É, eu sinto muito... – afetou
compaixão. – Mas se você quiser pode encaminhar uma reclamação à diretoria
neste endereço aqui, ó – e me estendeu um cartão. – Daí eles veem.</div>
<div class="MsoNormal">
E, sem nem
um boa-noite, virou de costas e me deixou falando com o vento. Como o segurança
ainda me olhasse feio, desisti de persegui-lo e exigir explicações mais cabais:
a não ser que invadisse a sala, me enfiasse por uma janela ou chamasse o
presidente da república, não iria conseguir entrar naquele concerto, do meu
compositor favorito, que esperei por tanto tempo, por causa da porra da caralha
do chinelo...</div>
<div class="MsoNormal">
- Sandália!
– me corrigi, mentalmente.</div>
<div class="MsoNormal">
Era isso e
ponto. Por causa de um invólucro para os pés, criado certamente na Europa ou em
qualquer lugar bem longe do trópico de Capricórnio, eu, que só de sandália já
morria de calor, não ia poder ouvir música... e qualquer tentativa de elucidação
lógica da relação entre sapatos e concertos estaria condenada, ou ao fracasso,
ou pelo menos à constatação clássica da vitória absoluta do surrealismo na vida
prática no território brasileiro. Sem ânimo para discutir com quem quer que
fosse, já consciente da inutilidade dos apelos, e da fatalidade da derrota,
subi as escadarias rumo à porta por onde entrei, na pça. Júlio Prestes. Ia dar
meu ingresso, chutar umas pedras e ir andando até a Estação da Luz.</div>
<div class="MsoNormal">
A mesma
base móvel de polícia seguia junto à entrada, ao longe as mesmas multidões do
crack se juntavam, abençoadas pelo Cristo do Liceu, e alguns comércios
terminavam de fechar do outro lado da Duque de Caxias. Os táxis eram poucos: já
eram cinco para as nove. Parei por um momento, cansado, xingando o gerente e o
gorila de terno: paus mandados do caralho... é assim que se estraga uma noite
de uma pessoa cuja vida já não é lá muito emocionante! Não iria em baladas, não
encheria a cara, não jantaria <st1:personname productid="em alguma Fam■lia Mancini." w:st="on"><st1:personname productid="em alguma Fam■lia" w:st="on">em alguma Família</st1:personname>
Mancini.</st1:personname> Tudo que eu queria era assistir a um concerto, e
isso porque o preço me cabia: normalmente, essas apresentações são de
cinquenta, cem, duzentos reais. E nem por isso deixam entrar de chinelo...</div>
<div class="MsoNormal">
- Sandália
– me corrigi.</div>
<div class="MsoNormal">
Ao meu lado,
dois senhores respeitáveis tragavam apressados os seus cigarros, quase bitucas,
ante a iminência do segundo sinal. Exfumante, numa situação crítica como
aquela, era a oportunidade para me render: pedi um cigarro, que me concederam,
solícitos. Mas quando me entregavam o isqueiro, uma voz esganiçada e inoportuna
se intrometeu.</div>
<div class="MsoNormal">
- Ô gente
com licença boa noite aí, será que cês num têm um real aí pra mim interar um
lanche?</div>
<div class="MsoNormal">
Me virei,
depois de devolver o isqueiro, enquanto os dois se afastavam para dentro da
Sala como que se ninguém tivesse dito nada: diante de mim tinha um ser
esquelético, envolto em trapos de uma cor indefinida, outrora aparentemente
branca, carregando uma mala rasgada, a tiracolo. O rosto, apesar de sujo, era
claro e até gentil, confluindo para um par de olhos bastante vivos embora frenéticos,
insolentes e até opacos.</div>
<div class="MsoNormal">
- Ô amigo,
deixa eu ver aqui... – solidarizei-me, tirando a carteira. Mas quando abaixei os
olhos para checar os trocados, reparei no chão para os sapatos do camarada
indigente: um par razoavelmente grande de coisas que um dia se chamaram tênis,
de cor igualmente indefinida. Cadarços desfiando, um rombo enorme do lado
esquerdo: era um troço, como se diz. Mas era minha salvação.</div>
<div class="MsoNormal">
Na hora deixei
os trocados de lado, saquei uma nota de dez e entoei a ladainha.</div>
<div class="MsoNormal">
- Amigo, eu
ia te dar umas moedas, mas vou te fazer uma outra proposta: eu preciso muito,
mas muito desse sapato aí seu. Te dou dez mangos por ele. Que tal?</div>
<div class="MsoNormal">
O sujeito
arregalou os olhos numa expressão perplexa, criada, naturalmente, pela proposta
mais inusitada que ele já tinha ouvido na vida: tinha conseguido arrancar os
sapatos de uma fiação tombada na chuva, quase morrendo eletrocutado, e desde
então estava com eles. Certa vez, no pregão do crack, tentou vender, mas não deu.
Seus olhos faiscaram com a possibilidade da grana. Mas, usando o bom senso, percebeu
que estava em posição de negociar.</div>
<div class="MsoNormal">
- Te dou
por vinte.</div>
<div class="MsoNormal">
“Que pilantra!”,
pensei, fuçando a carteira.</div>
<div class="MsoNormal">
- Só tenho
quinze... – blefei olhando as notas, e mostrando o dinheiro com bazófia.</div>
<div class="MsoNormal">
- É nóis –
emendou sem hesitar, e já ia pegando a grana quando eu recuei a mão.</div>
<div class="MsoNormal">
- Tira o
tênis antes, que eu te dou.</div>
<div class="MsoNormal">
O sujeito
me olhou fundo uns dois segundos, e começou a tirar o sapato. Um cheiro de chulé
com lixo se insinuou levemente, mas, pensando no bem da arte, consegui ignorar.
Mal colocou na minha frente, lhe estendi o dinheiro.</div>
<div class="MsoNormal">
- Muito
obrigado – apertei, exaltado, a mão calosa e áspera do indigente.</div>
<div class="MsoNormal">
- Valeu irmão–
entressorriu este, num gesto sincero mas nervoso.</div>
<div class="MsoNormal">
- Esse
sujeito está incomodando o senhor? – rompeu feito um cavalo o segurança daquela
entrada, já querendo defenestrar, rua Mauá abaixo, o pobre do mendigo que tinha
salvo a minha noite.</div>
<div class="MsoNormal">
- Não não
não! – intervim – Muito pelo contrário...</div>
<div class="MsoNormal">
E o
sujeito, encolhido, partiu em paz para fumar seus vinte contos. Apressei-me a
tirar as sandálias, enfiá-las de qualquer jeito na bolsa, e calçar aqueles
trapos que tinha regateado. Fedia realmente um bocado – a chulé, mais do que a
lixo –, mas não era nada insuportável. Só número, que era um pouco menor do que
o meu. Orgulhoso do meu achado, louco para esfregar na cara do <i>staff </i>as minhas manobras, marchei,
vitorioso e calçado, Sala São Paulo adentro, faltando dois minutos para o
começo do concerto. Na bilheteria, o brutamontes e o gordinho ainda tentaram me
barrar.</div>
<div class="MsoNormal">
- Onde é
que o senhor...</div>
<div class="MsoNormal">
Apenas
apontei, e os dois se calaram. O segurança ainda tentou se opor:</div>
<div class="MsoNormal">
- Mas está
todo nojento...! Olha isso! Pegou aí na Cracolândia, né, seu puto!</div>
<div class="MsoNormal">
- Calma aí,
chefia! O regulamento diz que o sapato tem que ser novo? – perguntei, ar de
ingênuo. E enquanto ele pensava em alguma resposta, adentrei, mostrando o
convite, sob os narizes torcidos com o mau cheiro dos casais aristocráticos, terrivelmente
indignados, mas sem qualquer pretexto jurídico para expulsar de lá um vitorioso
par de sapatos malcheirosos.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-87332264538777855872013-04-20T09:29:00.003-07:002013-04-20T09:31:27.485-07:00O valsar do realejo<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 26.0pt; line-height: 150%;">F</span>oi na feira da Benedito Calixto. Confesso que, como
pinheirense inveterado, já faz algum tempo que parei de ir lá, de tão cara e
tão lotada que foi ficando, perdendo sua identidade. Mas recentemente – acho
que por causa dos discos de música clássica, pouco procurados e, portanto, de
preço baixo – dei de passar lá de vez <st1:personname productid="em quando. Andava" w:st="on">em quando. Andava</st1:personname> eu
pelo lado da Lisboa, desbravando as multidões bem vestidas com a ajuda dos
cotovelos, ao passo em que os olhos se ocupavam, do outro lado da rua, de uma
morena charmosa, quando dei de frente, quase na entrada da quadra do choro, com
um curvo e cansado tocador de realejo.</div>
<div class="MsoNormal">
Verdadeiro
pesadelo nostálgico: pele batida de sol, bigodes de escovão grisalho sujo, indeciso
entre o branco natural e o preto desbotado de alguma tinta vagabunda, uma boina
surrada na calvície e um par de olhos aquosos, transbordantes. Em meio àquela
colmeia de jovens descolados, olhando os discos de samba e as bijuterias de
coquinho, parecia um alienígena sem apelo, um perdido, uma verdadeira mercadoria
sem graça.</div>
<div class="MsoNormal">
E ainda
pior era o seu papagaio: tinha jeito de ter vivido o dobro ou o triplo do dono.
Ainda que velho, este pelo menos conseguia girar a manivela com vigor e
constância: já o papagaio nem se mexia, inútil e borocoxô, resumindo seus
gestos num ou noutro passinho lateral, no poleiro gasto, enjaulado num amarelo
torto e desbotado. Não tinha mais aquele verde exuberante, que enobrece os
louros da terra: parecia um pombo doente, ou o bigode do dono, espetado e sujo,
e não fosse ele guinchar, feito um alarme, volta-e-meia, poder-se-ia perguntar
àquele senhor o que no mundo o teria levado a engaiolar um espanador pintado de
verde.</div>
<div class="MsoNormal">
Desisti dos
discos e da morena, engolida que foi subitamente na multidão, e fiquei parado,
meio sem jeito, admirando o fantasma tristonho girar maquinalmente a manivela
da valsa torta – uma representação fiel do passado que, dia após dia, sinto
escapar dolorosamente entre os meus dedos. E enquanto isso o sábado seguia seu
refluxo frenético, apontando objetos, regateando, desfrutando obstinada e
obrigatoriamente o seu lazer de dia livre. Plantado como uma barraca, no meio
do caminho, sem desgrudar os olhos, comecei a sentir que estava atrapalhando a
valer, sendo gentil e progressivamente atropelado por uma dupla de casais, que
me desviaram, olhando feio. Achei melhor ir para um canto, mas continuei por ali,
enfeitiçado que estava por aquela valsa manca, por aquele inválido do tempo,
por aquele papagaio deprimente. Passaram-se assim uns bons dez minutos, até a
insistência do olhar se tornar invasiva, e o velho desconfiar. Ainda tentei
disfarçar, jogando os olhos pelas mercadorias, mas mal ele mergulhou novamente
no além, voltei a observá-lo: queria ver se alguém ia falar com ele; se alguém,
de consciência ingênua e de ar fantasioso, ainda se dobrava ao som de uma
valsinha – que “já vendeu tanta alegria”, na canção do Chico; e mais: queria
ver se alguém, independentemente do interesse folclórico, realmente faria o
voto de confiança de deixar aquele frango esverdeado ler, ou bicar, o seu
suposto futuro.</div>
<div class="MsoNormal">
Mas não
vinha ninguém: um ou outro ainda olhava, por mera curiosidade, fazia agrados ao
papagaio. Mas, sentindo a antipatia da ave, logo se afastava. Por fim,
resignado à minha própria curiosidade, somada a um asqueroso, incômodo e
católico sentimento de pena, abri caminho do meu canto até o realejo, disposto
a fazer uma pequena contribuição, puramente cristã, para a existência daqueles
dois seres – ainda que custasse ler, sem a menor fé, a tal da minha sorte.</div>
<div class="MsoNormal">
- Boa
tarde! – exclamei, meio sem jeito.</div>
<div class="MsoNormal">
- Boa! –
respondeu, com educada simpatia.</div>
<div class="MsoNormal">
- Cróóóó! –
resmungou o papagaio.</div>
<div class="MsoNormal">
- Eu
queria... eu queria, meu amigo...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
“Que o senhor fosse eterno”,
gritava minha alma, mas tudo que saiu foi: </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Tirar a sorte....!</div>
<div class="MsoNormal">
- Pois não.</div>
<div class="MsoNormal">
Semiabriu rapidamente
a gavetinha empenada sob a gaiola, e atacou a manivela com afinco – no que a
valsinha, até então torta e monótona, cresceu frenética e diabólica, como num número
de circo. Por fim o papagaio, entendendo o sinal, acordou da sua inerme apatia,
inclinou o corpo para frente e bicou um papelzinho do compartimento esquerdo da
gaveta – estendendo-o para mim, pescoço em sanfona num gesto de impaciência..</div>
<div class="MsoNormal">
- Pode
pegar – sorriu o velho pelos bigodes.</div>
<div class="MsoNormal">
Delicadamente,
arranquei o bilhetinho do bico da criatura, não sem medo de que me mordesse.
Mas o pernóstico, mal viu seu dever cumprido, recuou o corpo num arrepio, e
voltou ao seu estado de esnobe contemplação. </div>
<div class="MsoNormal">
Desdobrei, sem
vontade, e li:</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<div style="text-indent: 0px;">
<i style="text-indent: 35.4pt;">Cuidado para não tropeçar<br /><div style="text-align: left;">
<i style="text-indent: 35.4pt;"><i style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">nas pedras que encontrar no caminho</i></i></div>
</i></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 106.2pt; text-indent: 35.4pt;">
</div>
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Uma frase que, tirando o apelo
drummoniano, transferido do passado para o horizonte de expectativas, pouco
sugeria além do seu sentido trivial, de tão batida e esvaziada que é a pobre da
metáfora. A não ser que pedras de fato passassem a aparecer no meu caminho, e
eu, distraído que ando, corresse o risco de tropeçar em uma delas. Ou em
várias... amassei novamente o augúrio, enfiando-o no bolso da camisa, por
recordação e, também, por segurança – vai saber!... </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Mas era o de menos: não tinha
feito aquilo por simples carência ou por absurdo misticismo: foi pra travar algum
contato com aquela figura ancestral, baluarte de um passado ameaçado, se arrastando
na terra com um papagaio e um realejo, sempre na espera, quem sabe, do dia em
que tudo finalmente irá para o inferno.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Muito obrigado. Eu... fazia
tempo que eu não via um realejo, sabe? Uma raridade... e moro aqui desde
sempre... o senhor não vem aqui sempre, vem....?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Sábado sim, sábado não...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Uma raridade, uma verdadeira
raridade – prossegui. – Não tem muitos realejos hoje em dia, não é?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Só alguns...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- E... dá pra viver?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Se dá?! É essa hora só, que é
ruim... mais tarde chegam as crianças... em um dia faço um bom dinheiro.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- E é mesmo, é? – me espantei com
a intromissão do dinheiro imundo na minha melancolia.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Ah é! As pessoas querem ler a
sorte delas... e tiram foto, mexem com o louro. É um bom negócio! Quer ver, ó –
parou por um instante a musiquinha insistente, futucou no bolso do colete e
tirou um chumaço de cartões, separando um. – Aqui, toma. Dá uma olhada pra você
ver.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Peguei incrédulo o cartãozinho –
desde quando tocador de realejo tem cartão de visitas! Aproximei-o da vista,
contra o sol, e, ao lado de um papagaio feliz, porcamente desenhado, li:</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">
<i>Associação paulista dos tocadores de Realejo<o:p></o:p></i></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">
<i>Marco da Silva<o:p></o:p></i></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
E atrás telefone, endereço,
e-mail e o escambau.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Se você quiser procurar...! –
continuou, retomando o lenga-lenga da manivela, conforme um respeitável casal se
aproximava, com dois pimpolhos. – A gente organiza festa, casamento... debutante,
e... como que é? aquele de judeu...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Bar mitzvah? – perguntei,
incrédulo</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- É! Isso! Tudo isso aí a gente
faz! E tem o programa de TV também, se interessar...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Programa de TV?!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- É – confirmou, com orgulho e
seriedade –, na Globo, todo dia de manhã. Tem um programa lá agora, eles tão
acompanhando o trabalho da gente. Acho que é às nove. Dá uma olhada lá!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
E passou a atender o casal dos
pimpolhos, no mesmo ritual mecânico de acelerar a música do órgão, cutucar o
papagaio e abrir a gavetinha. Sem nenhuma reação, tentando digerir aquilo tudo,
fiquei observando o trabalho regulamentado do realejo, com associação paulista,
horário na TV, talvez com CLT e participação no Programa do Jô. Como a multidão
arrefecesse, e mais duas famílias se aproximassem do realejo, esbocei de ir
embora. Mas lembrei que faltava pagar.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Ô... seu Marco: muito obrigado,
viu? Pela sorte... e quanto é que fica aí, o bilhetinho?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Imagina... é dez reais –
respondeu, distraído.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Quanto?!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Dez reais. – confirmou, com
naturalidade.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Pelo...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- É, ué, pela leitura da sorte.
Tem que alimentar o bichinho.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
E sorriu, apontando o papagaio
esnobe, que acabava de tirar um papel para uma criança rosada. Sem ânimo para
discutir, saquei uma arara do bolso, odiando a mim e às minhas convicções, e a
estendi para o senhor dos bigodes.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Não é pra mim não... É pra ele
– debochou.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
No que o presto papagaio, ligeiro
para os negócios, mais uma vez se deslocou, arrancando num gesto bruto o último
dinheiro que eu tinha e depositando-o na mesma gaveta, ao lado dos bilhetes da
sorte.</div>
<div class="MsoNormal">
“É o preço
da saudade”, murmurei amargamente, conforme me enfiava de novo na multidão, que
acorria para o Chorinho da praça Benedito Calixto.</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-23153136439551864462013-04-12T09:02:00.000-07:002013-04-12T09:02:28.024-07:00O sibitinho<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 18.0pt; line-height: 150%;">S</span>abemos o nome de tudo: marcas de desodorante,
linhas de ônibus, músicos e bandas, editoras, companhias de seguro categorias
de carros – ao passo em que ignoramos, sem vergonha nenhuma, o nome dos bichos
e plantas da nossa própria cidade.</div>
<div class="MsoNormal">
Quem me fez
pensar sobre esse dilema, numa conversa de bar sobre passarinhos, deixou
transparecer em sua frase ironia e raiva, meio nostálgicas. Mas de minha parte,
se não deixo de me entristecer, nem por isso acho menos compreensível: natural só
sabermos do que precisamos, e infelizmente é pouco o papel que resta aos
passarinhos na vida de São Paulo. E mesmo assim talvez esteja cometendo uma
injustiça, afinal, pombo também é passarinho... mas fico pensando, nas esperas
nos pontos de ônibus, quando invariavelmente dois ou mais desses pássaros
obesos e desengonços ciscam alucinadamente os restos de coisas irreconhecíveis,
se talvez também não existam inúmeras espécies e subespécies de ratos com asas,
cada uma com sua particularidade, tamanha é proliferação destes seres na
capital paulista. Tem uns que nascem com um pé só, outros inflam mais o peito,
alguns conseguem viver de plástico...</div>
<div class="MsoNormal">
Mas quando
o ônibus chega é fatal que eu me esqueça desses absurdos. São pombos, e ponto.
São árvores, e ponto. Já os pontos de ônibus, bem, entre eles é preciso saber a
diferença, sob o risco do atraso que se podia evitar. E assim seguimos a vida:
às vezes reparamos em uma ou outra ave que nos parece inusitada, pela plumagem,
pelo tamanho, ou pelo canto... quem já se deparou com um urubu, pesado e
meditabundo, no alto de algum edifício, guarda certamente a impressão do
encontro. Uma vez pude ver, entre amigos, <st1:personname productid="em plena Teodoro Sampaio" w:st="on"><st1:personname productid="em plena Teodoro" w:st="on">em plena Teodoro</st1:personname>
Sampaio</st1:personname>, um gavião carijó atacando os transeuntes
embasbacados.</div>
<div class="MsoNormal">
Se por
curiosidade científica ou por sensibilidade ultrapassada, o fato é que sempre
gostei de aves. Cresci e ainda vivo, por alguma felicidade
ecológico-filosófica, na esquina de um cemitério, onde se ajuntam o esplendor
de uma área verde e o silêncio dos necrotérios: lugar perfeito para passarinhos.
Desde pequeno, o voo dos periquitos, verde-verdinhos, sempre em bandos
tagarelas, me anunciava, com o sino da igreja do Calvário, as seis horas da
tarde. A chegada de outubro nunca se impôs pelos calendários, mas sim pela
sanha dos sabiás, que só cantam (e como cantam!) nessa época do ano. Mesmo com
a orquestra caótica das construções que pipocam diariamente, a maritaca da rua
de trás ainda berra esganiçada, garantindo a audiência dos prédios ao redor.
Sem contar os bem-te-vis, os pardaizinhos, as rolinhas, carne de vaca por toda
a capital, por onde voam e cagam livremente, provando, dia após dia, aos lordes
Byron rastafáris da contemporaneidade, que ninguém precisa ir até a Bahia para “curtir
a natureza” – seja lá o que “curtir a natureza” signifique.</div>
<div class="MsoNormal">
Basta
observar, não ser passivo – tarefa difícil. Eu mesmo só comecei a me interessar
por estas criaturas maravilhosas há muito pouco tempo, e estou longe de poder
dizer, com todo o dandismo das excentricidades conscientes, que sou alguma
espécie de ornitólogo amador. Quem me dera... a vida prática me devora pelas
pernas, e o tempo é escasso... o jeito que achei, ou melhor, venho achando, é
inserir a observação na vida prática. Na USP, por exemplo, se encontram aves
incríveis, a que se dá pouca atenção. E sempre que posso me desdobro para encaixar
os passarinhos nas atividades triviais: desvio rotas, crio caminhos, ando sem
pressa.</div>
<div class="MsoNormal">
Mas, numa
feliz ironia, a rota acabou se invertendo. Durante a Semana Santa, trancafiado
em casa, coberto de livros, trabalho e preguiça do mundo, eu me torturava com a
revisão de artigos sobre economia política quando um assoviozinho borbulhante
flutuou aos meus ouvidos, mais forte do que as serras e as britadeiras da
construção de vinte andares. A princípio ignorei, achando ser uma porta
rangendo, ou um alarme de carro, mas o agudo e a insistência me levaram, por
fim, a me virar, irritadiço, já achando se tratar de alguma nova do vizinho –
já bastasse a obra <st1:personname productid="em plena Semana Santa" w:st="on"><st1:personname productid="em plena Semana" w:st="on">em plena Semana</st1:personname> Santa</st1:personname>
para atrapalhar meu trabalho. Mas ao me deparar com o delinquente, vi que não podia
discutir: pululando entre os borrões de rosa e verde da primavera da varanda,
sobre a pequenina pitangueira envasada, uma criaturinha amarela e esvoaçante
pululava entre galho e grade, ora bebericando nas flores brancas e rosadas, ora
virando seu bico minúsculo e triangular para mim no que parecia, pelos meus
parcos conhecimentos na língua dos piados, uma bronca furiosa. </div>
<div class="MsoNormal">
Achei
engraçado, aquela coisinha com tanto despeito e impostura. Acabei deixando o
trabalho por alguns instantes e fui ter com ela, no sofá, junto à varanda, sem
muito cuidado, pouco ligando se o bichinho ia voar ou ia bancar a aproximação.
E não é que bancou? Ainda estremeceu um pouco, ameaçou voar embora, mas acabou
firme, passarinhando com ainda maior determinação, me encarando como se encara
um déspota a quem se odeia, ou um professor que nos reprova.</div>
<div class="MsoNormal">
Até me
assustei. Bicho valente! Aposto que se chegasse mais perto, me atacava, e mais,
levava a melhor. Mas preferi fazer gesto de paz e, indo até a cozinha, separei
um mamão velho num pires, e levei para ele, num gesto de boa fé. Me olhou
desconfiado, meio por cima, mas depois de alguns instantes, convencido da
vitória, resolveu aceitar a comida, por magnanimidade. Depois de comer todo o
mamão, assoviou um muxoxo agradecido e foi embora, para o cemitério,
provavelmente.</div>
<div class="MsoNormal">
Achei o
causo divertido, mas dali a dois dias já tinha me esquecido. Quando, mais uma
vez, quebrava a cabeça na revisão de um texto, ainda de pijamas e com uma
xícara de café, surgiu novamente o camaradinha, na neblina luminosa de manhã
bem cedo. Desta vez nos cumprimentamos com cordialidade, e admito que fiquei
muito contente, em meio à pasmaceira dos artigos de economia política, em ver
que o felpudinho amarelo não pecava pela ingratidão. Ouvi um pouco a sua
ladainha piada, e fui buscar mais mamão. Como minha vó tomasse café,
aproveitei...</div>
<div class="MsoNormal">
- Vó, vem cá,
me diz uma coisa.</div>
<div class="MsoNormal">
A senhora
se levantou e me acompanhou até a sala, sem muita paciência. Mas se enterneceu
logo que viu o passarinho irreverente mordiscando o meio mamão.</div>
<div class="MsoNormal">
- Que
bonitinho, Pedro...</div>
<div class="MsoNormal">
- É, não é?
Sabe como chama? – perguntei, naquela certeza infantil de que nossos avós sabem
tudo sobre as coisas que achamos bonitas, e que temos por mortas, já que o
mundo errado em que nascemos há muito já as dispensava.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Ih, meu filho... – ariscou a
dúvida, mas seu olhar aquoso se iluminou, e, num sorriso mineiro e debochado,
exclamou. – é um sibitinho!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Um o quê?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Um sibitinho, uai... – e se
riu, voltando pra tomar café.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Então o passarinho amarelo, de
máscara preta e branca, com o cocuruto vermelhinho, que nos visitava quase todo
dia, era um sibitinho! Todo dia pela manhã tinha o seu mamão, proseava alguns
minutos de assovio, dava uma cagadinha e depois ia embora para o cemitério,
cuja vista agora um prédio tapa. E eu passei a reparar na quantidade enorme de
sibitinhos <st1:personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São Paulo</st1:personname>:
na esquina de casa, no Hospital das Clínicas, na USP, no Anhangabaú, em Santana...
ave comum, esse sibitinho! </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Nas perambulações pela Cidade
Universitária, se havia aves mais bonitas, vistosas, delgadas e exuberantes, de
qualquer maneira a que mais me alegrava era o tal do sibitinho, com seu piado
florido, igual ao daqueles apitos d’água pra imitar passarinho. Sempre que
estava entre amigos e aparecia um, não perdia a oportunidade:</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Olha, olha só!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- O quê?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Aquele passarinho ali, ó?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Hum, que é que tem?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Sabe como chama?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Eu? Não!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- É um sibitinho.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Um o quê?!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
E eu explicava, paciente, para os
mais ignorantes, e com gigantesca alegria. É que essa coisa de pássaros acaba
tornando a vida <st1:personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São Paulo</st1:personname>
menos insuportável, mais humana, até mais lírica, se posso dizer assim. Uma ave
é um animal fortuito: voa, canta, caga, e dorme cedo, às vezes brinca,
pula-pulando pelos galhos de alguma árvore, e faz visitas irreverentes quando
menos se espera, e mais se precisa. No que se incluem até os pombos, por mais
sujos e bestas que eles sejam. No cotidiano maquinal da cidade, uma ave é uma
metáfora para o direito à respiração, ao inútil, quando apreciada vulgarmente,
em momentos de superfície aparentemente vazia.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Acabei levando a coisa tão a
sério que, passeando os olhos num sebo, comprei um livro, não tão velho, cheio
de ilustrações, com o nome <i>Fauna
silvestre – os animais da metrópole paulistana</i>, ou qualquer coisa assim.
Data de alguns anos atrás, e não sei quantas das espécies descritas no livro já
não foram extintas, ou desabrigadas de suas casas, dada a velocidade
sanguinária das transformações do espaço urbano. Mas independente disso: o
catálogo de aves é impressionante. Se soubéssemos da ínfima parte dos
passarinhos que vivem <st1:personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São
Paulo</st1:personname>! Coisa inimaginável. Alguns, mais raros, habitam áreas
específicas, o entorno da represa, o parque Tietê, a Água Branca... mas outros
podem ser vistos quase em qualquer lugar. Caso do gavião carijó, por exemplo.
Algumas corujas, pica-paus, garças, e...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Epa! – sustei, por um instante,
ao ver um retrato conhecido</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Tinha o mesmo amarelo, a mesma
máscara branca, o vermelhinho na cabeça... fiquei cismado, será que... como já
era tarde, fui dormir, mas determinado. No dia seguinte mal acordei e fui tirar
a teima: às nove horas, como de costume, o sibitinho apareceu, atrás do seu
mamão. Peguei logo o livro, abri na página marcada e tirei a prova real: olhei
uma, duas, três vezes. Sibitinho coisa nenhuma! Era um bentevizinho-penacho-vermelho.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Ô vó! Vem cá!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Pois não, meu filho.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- A senhora não disse que ele era
um sibitinho? Olha só...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Mostrei o livro aberto para ela,
com o desenho do bichinho empoleirado. Mas ela caiu na gargalhada.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Eu estava brincando, meu filho!
Você levou a sério, foi? </div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Ué, levei...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Eu lá sei o nome do passarinho!
Sibitinho era como seu avô chamava tudo os passarinhos que ele não conhecia o
nome... seu avô é um debochado!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
Enxerguei o velho alagoano
apontando pr’um pássaro qualquer e chamando de sibitinho, assim como, quando eu
pequeno, dizia pr’eu comer formiga que fazia bem pra vista... e caí no riso,
também. Como o bichinho ainda estivesse na varanda, aproveitei para lhe passar
uma pequena ensaboada: ora seu salafrário... nem pra me dizer o seu nome de
verdade! Que tipo de bem-te-vi que não grita a frase do nome! Isso já era
malcaratismo...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
O bichinho me olhou perplexo,
resmungou um muxoxo assoviado e levantou voo, para o mesmo cemitério. E depois
parou de aparecer. Achei a coincidência absurda, e não queria terminar esse
texto com a ideia de que o passarinho teria se ofendido: depois que fui
descobrir, o sibitinho vinha mais era por causa da primavera florida. Quando
despetalou, não tinha mais razão de visita.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- Mas e o mamão? – perguntei,
chateado, para minha avó.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
- O mamão ele comia por
delicadeza – e sorriu mineiramente.</div>
<br />
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-6774067816583567312013-03-08T09:56:00.000-08:002013-03-08T09:58:22.238-08:00Assim não tem como<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Comic Sans MS"; font-size: 18.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-family: "Lucida Grande";">I</span><span style="font-family: Lucida Grande;"><span style="font-size: 13pt; line-height: 150%;">magino cá
com meus botões quantos escritores, ou pretensos, não deixaram de vez a pena e
a tinta por não terem um lugar de trabalho, um cantinho íntimo em que pudessem passear
com as ideias por uma folha em branco até enchê-la de letras, sem esbarrarem nos
móveis ou serem engolidos por problemas prosaicos. Não que alguém ainda escreva
com pena ou até com tinta: foi força de expressão. Se bem que descreva um
problema real, ao menos para quem segue o caminho torto das linhas: às vezes,
escrever com pena de ganso numa isolada torre de feudo seria melhor do que se
meter no emaranhado de fios de uma máquina, num qualquer apartamento de nosso
século.</span></span><br />
<span style="font-family: 'Lucida Grande'; font-size: 13pt; line-height: 150%; text-indent: 35.4pt;"> É que o computador e o Microsoft
Word, apesar do inegável brilhantismo das inovações técnicas, têm em
contrapartida seus pepinos particulares, para além dos pepinos clássicos; somando-se
os dois, tem-se então a monstruosa fila dos engodos que perfazem o ofício de
escritor, já por si bastante ingrato. Pois vejam: além do barulho pedregoso da
Cardeal Arcoverde, além do cheiro estonteante da janta do vizinho, e além da
vontade louca de sair sem mais nem menos e passar a tarde inteira no boteco, de
quebra ainda tenho de aturar a impertinência das criações de Bill Gates, que
insistem em questionar meu Firewall e mesmo a originalidade de meu produto – o
qual, dizem, sendo pirata, comprometerá irreversivelmente a qualidade desta ou de
qualquer crônica que através dele se produza.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">E pior: a tentação do Facebook,
piscando no canto inferior da tela. Isso é que é de matar. Bem sei que deveria,
por comprometimento profissional, fechar tudo e me concentrar no que de fato
importa. Mas como bom escritor não posso deixar de acusar uma conspiração: a
mesa está bamba, já estou com fome e até a geringonça com que escrevo parece
querer me atrapalhar – no fundo não passa de uma tela de tentações. E pra quê
escrever quando se tem o Facebook? Ninguém escapa à generalizada ansiedade deste
século: vivemos na expectativa, como se uma única mensagem pudesse alterar a
rotação da terra em nossa quarta-feira – coisa que ainda pago para ver,
acessando a minha página três vezes ao dia...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Aflito com a distração que o
computador involuntariamente proporciona, cheguei num momento de crise até a
pensar numa máquina de escrever - ideia claramente estúpida, mas que no
desespero de inúmeras tardes improdutivas ganhou proporções de genialidade
inaudita. “E por que não?”, pensava, “não precisa de energia, imprime enquanto
escreve, não deve ser caro e é impossível se desconcentrar com babaquices”. Sem
contar toda aquela áurea de escritor do século passado, fumando um cigarro num
escritório em Copacabana – romantismo besta, mas, em se tratando de um jovem
igualmente besta, bastante influente. Fui atrás de algumas lojas, pesquisei
detalhes e por fim, obviamente, desisti, ao descobrir sobre fitas, tipos e
outros artefatos arqueológicos de difícil aquisição. De fora, mesmo que dominasse
esses artigos, fugindo assim das tentações da internet, restariam os problemas
antigos, de qualquer maneira, já que não fumo, não vivo nos anos 50 e tampouco
em Copacabana. No mundo dos vivos o vizinho continuaria cozinhando, a Cardeal
continuaria barulhenta e a minha avó seguiria me interrompendo para falar
alguma coisa sobre meias, demolindo inocentemente a frágil arquitetura de
ideias que tento organizar numa qualquer narrativa. O que eu precisava mesmo era
de alguma coisa móvel, portátil, simples e objetiva, sem firulas ou apetrechos,
mas diretamente ligada ao registro do pensamento – a imediata ligação entre
ideia e palavra escrita.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Foi depois de mais um dia estéril
– corroborado pela ruidosa presença de um eletricista pançudo, na sala em que
costumava trabalhar – que finalmente tive uma iluminação: saí pela Teodoro e
fui direto à papelaria Bragança. Papel e caneta – pronto! Já devia ter sacado
faz tempo. De que mais eu precisava? Senti que um horizonte novo, a um só tempo
mais genuíno e ancestral, surgia na minha hipotética carreira, e não pelas
coisas em si – não era nada que não tivesse em casa –, mas pelo simbolismo da
ação, oficializado com a compra de uma Bic cristal e de um caderno Tamoio. Sem
mais, sabendo da impossibilidade de escrever em casa, pela presença espaçosa do
eletricista, e pela iminência da hora da novela de minha avó, fui para a
Benedito Calixto na fixação de escrever um romance inteiro, ali, naquela única
tarde – tamanha era a fé que depositava naquela caneta amarelo-azulada, e
naquele caderno com o indiozinho sorridente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Felizmente havia um banco vazio –
nos outros, conversavam uns taxistas, um mendigo cochilava e dois namorados se
engalfinhavam. Mas mal prestei atenção: me acomodei, rasguei o plástico do
caderno com a ponta da caneta e abri numa página aleatória. Possuído e
desorientado, rabisquei numa caligrafia apressada:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">“Era uma tarde calma...”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">E parei – a mão não queria
seguir. Olhei em torno absurdado: a mesma cena de praça. Depois me voltei
raivoso contra a linha: como assim, uma tarde calma? Calma para quem, e onde? Não
fazia o menor o sentido! Um romance? Era com certeza o começo de romance mais
estúpido, pobre e desinteressante que alguém jamais tinha arriscado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Risquei com raiva aquelas quatro
palavras, e me pus a tentar meditar em alguma coisa melhor – tarefa nada
simples. Se não era calma, o que seria a tarde? Bem... “Era uma tarde tranquila...”,
ah, ajuda muito. Meu Deus... melhor talvez desistir dessa ideia, deixar que
evapore completamente da minha cabeça e daí começar do zero, sem compromisso
com o cadáver do irreparável. Aflito, voltei a olhar a praça: os namorados tinham
sumido; o mendigo terminava seu cochilo, coçando as costas; e os taxistas
estavam tão compenetrados na conversa que nem viram a moça que se aproximou do
ponto, na intenção de ir a algum lugar, e que ficou lá esperando. A conversa
parecia realmente ser séria, densa, e até arriscada, talvez: um deles, com uma
barbicha rala e óculos quadrados, olhava para os cantos o tempo todo, e estava
claramente nervoso. Já o outro ouvia impassível, olhos no chão, fixos e
melancólicos, até que alguma coisa fez com que os dois se perturbassem de
maneira espalhafatosa, se ajeitassem no banco e começassem a buscar,
inutilmente, disfarçar a conversa. É que chegava um terceiro homem...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">E era essa a história, exatamente
essa! A conversa sobre o apartamento, a corrida não paga – o atendente de verde–,
e daí então finalmente... Segurei a caneta numa dificuldade trêmula, como se segurasse
brasa, e não tinta. O desespero pelo achado me excitava, e pressionava a caneta
excessivamente contra o papel – a ponta não fluía, se arrastando com o peso de
mundos. Já não distinguia direito as linhas – o sol tinha se posto, e nenhuma
luz fora acesa. Mas apesar de tudo, eu avançava, lentamente, mas avançava,
tentando inutilmente alcançar a cadeia lógica de ideias que escapava num fluxo
absurdo, conforme os dedos penavam ainda para pingar os ‘i’s da descrição da
barbicha do primeiro taxista. E como que de propósito a caneta, novinha!,
insistia em falhar maldosamente, nas curvas dos ‘l’s, nas pontuações... e eu
teimando. Já não era possível parar, ainda que não entendesse a minha própria
letra, a história continuaria; mesmo que a mão já doesse, por causa da força
nervosa que empregava na caligrafia, mesmo assim haveria de...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">- Ô irmão, com licença! Tem como
cê me dá uma...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">- Puta que o pariu! – explodi,
chamando a atenção do taxista e de uns três passantes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">O indigente barbudo me olhou
assustado, sem entender a desmesura da reação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">-Opa irmão, foi mal aí cara! Na
humildade, eu só queria...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">- Eu sei, eu sei... – murmurei
apressado e confuso, procurando a carteira como que num gesto de desculpas – eu
é que... toma, ó, e desculpa mesmo, viu. – e me virei, procurando algum lugar
pra enterrar a cabeça.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Sem entender se eu era louco ou
idiota, o sujeito vacilou o olhar entre eu e a nota de dez, agradeceu sem muita
convicção e tratou de se despachar antes que eu pudesse mudar de ideia, ou ao
menos olhar para a nota que tinha dado – coisa que, no nervosismo, não me dei
ao trabalho de fazer, e que aliás pouco importava: o taxista tinha sumido, e as
minhas anotações se resumiam a duas linhas e meia em que descrevia o banco e a
barbicha. O lapso, obviamente, fora momentâneo, e a ideia fugiu com o
indigente, para passar a dormir na rua, sem casa e sem dono.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Sem mais, faminto, frustrado e
nervoso, larguei aquela praça dos diabos e tomei o caminho de casa, deixando a
caneta e tudo. A gente bem que tenta, mas, ora, a vida! Quando não é o Word, é
a carga da caneta; se não é minha avó, é o indigente; se não é a fome, é o
Facebook. Quando, eu pergunto, quando é que essa profissão teve direito a um
lugar no mundo, ao menos com a paz de que carece para organizar as ideias?
Poderia continuar me servindo de idealismos, dizendo que há sessenta ou setenta
anos atrás o mundo era outro, e que lá sim, o escritor e a sua máquina de
escrever eram respeitados e admirados, ainda que através da forma mais simples
de reconhecimento, que é o não atrapalhar. Mas já não posso concordar. Há
setenta anos havia a guerra, imaginem! – e se escrevia. Há cinquenta faltava
água, carne, e gás – e também se escrevia. Há quarenta havia censura... e por aí
vai. Por que eu, capeta, não haveria de escrever por causa de uma pergunta
impertinente, de uma rede social ou do cheiro de comida? Seria no mínimo uma
desculpa esfarrapada, assim como a técnica. Por acaso não devo assumir as
estruturas de meu tempo? Feliz ou infelizmente, é impossível voltar aos feudos
e aos manuscritos em pena de ganso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Sem mais, me sento às onze da
noite de uma quinta-feira no quarto dos fundos de meu apartamento. Aqui é
garantido – ninguém me atrapalhará, pelo menos até as duas, quando os
funcionários da padaria ao lado chegarão para o trabalho, e hão de conversar em
voz bem alta sobre as anedotas de suas vidas. Coisa que, bem sei, longe de me
atrapalhar, me alimenta, mais do que qualquer janta preparada pelo vizinho. E até nisso eu me preparei: na escrivaninha, que tem pouco espaço, mas que me
acompanha desde sempre, descansam um pires com bolachas e uma garrafa d’água - além do papel higiênico para rinites, o carregador para suprir a bateria e
papel e caneta, para ideias avulsas, que não mereçam a tela. O quarto é módico
e inacabado, a cadeira não me serve, a noite avança o meu cansaço, mas mesmo
assim eu, abstração verbal, insisto, existindo através dos séculos que tentam
me apagar das pedras, me roer dos livros e me deletar dos sites.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">Mas falando em sites, alguém ficou
de me mandar uma mensagem...<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-38703443727525191492013-03-03T14:01:00.000-08:002013-03-03T14:01:27.664-08:00Para melhor atendê-los<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 28.0pt; line-height: 150%;">“E</span><span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;">stamos em
reforma para melhor atendê-los”. Difícil topar com uma placa dessas no lugar aonde
íamos, sem qualquer suspeita da inconformidade do mundo com os nossos planos.
Se se trata de uma urgência, é o caso de praguejar contra os céus ou chutar um
cachorro. Mas não era, felizmente, sem que por isso eu deixasse de ficar um tanto
aflito, e até desnorteado com a cortina de aço baixada em pleno horário
comercial, sem maiores explicações além da tal da placa. Que aliás nem placa
era, mas uma simples folha branca, presa mal e porcamente numa fita crepe já
gasta, anunciando, numa impressão desbotada, que “Estamos em reforma para
melhor atendê-lo”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Não fosse a cal
polvilhada sobre o chão, ou dois pedreiros encurvados sobre as suas marmitas, e
a frase pretensamente simpática poderia soar até mesmo cínica. Estarem em
reforma não só não me atendia melhor, como estragava o meu humor e complicava o
meu dia: agora ia ter de buscar outra papelaria que trabalhasse com aquele tipo
de carga de caneta, coisa difícil. E de fora, pelo que eu lembrava, não tinha
nada de errado com a Papelaria Bragança: uma papelaria como qualquer outra.
Talvez uma rachadura na parede, o soalho um pouco gasto... nada que estragasse
a simples venda de material de escritório. Mas existem invenções de moda, fazer
o quê. O jeito era sair Teodoro Sampaio afora atrás de outra papelaria,
contrariando, dolorosamente, o costume rígido e prazeroso de resolver aquele
problema de uma determinada maneira, única, imutável, dispensando-se da
experiência do tempo, como se cada impasse não tivesse mais do que uma única
solução na sua existência, predeterminada, precisa, como se o atravessar a vida
se tratasse simplesmente de ir colhendo as respostas que aparecessem,
conservando-as no frasco dos costumes e fazendo do mesmo jeito até que chegasse
o dia de não fazer mais nada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Mas tal como a
vida é um emaranhado ilógico de soluções e erros desquitados, o emaranhado
comercial da Teodoro às 3 da tarde não tinha uma única papelaria que vendesse a
carga para caneta que eu precisava. Havia outras, para outras canetas à venda,
de diversas formas, mais anatômicas, charmosas, atrativas, de outras cores e
cargas, muito melhores que a minha. E, no desespero da saída mais prática, cheguei
a cogitar a troca – mas bastou um olhar para o bolso da camisa azul, onde
pendia o desbotado e gasto cilindro de tinta, para que me sentisse um canalha
por tal pensamento, e saísse da loja correndo. Absurdo, absurdo completo
trocá-la: era amiga fiel e caríssima, por razões alheias ao preço, e vinha comigo
nos últimos anos pelas linhas tortas e poeticamente pobres que tracei São Paulo
afora, desde que a ganhei de meu tio, num aniversário triste e sem balões. Não,
não a trocaria nunca: haveria de respirar fundo, andar com uma Bic
temporariamente e, até que a reforma da papelaria Bragança terminasse, para assim
“melhor me atender”, também eu estaria em reforma, fechado e indisponível, sem
explicações além de um papel lacônico. Ainda que, talvez, nunca chegasse a
atender ninguém.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> É que, nos
últimos meses, acabaram-se os trabalhos, que amainavam o sufoco da volta ao
Brasil; os serviços temporários desapareceram; e certas necessidades, tão
súbitas quanto ridículas, me fizeram gastar mais do que se deveria em tais
situações, em que a instabilidade é iminente e as perspectivas não se deixam
vislumbrar. As saídas com que sempre contei para as horas difíceis, como portos
distantes ao alcance da mão, na hora do aperto mostraram sua face de farsas
patéticas, de vidas que nunca terei, por incapacidade ou nojo. E, não havendo
nada de novo sob o sol, o costume, idiota, insistia em bater nas mesmas velhas
teclas, nas mesmas portas fechadas nas ruas aparentemente vivas. E batia com
raiva, com obstinação doentia, até que o erro esgotasse finalmente todas as
suas possibilidades e eu pudesse retornar, animal derrotado, para a casa que já
não era minha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Nisso veio o ano-novo,
quando a TV e a champanhe profetizam a renovação dos tempos, a purificação dos
crimes, a inauguração do que é de todos; a cornucópia pelo calendário, enfim.
Mas depois da queima de fogos, nas minhas tardes só via os mesmos gestos e
propósitos, maquinalmente disseminados, repetidos nos velhos lugares com, no
máximo, uma luminosidade nova, a de veraneio paulista. Como sempre, no
desespero, me apeguei em vão aos deuses do cinema: o amor, que é coisa pífia; e
a viagem, que é redundante. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Voltei para a
solidão de São Paulo na obstinação da mudança, e a primeira coisa que notei,
arrumando as coisas para mais outro infindável ano letivo, foi que a carga da
caneta de estimação, a única com que escrevo, por neurose pessoal, tinha
acabado. E já devia fazer tempo – sinal do abandono em que deixei a literatura
nos tempos de crise, talvez por sua patente inutilidade, excessivo desgaste psicológico,
esterilidade absoluta. Mas numa vida em que estas formas céticas de preguiça já
imperavam, soberanas, há pelo menos um triênio, com um Pão e Circo feito de
subversão bem comportada, de boemia confortável, de indignação resmungada, de
revolta de cartilha, numa conjuntura tal ao menos a honestidade de se
reconhecer inútil, cansado e impotente já assume a sua grandeza ao se voltar
contra si mesma, gato acuado, praguejando contra o universo que a tolhe com censuras
de mil tipos, inimigas e principalmente amigas, abertas e claramente veladas, e
sempre num cinismo completo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Determinado, saí
para comprar a tal da carga, e dei com a papelaria fechada, com o chão coberto
de cal e os dois pedreiros almoçando, como descrito. E depois a busca por novas
lojas, as novas canetas, nada que servisse às minhas velhas, mas puras
determinações. Gostaria de acabar esta crônica encontrando a carga em outra
papelaria, depois, com alguma paciência, ou com a velha reabrindo, anunciando
que pretendo ir lá amanhã. Mas as lojas novas são todas absurdas e a reforma
segue sua marcha, sem previsão de término, e dificilmente acharei o que busco
em algum lugar que desconheço. O que me resta é esperar, num trabalho surdo, e
anunciar, como a papelaria, a minha própria e indispensável reforma, feita a
papel e caneta Bic, para talvez, quem sabe, melhor atendê-los, irmãos no exílio
da vida, ainda que não com material de escritório, mas com presença digna. Não
é difícil reparar num imóvel que apodrece: o teto abre, as paredes mofam, o chão
se rompe... e por fim desaba. Mas vivemos entre mortos indiferentemente, sem
perceber nem mesmo o verme, gordo e feliz, que rasteja em seus sorrisos de
bom-dia.<o:p></o:p></span></div>
<br />
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-76615501143010415142013-01-22T18:07:00.001-08:002013-01-22T18:19:15.411-08:00Velha Arthur<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Schoolbook"; font-size: 28.0pt; line-height: 150%;">S</span><span style="font-family: Century; font-size: 13pt; text-indent: 35.4pt;">e existe uma rua que
resuma minha breve passagem na terra, certamente não é a Cônego Eugênio Leite,
mesmo que eu tenha vivido praticamente toda a minha vida por lá –
essa rua é a Artur. “Rua Arthur de Azevedo, n. 1800 e tanto – m. 1900. Médico”,
diz a placa rota e apagada. Mas na minha cabeça foi sempre o debochado escritor
maranhense, ainda que pra isso precise tirar o “de” do nome.</span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Pra começo de
conversa, a Artur de Azevedo é uma das três ruas que, atravessando Pinheiros,
passam tanto pela Cônego quanto pela Cristiano, resumindo assim, liricamente
falando, a soma das ruas em que já vivi. E também porque, ao longo desse breve
existir, fui mantendo com suas quadras as relações mais diversas, conforme
também se transformava a minha relação com as Coisas em geral: desde a
pequenez, em que a via com certo mistério e encantamento, pela sua graça e por
ser a rua de muitos amigos, e também depois, já com certa idade e descobrindo a
vida, quando a Artur viria a ser um dos meus lugares mais queridos em toda a
cidade. Era a rua perto do Elvis, o bar do Vavá; do Eric Discos, onde filmaram
aquele Durval, épico de Pinheiros, e que depois descobrimos ser uma das maiores
bicas em matéria de LPs; e por fim tem as suas esquinas – cada esquina linda!
–, sempre de quatro casinhas, de no máximo um andar, e repletas de amoreiras e
pitangueiras que em outubro estavam invariavelmente carregadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Era a minha caminhada
na volta da escola, e depois se tornou companheira nas tristezas, de amor e
também de bairro. Que dor foi quando demoliram o açougue da esquina e as
Ferragens 7 anões, pra dar lugar a uma padaria modernosa! E mesmo assim
continuávamos na rua, o Graça-Aranha (sobrinho bisneto, entenda-se) se mudou do
Rio e passamos a beber nossa Brahma também por lá, na esquina com a Fradique.
Dessa esquina tenho as melhores recordações: lembro-me ainda dos primeiros
bancos do barzinho simples, meio que à americana, fechados em mesas para quatro
com uns baita janelões... lá fora, as tardes longas de primavera, os sabiás
alucinados dos fins de tarde, num tempo em que a cerveja custava três e meio e
quando em bar se fumava sim, sim senhor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Pois o tempo passou.
Fui aos pouquinhos deixando de frequentar aquela rua, e por mazela de
saudosista mesmo, de não querer ver a coisa toda se acabando. Primeiro foi o
Elvis, que fechou, e meio que fechou consigo a rua inteira. Veio aquela
padaria, as obras do metrô... e daí ladeirabaixo. Passei a contorná-la, a
passar mais pelo caos da Teodoro, a fazer trajetos mais longos e até cheguei a
mudar de sapateiro, com medo que o velho – de profissão já meio rara e
insalubre – esticasse qualquer dia e eu nunca mais visse os meus sapatos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Mas dei de passar por
lá, esses dias, por alguma razão. A volta de uma amiga minha do estrangeiro de
fato colaborou, já que um dos caminhos para sua casa – e justo o que eu fazia,
antigamente – passa por lá. Logo no primeiro dia achei graça no passeio, ainda
que com a involuntária e dolorosa comparação das formas novas com as que
gravamos no afeto, duas peças que já não se encaixam. O caso da padaria foi
isso, mesmo já sabendo de antemão, e também o velho bar do Surdo, com seus
quadros pretendendo a Café e excelente mesa de sinuca, que foi reformado para
virar alguma loja de roupa. Pelo menos as árvores seguiam firmes e robustas, sombreando
– sem trocadilhos – os sobrados que sobraram e a entrada dos novos prédios.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Mas chegando pela
Fradique meu estômago deu uma volta. Me acostumei com o tempo a pressentir o
vazio pelos muros, janelas e telhados, como que premunindo o fim próximo de
alguma casa. E lá era bem esse o caso: térreo lacrado, janelas tristemente
escancaradas para o além, e murmúrios de pombos fugindo pelos vãos do forro.
Nada mais claro. Sem reações, tentei remontar algum passado vago, no cruzamento
entre a lembrança e esta esquina. Por segundos me vi mais moço, naquele lugar
vazio e triste, com ideias que já não tenho e amigos que já não vejo, numa
tarde posta já há muito. Mas a imagem logo sumiu: sem nada a fazer, acendi um
cigarro e me pus a caminho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Passei por lá mais alguns
dias, me inteirando das coisas: um prédio, obviamente, e <st1:personname productid="em breve. Mas" w:st="on">em breve. Mas</st1:personname> o que
não podia saber era que o tal do prédio ia pegar mais um pedação da pobre
Artur, demolindo, além de casas, o velho bilhar Big Small, final de não poucas
noites nos anos idos. E de fato: passando lá hoje, pude ver salões sem mesas,
sem tacos, sem teto. Só entulho mesmo. Mas daí, ao contrário do esperado, não
se repetiu a mesma cena: não consegui lembrar de nada. Já fazia tempo que não
ia lá, e talvez nunca tivesse sido algum frequentador apaixonado daquele lugar.
Talvez fosse uma noite ou duas e só, mas que acabaram, na memória embaçada
feito a placa, ganhando proporções de vida inteira – e de fora o espírito às
vezes resolve nos poupar de certas coisas. Sem mais, segui caminhando pela rua
Artur abaixo, constatando friamente as permanências, em passos lerdos e
observadores. Já não tinha nada para fazer: andei até o fim, senti tédio, e
voltei para a Teodoro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Century; font-size: 13pt;">Se existe uma rua que
resuma os meus dias, é aquela rua triste, mas que leva nome de escritor
debochado se a gente tira o “de” do nome. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-88189594601357816162013-01-08T07:03:00.001-08:002013-01-08T07:19:16.954-08:0002 de janeiro<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";"> </span><span style="font-family: 'Monotype Corsiva'; font-size: 28pt; line-height: 150%;">C</span><span style="font-family: 'Century Gothic', sans-serif;">urioso fenômeno, este da cidade de
São Paulo entre dezembro e janeiro! Talvez seja a única época de fato agradável
nessa cidade, e seria bom se o seu cartaz Brasil afora fosse feito nessa base.
É a única época em que uma avenida como a Rebouças poderá ser encontrada
completamente vazia, com um velhinho atravessando lenta e calmamente a
quilômetros da faixa, e uns pombos ciscando em pleno corredor de ônibus –
coisas que, em qualquer outra época ou dia, seriam manchete sanguinolenta.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";"> Estamos em uma determinada praça, às
duas horas da tarde, na dita época do ano. Onde antes tagarelavam os taxistas,
feito um bando de maritacas, há agora somente um bêbado mal-amanhado, no sétimo
sono, e por cima, na copa das árvores, um bando de maritacas de fato, alegres e
indiferentes às festividades de Natal e Ano Novo. Mais ao lado, nos bancos de
cimento – aqueles bancos em que o homem de escritório e o flanelinha, nos
quinze minutos que sobram do almoço, fumam o seu cigarro olhando para o nada –,
naqueles bancos não tem absolutamente nada, ainda que o observador atento sempre
ache um chiclete mascado, uma lata de cerveja ou até mesmo uma carteira cheia,
se tiver sorte.. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Mas
na tal praça nem isso tem. É terça-feira, um dos dias normais da alucinação
coletiva do trabalho e do transporte, mas dada a época do ano até mesmo a
circulação do ar – fresca, lenta e silenciosa – parece querer nos convencer
tratar-se de um domingo, e de algum domingo pós-guerra, tamanha a calmaria
pasmacenta que envolve as ruas e as esquinas. É num momento como esse que se
poderá identificar a verdadeira natureza da praça, fosse ela alguma espécie de
formação geológica sem finalidade urbana: árvores frondosas balouçam seus
galhos preguiçosos ao sabor dos ventos, abrigando periquitos, papagaios fugitivos,
miríades de pombas e pardais, obviamente, e alguns sacos de lixo pendurados por
distração. Tudo sobre o pano azul do céu de veraneio. O que não há de carros,
de negócios e de azáfama parece se compensar nestes galhos cheios de pássaros –
já que, para eles, é um dia normal, e até mais normal do que nunca, pois em se
tratando de pássaros só poderiam ser estranhos o barulho do trânsito e o cheiro
de bife com fumaça.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">E
também a paisagem humana, nessa praça, se compõe em lenta harmonia: é a época
em que as crianças finalmente podem voltar às ruas, que lhes pertenceram algum
dia, e nada melhor para isso do que um campinho gramado, um parquinho, às vezes
uma colina ou um concretado, onde logo se juntam com cacarecos e mirabolações
para aprontar as suas, graciosamente. No caso, uns cinco pimpolhos jogam bola
mais um ou outro pai, também transformado em criança, pelas circunstâncias de
jogo e de fim de ano. E todo o barulho que fazem com seus gritos agudos, que tantas
vezes chega ao infernal, se integra naturalmente a esta harmonia universal de
férias paulistanas, que o badalar dos sinos na igreja em frente à praça
completa, numa bênção inesperada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Bênção que também abarca o metafísico universo canino: na sua ingenuidade, os cães tornam-se reis
daquele espaço vazio, tão cheio de cheiros, de formas, gravetos, lixeiras
saborosas, e também outros cães, com novos focinhos e cus e, quem sabe, novas amizades.
Dois desses já se aproximam: um é de raça, um Retriver, bobo e peludão. Já a
outra é uma vira-lata, sem que com isso perca um pingo sequer em dignidade, que
expressa num olhar altivo, e num pelo curto vistoso bem escovado. Sua dignidade
é, aliás, tão grande, que beira até o excessivo, conforme esnoba o pobre do
Golden que já se dispõe a enormes intimidades.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">-
Desiste, amigo, ela é castrada. – diz, num sorriso, a loira dona da vira-lata.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Mas
o cachorro, que de português entende pouco, segue insistindo, e o seu dono, mesmo
versado na língua de Camões, acaba prestando bastante atenção no sorriso da
moça, tentando os artifícios humanos que correspondem mais ou menos diretamente
às cheiradas e impulsos do cachorro. E obteria muito mais sucesso que o seu
amigo canino, não fosse este beirar o desrespeitoso e receber,
consequentemente, mordidas e latidos de feminina e justa indignação da
sobredita vira-lata, estilhaçando a um só tempo a cantada do sujeito e todo
aquele quadro pacífico e dominical descrito acima: voam as pombas e as
maritacas, as crianças param seu jogo, curiosas com o rebuliço. Até mesmo o
vento para de soprar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">E
o bêbado – o bêbado e indigente, que sonhava sabe-se lá com o quê no banco do
taxista, finalmente acorda, com aquele barulho. Sua primeira e impulsiva reação
é xingar aquilo tudo, ainda que sem muita dicção. A começar pelo salafrário que
tinha tentado roubar a sua garrafa de cachaça. Mas ao perceber que aquele já
não estava mais lá, e talvez nunca tivesse estado, se acalma e repara no
barulho dos cachorros. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">-
Ê vai latir na casa do...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Mas
não conclui a frase – tem coisa muito mais importante. Onde é que está a...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">-Ufa!
Graças a...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Estava
lá, encostada, onde ele tinha escondido. Mais relaxado, esquece dos cachorros, dá
um gole e se apronta para começar o dia. E que dia mesmo? Lá importa... foi mais
cambaleando pro caminho de sempre, mas, na esquina da praça, esbarra com a desagradável
notícia de uma cortina de aço, cobrindo dramaticamente a porta da padoca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">-
Como assim?! Mas... como assim!?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">Não
acredita. Bate umas três, quatro vezes, até chuta. “Ô seu Jair!...” grita, bem
articulado. Mas nada do seu Jair – o cearense que costuma dar pão com manteiga
e pingado. Tudo fechado, e <st1:personname productid="em silêncio. Mas" w:st="on">em
silêncio. Mas</st1:personname> não cai a ficha logo de cara. Ainda fica
esperando uma meia hora, indeciso, meio pasmando, até que finalmente se dá
conta e bate, genial, com a mão na testa:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">-
Eita que deve ser domingo, cacete.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif";">E,
maldizendo o sétimo dia da criação, vai-se embora, sentido centro, atrás da
padaria do palmeirense que funciona aos feriados.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-50203843431831396382012-12-24T11:37:00.000-08:002012-12-24T11:37:55.760-08:00Manhã de natal<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: 'Monotype Corsiva'; font-size: 24pt; line-height: 150%;">A</span><span style="font-family: Century, serif; font-size: 13pt; line-height: 150%;">cordo... Infelizmente acordo. E como se não bastasse tudo o
de sempre, acordo com o som insistente de uma serra elétrica, de uma
britadeira, não sei ao certo – o estado vegetal a que minha consciência se
resume não permite ainda distinções de ordem substancial. Mas o barulho já é
conhecido: a obra da rua de trás... ainda que alguma coisa me diga que hoje, especialmente
hoje, religiosamente hoje, ela não devesse cantar, junto com as maritacas... enfim,
estão trabalhando. Tateio um copo d’água, estico os ossos: inevitável o
mergulho na “vida de fato”.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Na sala um
objeto incógnito vem me lembrar de certas razões: é vermelho, bem vermelho, tem
dois olhos esbugalhados, usa um gorro, barbudo... é até bem fofinho, rechonchudinho,
mas, por trás de aparente simpatia, me observa feito uma esfinge, esperando
para me engolir antes que eu consiga engolir o meu café. Decifra-me, hô hô hô,
ou... esfrego os olhos ainda perplexo, e coço instintivamente o saco: nada me
vem à mente, nada de claro ou de lógico, pelo menos. Só um certo rebuliço estranho,
antigo como que abandonado, tenta dar cambalhotas no meu peito e sair pulando.
Como não encontra respaldo ou disposição na carapaça barbada que o carrega, se
cala, e passa a procurar maquinalmente uma garrafa térmica e um calendário.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Café servido,
olhos na tábua geométrica dos dias: 24 de dezembro... e... diabo, o mundo ainda
não acabou. Mas obviamente não é só isso. Isso, aliás, é o de menos. A
explicação completa se esboça com a presença de um homem estranho dormindo no
corredor, com a programação cacete da Rádio Cultura e com a azáfama nada
costumeira de uma senhora de quase oitenta anos. Mais uma geladeira cheia de
frutas multicores, carnes com molho, doces em calda, sucos e bebidas
espumantes... é claro: é natal. Já sabia: me esqueci de propósito. Lembrar é
razão pra crise. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Mas não
adianta: a contenção é rasgada pela rápida visão de uma senhora se esforçando,
em cada ruga, músculo e cabelo branco, para enfeitar uma sala morta com
quinquilharias que só lhe realçam a morbidez – ainda que o quadro completo, aos
olhos de quem mal acordou, seja apenas mais outro império do absurdo. A visão
contrasta com a de outros dias, e mais uma vez aquele mesmo rebuliço sai quicando
por todos os lados do meu peito, com mais força, mesmo raiva, para logo se
acalmar deixando, só, uma ardência como de soluço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Desisto. Dou
um gole no café, tentando inutilmente pensar em outra coisa. É que não entendo
nada... ou melhor, entendo, mas... tudo é estranho. Saber do natal, lógico que eu
sabia, como todos... mas nem por isso sua chegada deixou de causar alguma
surpresa. A surpresa do contraste. Há tantos anos e estaria eu mesmo cumprindo
o papel de alma involuntária do evento, infernizando a minha avó, pendurando
uma a uma cada bola vermelha e cintilante sobre os ramos das plantas, com os
olhos ainda maiores e mais cintilantes, vidrados ao longo da noite em cadeias
de luzinhas pisca-pisca e embrulhos lustrosos de presentes incógnitos. Na ceia,
seria o primeiro a sentar, e, no que dependesse de mim, o último a sair. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> E isso sem
taxar de cafonice, de consumismo, de capitalismo, de conformismo, etc.: era
criança e ponto, bolas. Me lembro dos meus natais em Recife: até daquelas luzes
horríveis, com que se tem o mal gosto de enfeitar o pobre do Capibaribe todo
santo fim de ano, eu gostava doidamente. O que dizer do resto, então, que era a
melhor parte? A família, ideia abstrata, reunida sob um único teto, com uma
mesa cheia, numa unidade de espírito...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> - O sonho da
propaganda de Panettone! – cuspo para o lado, quase engasgando com o café sem
açúcar. Disso, hoje em dia, nada resta: em Recife, meu avô passa por maus
bocados, minha mãe acordou e fugiu intencionalmente, minha tia mora no Rio, e
com ela meu primo pequeno, meu tio ronca como um mamute, espremido no corredor,
enquanto minha vó sustenta sozinha uma frágil ilusão natalina, espalhando
pequenos enfeites pintados – trenozinhos, pequenas árvores, animais de pano – sobre
móveis abarrotados de pastas, papéis e outros artefatos da vida útil e
prosaica. E ela não só a sustenta como, por convicção ou desespero, dispõe dela
para tiranizar: acabando de arrumar a sala, invade, sem mais nem menos, a
cozinha, onde passa arbitrariamente a remanejar objetos e móveis sem sequer me
consultar. Enquanto dava um gole do café, meu prato, com um sanduíche que nem
consegui acabar de comer, foi subitamente rebocado para a pia, sendo o lanche
despejado na lixeira. Foi eu querer reclamar para que também a xícara fosse
dispensada, seguida do copo de suco, da toalha da mesa e enfim por mim mesmo,
dispensado tirânica e gentilmente com um empurrãozinho e palavras de avó. Quis
me revoltar, mas faltaram-me pretextos – aquele dia, suspirei, era dela.
Humilhado e confuso, fugi para a sala.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Mas lá agora
quem ocupava era meu tio, lendo o jornal, no lugar em que costumo me sentar
para ler. No fundo gostaria de ouvir alguma música, qualquer coisa de levemente
alegre ou melancólico, que me desse forças para lidar com o tempo e com a
passagem de outro ano. Mas foi eu me aproximar da vitrola para que o homem, por
detrás dos óculos, soltasse politicamente um olhar de reprovação, aprendido nos
departamentos da capital, um olhar daqueles que bastam para demitir um gabinete
e cancelar páscoa e natal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Sem mais,
retirei-me para o meu quarto – um depósito de figurinos onde estendo um colchão
para dormir. Belo natal! Passaria o dia inteiro deitado, olhando para o teto e
pensando na vida. Daquele colchão velho eu confraternizaria, só de raiva, com o
universo todo. Cristo deve ter feito coisas desse tipo... mas acho que ele
preferia dormir sem colchão. Cristo tinha o mundo inteiro, ou pelo menos todo o
Oriente Próximo, e aposto que não diferenciava os dias. Aliás, Cristo talvez
nem existisse... mas então o que estamos fazendo? Eu sei: nada. Comemos feito
uns porcos e encontramos gente que já nem sabemos se nos amam mesmo, ou só
acreditam nos amar. E nós também, é claro, fazemos o belo e hipócrita papel de
familiares, pelo menos enquanto ganhamos presentes e não se metem na nossa vida.
Mas não tenho a pretensão de dar lições a todo o mundo pretensamente cristão. Vou
mais é cuidar da minha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> E, sem
paciência, vesti uma calça e saí sorrateiro pelos fundos, sem que minha vó
percebesse a parte de seu natal que ia sendo frustrada, por uma alma rebelde à
Santa Ceia. Saí de tão mau jeito e tão às pressas que esqueci de me calçar: no
elevador reparei, tanto faz, é natal. Não é a primeira vez que ando descalço por
aí. E só ia dar uma volta mesmo, aproveitar as ruas fantasmas, esvaziadas pela
confraternização universal de particulares, e o tal do espírito natalino, que
deixa a alma mais leve. Talvez, quem sabe, fizesse um irmão, fruto da ocasião de
outra data quimérica.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-85623330775040528832012-12-19T17:09:00.001-08:002012-12-19T17:14:11.235-08:00Natal ideal<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
</div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 24.0pt; line-height: 150%;"> </span><span style="font-family: 'Monotype Corsiva'; line-height: 150%;"><span style="font-size: large;">"O cronista no telhado", coluna de Pedro Pinto</span></span><span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 24.0pt; line-height: 150%;"> </span></div>
<span style="font-family: 'Monotype Corsiva'; line-height: 150%;"><span style="font-size: x-large;"><br /> É</span></span> <span style="font-family: 'Century Gothic', sans-serif; font-size: 13pt; line-height: 150%;"> </span><span style="font-family: 'Century Gothic', sans-serif; font-size: 13pt; line-height: 150%;">com
inexprimível alegria que anuncio, através desta crônica, o mais fantástico
natal que esta cidade já viu e provavelmente verá. Chega de solarão no céu azul,
em discrepância com o vermelho dos papais-noéis, chega de suadouro e de praia, frustrando
as pistas de patinação e a neve sintética: tudo indica que neste fim de ano nosso
natal será frio, senão gelado. Pelo menos em São Paulo – e é mais um motivo de
orgulho para nos gabarmos para os outros estados, que, como nós, sempre
sofreram da esquizofrenia entre os termômetros dos trópicos e o espírito
natalino.</span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Pode
ser que seja arriscado cantar esta vitória agora: o tempo anda tão louco que
tudo ainda é possível. Mas minha empolgação não tem limites: finalmente pude
vestir pijama e pantufas em pleno dezembro, e o quadro se completa com um LP de
George Gershwin – não à toa, a trilha sonora daquele filme do Woody Allen, “Manhattan”.
É que sempre fomos a Manhattan subequatorial. Mas agora o clima ajuda. Neste
natal, aqueles que têm o luxo de uma lareira poderão se esbaldar, até com
aquelas meias vermelhas e felpudas, que vemos nos filmes, cheias de doces,
enquanto crianças rosadas aguardam ansiosas o voo internacional do bom
velhinho. Mas os que não têm, por escolha ou por fortuna, também têm
privilégios: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> A
av. Paulista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Ah,
a Paulista! Meu coração se enche de caudalosa poesia ante a mais simples menção
deste nome! Mas é indescritível! Mesmo infinitas resmas de papel branco e puro,
ou mármore elevado, ou páginas num blogue da Folha, nada disto bastaria, nem
sequer chegaria aos pés do verdadeiro ideal, se por acaso ou ousadia este que vos
escreve se propusesse à homérica, à sacrossanta tarefa de descrever em todas as
minúcias, em todos os ardis, em todos os mais vívidos e intensos detalhes esta avenida
formosa, esta estrela d’alva da capital paulistana, ou melhor!, da nação
brasileira! ainda não, do continente americano! Sem sequer mencionar a sua
decoração de natal: as luzes borbulhantes do Conjunto Nacional; a teia
iluminada nas altas árvores do Trianon; o visgo na pista do meio, do Paraíso à
Consolação, com um simpático “Feliz natal” escrito em 58 idiomas diferentes; e,
claro, aquele majestoso presépio pós-moderno, cheio de ursos, bonecos de neve,
reis magos e outras coisas já tão tropicais quanto a anta e o tamanduá. A
Paulista é, sem nenhuma dúvida, o passeio certo para namorados elegantes, para
noivos apaixonados, para solteiros atrevidos, solteiras vicejantes, famílias
dignas ou ainda mesmo, e falo por mim, para solitários e despretensiosos sonhadores
natalinos. Em suas formas e luzes, é plena, e tudo abarca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> E se sempre foi este monumento de urbanidade, esse
charme excepcional, então o que não será este ano, com a temperatura na faixa
dos 18 graus? Finalmente, um natal no inverno! Poderemos sair com nossos
casacos mais finos, com os chapéus mais chamativos, com os sapatos mais
rebuscados. E o melhor de tudo é que a Paulista dispensa pretextos: pode-se ir lá
sem absolutamente qualquer razão, e não me refiro somente ao Masp ou à esquina
da Al. Santos com a rua da Consolação. Pessoalmente, por rígido costume, vou lá
todo fim de ano com bastante frequência, só para bater pernas, flanar, como se
diz. Às vezes, lógico, acabo tomando um mate quente, indo ao cinema, empinando
pipa, pescando paqueras, comprando um livro, comprando um lanche, comprando...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Bem,
é natural: na Paulista, comprar alguma coisa é tão simples e espontâneo quanto
assobiar o “Hoje, é um novo dia, de um novo tempo...”. E é espantoso ver como,
nessa época do ano, a avenida vai lentamente se enchendo de turistas de todos
os cantos da cidade, do Brasil e do mundo, no mesmo ritmo em que se enche de parafernálias
verde-vermelhas. Não é difícil distinguir suas origens: os gringos, lógico,
estão sempre gringando, para cima e para baixo, como sempre. Os interioranos,
normalmente em família, tiram fotos de tudo, do metrô ao prédio da Gazeta, da
rua Augusta à praça Oswaldo Cruz, espantados, e com razão, pela grandeza
ostensiva da artéria comercial-natalina. Já os da capital, como eu, passeiam
esnobes e indiferentes, olhando com desdém para os caipiras que nunca viram um
metrô e que parecem, mais do que nós, envolvidos por alguma aura mágica de
natal. Mas no fundo nós também, naquelas calçadas largas, entre edifícios
luminosos; entre casais de todos os tipos, numa licenciosidade que não se dão
em outras ruas; entre pessoas normalmente bonitas, livrarias elegantes, cinemas
cultos, shoppings diversificados, estações de metrô, bares, parques, artistas,
enfim: nós também, em meio a tudo isso, estamos realizando alguma espécie de
sonho de filme da Sessão da Tarde, e comungamos com todos os seres que passeiam
naquelas calçadas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Comungamos.
E comungamos pelo commércio, que, mais do que qualquer Jesus Cristo, nos une e
sociabiliza nesta tão doce época do ano. Todos compram, levam sacolas grandes,
das lojas de roupas, elegantes sacolinhas das livrarias, bolsas ecológicas com
estampas descoladas. E vivemos, por algumas mágicas semanas, uma espécie aceita
de delírio coletivo, que só peca por ainda não ser perfeito. Se dobramos uma
rua errada, por exemplo, corremos o risco de cair em algum puteiro, de
trombarmos com um mendigo fedido, de nos enfiarmos num bar sujo, com música de
má qualidade e gente feia, suada e mal vestida. Nos shoppings, jovens bêbados e
exalando hormônios perturbam a paz numa brutalidade abjeta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Às vezes nem precisa chegar a tanto: dezembro,
normalmente, com o calor infernal que faz, fica difícil sustentar qualquer
sonho elevado de plena sociabilidade moderna. Quem é que vive um sonho com 30
graus de inferno, numa avenida mal arborizada, concretada e cheia de carros! Acabamos
bebendo cerveja e, quem pode, indo à praia. Mas esse ano, meus caríssimos, tudo
indica que haverá a perfeição: a crise aqui não chega, a economia cresce e a
temperatura é quase fria.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century Gothic","sans-serif"; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"> Se
tivermos sorte, neva.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-47395112408131379992012-12-18T20:16:00.003-08:002012-12-19T17:18:56.908-08:00A idade do cão<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> </span><span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 28.0pt; line-height: 150%;">A</span><span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> quem
quer que se perguntasse na rua – ao dono do bar, ao sujeito da banca, até ao
carroceiro – sobre o seu Borba, se receberia invariavelmente o mesmo sorriso de
afeto. Seu Manuel Borba é figura querida, daquelas a quem se quer bem não
porque tenha qualquer coisa de especial ou de excepcionalmente cativante, mas
simplesmente por ser quem é, e por ser há tanto tempo. Com setenta anos,
quarenta só daquela mesma freguesia, o senhor curvado, de olhos claros,
elegante à moda antiga, tinha o dom da simpatia. Bastava passar em frente à
alguma mesa ou algum comércio, e todos gritavam: “boa-tarde, seu Borba!” e “Boa-tarde,
Totonho”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> É que quem não
dissesse boa-tarde também ao Totonho caía logo no desafeto do bom velho. O que
podia ser estranho para a gente nova na praça: não se via um sem o outro. Pena
era que o segundo não fosse assim tão agradável. Totonho era o velho vira-lata
do senhorzinho, pelo bom, outrora marrom e branco, mas já mais grisalhos do que
o dono, focinho comprido e uns olhos desconfiados de todos que cumprimentavam
aquele seu Deus e amigo único, que era o seu Borba. Se não falassem com ele, se
punha a latir, ciumento. E mesmo se falassem: o cachorro tinha manias mineiras,
nunca aceitava carinhos, ou aceitava só por condescendência, e isso quando
tinha comida na jogada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Mas para o
dono era mais meigo e engraçadinho que filhote, e ainda com toda a sabença e a
elegância de um cachorro velho. Na cadeira cativa de seu Borba, quase todas as
tardes, seu mútuo carinho e entendimento era de dar inveja aos irmãos e
namorados. Quando se sentava, com um copo de café doce, o cachorro pouco a
pouco se aninhava junto aos pés do dono, e este, entendendo o sinal, largava de
cara os jornais para levantar o bichinho ao colo, e lhe falar mansamente, cheio
de maneiras, expressões muito sérias, considerações. E o bicho reagia de tal
forma que aquele monólogo com a criatura supostamente muda não poderia ser
chamado de outra coisa senão de diálogo. De fato, era como se o cão
respondesse. E era o único que tinha acesso às histórias e mirabolações do
antigo funcionário do necrotério. Qualquer um que tentasse puxar assunto com o
velho – como eu muitas vezes tentei, atrás das suas raras narrativas de velho
servidor funerário – não levaria mais que alguns muxoxos, expressões cordiais e
o mesmo e irresistível sorriso. Mas com o cachorro era tão falante, que às
vezes, no mais profundo silêncio de rua paulistana, parecia partilhar cada intenso
e remoto detalhe das suas vivências mais obscuras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Arranjara o
bicho depois da morte da esposa, quarenta anos de casados. O filho ainda passou
algum tempo em sua casa, para dar consolo e arranjar a vida nova, do seu fim de
vida. Mas não se davam muito, nunca se deram, e logo seu Borba ficou reduzido à
mais terrível das solidões. Como não quisesse sentar e esperar a morte, ele que
passou a vida inteira trabalhando com cemitérios, tratou logo de adotar um
bichinho. Filhote, Totonho ainda era simpático, mas foi amargando com o tempo,
talvez pela vida de aposentado. Depois de quase quinze anos, sua rabugice
acabou virando aquela manha penosa de cachorro velho, quase cego, meio manco,
que embora tenha sempre sido um bruto com todo mundo acaba angariando simpatia
pelo seu estado. Seu Borba não se dobrava: seguia levando o bicho aonde quer
que fosse, e, quando até andar devagar se lhe tornou penoso, passou a
carregá-lo no colo, como, aliás, já fazia de vez em quando.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Mas ainda
esses dias o encontrei, na banca, indo comprar cigarro, sem o cachorro. E me
espantei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Tarde, seu
Borba! Mas... cadê o Totonho?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> O velho
levantou os olhos tristes da gazeta e sorriu do mesmo jeito, feliz pelo cuidado
geral pelo cachorro, e arrasado, certamente, pela ausência daquele seu filho e
irmão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Ô,
Joaquim... o Totonho, hum, sabe, ficou lá em casa mesmo hoje... não está muito
bonzinho, sabe? – e nisso torcia, aflito, a barra do paletó, como se afagasse o
bicho ausente. – Passou a noite
inteirinha vomitando... ehn, tive de cuidar dele! Hoje ele vai ficar
descansando. Amanhã já está bom. Chamei um veterinário, vai ficar bonzinho sim,
bem rápido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Condoído na
alma, por ver o que era um cão para um senhor de gravata verde e colete azul,
tentei animá-lo, chamei para ir tomarmos um café, discutir os jornais. Mas ele,
muito polido, recusou, sob o pretexto de ter de ir comprar alguns remédios. E
nos despedimos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Alguns dias
depois o encontrei mais uma vez, já ansioso por novas notícias sobre o sabujo
Totonho, por quem passei a me preocupar. Mas a expressão do senhor, já longe do
tradicional sorriso de inconteste cortesia, denunciava más notícias. Melhor era
nem ter tocado no assunto, pensei, mas já era tarde: o veterinário tinha ido,
e, bem, mesmo tendo medicado e feito alguns exames, agora o Totonho tinha dado
para não comer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Nem com a
carninha que eu fazia pra ele quando ficava de manha – lamentou-se o velho, voz
mais trêmula que nunca, marejando os olhos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Lembrei-me de
passagem semelhante na morte de meu gato e me calei. Ainda fiz a mesma proposta
de tomarmos um café, mas ele agradeceu e pretextou um compromisso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Quando deu uma
semana que ninguém mais via o velho Borba, a rua inteira, ou pelo menos os <i>habitués</i> do bar começamos a suspeitar de
uma tragédia. Que o cachorro ia expirar em pouco tempo, ninguém duvidava, mas o
receio maior era o pobre do Borba, que podia não aguentar a violência desse
tranco. Em caravana, eu, o Márcio, o Tobias e o Pelego resolvemos bater na sua
casa pra pelo menos ver se precisava de alguma coisa. A luz – dava pra ver da
janela – estava acesa, mas duas três batidas e ninguém respondeu . Arriscamos a porta mesmo assim, e não estava
trancada. Antes estivesse: a morbidez, que nos aguardava, seria assim guardada
para Deus e pra si mesma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Num canto, sob
a janela, no sofá, um Borba muito mais velho do que já era murmurava
desacordado umas coisas desconexas, olhos vermelhos como brasas, de dar dó. E o
pior: no centro da sala um altarzinho, muito caprichoso em se tratando de
improviso, cercado de velinhas até de aniversário, abrigava um retrato do
bichinho ainda filhote, junto de uma bola colorida. Ainda tinha uma coleira, um
sininho, um tufo de pelos varridos, toda a dispersa reminiscência que o pobre
Borba, desesperado e só, conseguira juntar de seu mais novo e falecido amigo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Quando nos
viu, tentou desabrochar o velho sorriso cortês, murmurando.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Que bom que
vocês... é a... é a missa... de sétimo-dia...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> E desmontou-se
num choro angustiado. Meio perdidos, tentamos atinar o que se passava: no
quintal, solene, se erguia agora um túmulo, feito em magistral improviso pelo
próprio Borba, nesta semana de tortura. A cozinha abandonada, sem absolutamente
nada, denunciava que a greve de fome do falecido cão tinha sido agora adotada
pelo dono. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Márcio! –
gritou o Tobias, se arrependendo depois por se lembrar de estar numa missa,
falando baixinho – vai lá buscar um lanche pro seu Borba, vai! O velho está
parece que não come!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> E lá fomos nós
começar um mutirão de ajuda pro coitado. Só nessa noite, tivemos de alimentá-lo
– contra a sua vontade –, vesti-lo,
niná-lo e arrumar a casa. O filho, um desnaturado, nem quis saber, quando
conseguimos falar com ele, dizendo que cachorro não é motivo pra chororô, que o
pai já era adulto, etc. Quem acabou cuidando dele fomos nós mesmos, revezando alguns
serviços, fazendo turnos e rachando despesas. A coisa era tão grave que até
tivemos medo de ele fazer uma besteira – era preciso estar de olho. Mas, depois
do primeiro mês, de depressão profunda, a coisa foi parecendo ser solucionável.
Admitindo a morte, foi se tornando racional, e até apático. Já não precisávamos
estar lá o tempo todo, fazendo compras e dando comida, e com mais algum tempo o
seu Borba, quarenta anos mais velho no andar e na aparência, voltou finalmente
a seus passeios pela rua. Mas aquele sorriso, fonte de nosso afeto, tinha se
perdido, junto ao cão, para a eternidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Depois de um
tempo, falando justamente sobre a solidão que ele devia viver, agora, sem o
cachorro, já sem esposa e longe do filho, tivemos uma ideia brilhante, para
coroar nossos esforços pra com aquele homem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - A gente
devia era comprar um bicho novo pra ele... – sugeriu um Tobias já meio
embriagado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> A ideia foi
imediatamente aplaudida. Mas que bicho? Uns queriam outro cachorro – rebati com
veemência, alegando cinismo. Substituir o Totonho? O Márcio falou em gato, mas
gato é bicho chato, que não liga pro dono. A conclusão unânime acabou sendo um
papagaio, até porque o irmão do Pelego tinha um que a esposa queria porque
queria que ele desse fim. Daí resolveu-se: é bicho bonito, parado, e que fala.
Melhor que cachorro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Pouco tempo
depois entrava o seu Borba, elegante como sempre, triste, passos lerdos.
Cumprimentou a todos e se sentou no seu lugar, com seus jornais. Aproveitando a
sua presença, fomos lá fazer consulta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - O seu Borba...
bom você ter chegado...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> O velho
levantou os olhos com melancólica simpatia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Porque a
gente aqui, seu Borba, é... a gente tava pensando, que desde que o... o Totonho
morreu, sabe?, você não tem mais bicho...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Ai a gente
queria te dar um outro!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Bicho, é?
Hum... que bicho? - A simpatia do rosto se convertera em pura interrogação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Um papagaio,
seu Borba! – exclamei, triunfante. – É bonito, não tem que passear, e fala. O
senhor gosta tanto de falar com bicho...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Um segundo se
passou de completo silêncio, como se o cadáver de Totonho se enroscasse por
entre as pernas de seu Borba, lhe lembrando alguma coisa. Então, levantando
novamente os olhos para nós, com muita calma, abriu como num milagre aquele
mesmo sorriso, tão puro e cordial, que sempre nos cativara: mas, com o canto
esquerdo levemente mais puxado, deformando a face inteira com galhofa, formava
uma expressão de escancarado cinismo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> - Bicho...? dá
trabalho... e morre cedo. Só não é pior que gente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Century","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> E foi a única
história que arranquei de seu Borba sobre os seus tempos de funerária.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-24559769270538044182012-12-18T06:52:00.003-08:002012-12-18T06:54:14.705-08:00A mesa ao lado<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Monotype Corsiva"; font-size: 28.0pt; line-height: 150%;">N</span><span style="font-family: Garamond, serif; font-size: 14pt; line-height: 150%;">ão se trata, de modo algum, de falar da vida alheia. Nem de
especulação. Mas quantas vezes, sentados no canto de um bar, esperando um
ônibus, na fila do banco, na biblioteca, em qualquer lugar em que não estamos
sós, enfim, quantas vezes não nos chega quase por destino um rabo de conversa
que no mesmo instante passa a integrar a nossa tarde e a nossa vida? E não
porque seja uma novela, ou um barraco – que aliás também são ótimos de se ver –,
mas mais por se tratar de um adendo indispensável à nossa própria existência,
como a passagem que poderíamos ter vivido, gostaríamos de ter vivido, pelo
menos para entender aquela outra pessoa que fala alto no telefone, o senhor
baixo aflito com sua pasta de papéis, a criança morena fascinada com algum
inseto: em suma, coisas simples que nos integram à humanidade, enquanto nos
enfurnamos num livro, nos trancafiamos entre dois fones de ouvido ou
simplesmente pensamos na morte da bezerra: o ônibus não vem? Vai chover amanhã?
Será que ela vai responder?...</span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> E é bem
nessas horas, por alguma ironia, que a vida na cidade acontece. Atentar para os
detalhes, para as migalhas irrisórias de miséria ou de beleza que compõem os
quadros mais banais da vida urbana: seria o trabalho ideal do cronista. O
dia-a-dia é confuso, e só em alguma sociedade perfeita é que se poderia exigir
de todos que atentassem para seus irmãos e irmãs no puro acaso. É preciso, mais
do que nunca é preciso que alguém se disponha a coletar esse material disperso,
quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança: algo de seu
conteúdo humano, que torna a vida mais digna de ser vivida, a cidade mais dócil
de ser habitada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> É nesse
propósito que, ainda que temporalmente (ou seja, enquanto há tempo), oferecemos
ao hipotético leitor deste pseudoperiódico este pequeno contributo, dessufoco de algumas terças-feiras. E não é à toa: terça
é aquele dia em que a semana se impõe – de segunda a semana ainda é vaga –, e a
alma perturbada com tudo de prosaico que se compõe em pão, em banco ou em sono
acaba procurando involuntariamente algum sentido neste correr de dias, nesta
faina infindável e, não raro, vazia. Pois o pior é que é só terça: ainda faltam
pelo menos três dias... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Portanto,
leitor hipotético, tome fôlego, pegue um ônibus, mas resista! Não ligue a
música, não abra um livro, não se afobe: escute o que se passa a sua volta,
qualquer que seja a cidade, a rua, ou a hora do dia. É um convite deste humilde
cronista, que tanto já andou de ônibus, de metrô e de trem, que já filou
cigarro em muitos pontos de ônibus, já pediu água da pia e já pediu
informações, quase dormiu no relento, e que agora, que lhe sobra um tempo, acha
digno compartilhar essas histórias, bem como o olhar que as entretece nestas
linhas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Grato pela
atenção<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 14.0pt; line-height: 150%;"> Joaquim
Terêncio<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-87138167536203932222012-11-17T13:10:00.000-08:002012-11-17T13:10:02.149-08:00Fim de tarde<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: EN-US;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span><span style="font-family: 'Monotype Corsiva'; font-size: 28pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif'; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: EN-US;">C</span>hego aos portões do meu prédio, depois de uma volta pelo bairro para fazer banco, comprar um doce, etc., volta que, verdade seja dita, não passa de pretexto para adiar os compromissos terríveis que me esperam, de hora marcada, na enfadonha escrivaninha. Fui tomar um ar, e, tomado, nada resta a fazer além de voltar para casa. Mas junto com o ritual “boa-tarde” que dou ao porteiro, acabo dando com os olhos em duas pequenas criaturinhas branquelas, de voz fininha e vestidas com panos leves e coloridos. Uma, a menininha, segurava com as duas mãos e muito esforço um enorme copo d’água. Depois de beber, quase se afogando, a parte que lhe cabia, passou para seu amigo, um pouco maiorzinho, que o terminou com um pouco menos de dificuldade e enorme prazer, expresso naqueles olhos enormes e translúcidos de criança, na delicada integração de alma e corpo. Logo os dois se puseram de novo a correr, sumindo entre gritos por detrás do prédio, deixando eu, o porteiro e o zelador, de cima da guarita, espiando meio bobos de longe, o sorriso acompanhando a carreira dos pimpolhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>E também com certa inveja no peito, cabe confessar. Ainda que velada, desconhecida, dispersa. O porteiro prontamente voltou aos seus afazeres, o zelador muniu-se das correspondências, em sua maioria contas ou malas-diretas, prontas para ferir o dourado da tarde primaveril em que as crianças havia pouco brincavam. Também não tardei em acertar meus ponteiros, tomando o elevador, não sem antes espiar, lamurioso, o dia lindo que fazia no pátio do prédio. Pátio em que eu, outrora, estaria brincando, compenetrado, com amigos que há muito se mudaram deste prédio – e, por consequência, da minha vida –, sem inquietações além da de, em algum momento, subir para lanchar e tomar banho. Infância boa, moderna, é verdade, de criança de apartamento mesmo... cuja consequência natural talvez fosse, inevitavelmente, elevador, barba mal-feita, os compromissos sobre a mesa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Morar mais de quinze anos no mesmo lugar – e quinze anos difusos como os que vão dos cinco aos vinte –, para além dos confortos tem também sua triste filosofia. A mudança do espaço se presta à percepção do tempo, e os grandes vendavais domiciliares funcionam como dose saudável de realidade, imprescindível para incorporar a vida adulta e suas novas formas. Sem isso, permanecendo no mesmo lugar enquanto o tempo permanece andando, corre-se o risco de que esta figura um tanto quanto cínica descubra de vez nosso endereço, fazendo visitas quando bem entende, surgindo nos velhos potes de biscoito, na paisagem mudada, nos novos vizinhos, nas crianças do pátio. Um dia, lembramos, eu estava brincando com estas crianças, numa mesma tarde de outubro, no mesmo desvairo de gritos, buzinas da rua e sabiás cantando do cemitério.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mas chega o elevador, e me esqueço desses devaneios. Na verdade estamos em novembro, e é segunda-feira. As atribuições se acumularam de uma tal forma que nem escrever eu deveria, tendo na fila só desta semana um projeto de pesquisa por entregar, um seminário por preparar, um dicionário russo-português por revisar, e mais um trabalho louco que inventei de aceitar porque, na boa, é fim de ano e essa vida não está sopa. Não sou mais criança e bem por isso não quero depender para sempre dos meus pais... mas até quando...? Todas as informações se amontoam em papéis avulsos numa escrivaninha empoeirada, num canto escuro de uma sala do nono andar, enquanto as crianças, lá de baixo, abençoadas pelo sol de fim de tarde, gritam frenéticas de alegria e de vida, correndo por todos os lados, chutando bolas, brincando de pegar... ignorando, inocentes, as formalidades que a vida ainda lhes há de enviar, como nas cartas entregues em cada apartamento pelo zelador.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Depois de tomar um banho, passar um café, ler umas notícias e mandar um e-mail, decido: agora eu preciso me concentrar, são quase seis horas e constato com desânimo a completa improdutividade da tarde. Fui dar uma volta, fiquei olhando as crianças, fiz besteiras em casa, mas não saí do lugar, não fiz nada. Ainda dá tempo: movido pelo desespero, grudo a bunda na cadeira e movo os olhos pelo escaninho. Os livros e cadernos me respondem com desprezo, mas resisto, fuço, cogito. Acho que dá para começar pelo...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Não concluo o raciocínio: explodem, do pátio, aqueles gritos estridentes de susto lúdico e prazeroso, tão próprio das crianças... e levam consigo as minhas conclusões. Mas tudo bem, respiro fundo e tento retomá-las. Talvez por um plano inicial, um esboço das ideias mais importantes que eu vou procurar no documento, eu consiga traçar um percurso de investigação dos conceitos em jogo, de modo a... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>De modo a nada: agora é um choro angustiante que começou de lá debaixo. Algum dos pimpolhos certamente levou um tombo. Se fosse meu filho, ou, ainda, se eu estivesse lá com eles, é provável que relevasse o incômodo causado num olhar amoroso e paternal. Mas não era o caso: eu começava a perder a paciência, angustiado, na verdade, pela minha própria e interna confusão, mas ansioso por projetá-la no que quer que fosse. Será que não entendiam, a quantidade de coisas que eu tinha p’ra fazer? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 36pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';">Bem, esperaria. E enfim o silêncio se fez de novo. Ainda deixei alguns minutos passarem, para conferir se seria duradouro. Parecia ser. Só daí então respirei fundo, meti meu nariz no meio dos papéis, segurei minha caneta com decidida firmeza e retomei minhas anotações. Tardias anotações! P’ra quê, meu deus, deixar tudo assim para a última hora... tinha que correr...<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>a vida definitivamente não dá tempo... mas enfim, olha só, aqui parece que posso aproveitar esse diálogo do documento com o...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>- Força lazer, transformar a pedra! Tchfuuuuuuuuuuu! Pá! Pum! Hiaaaaaaaa!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Berrou a plenos e pequenos pulmões o pimpolho lá do térreo, esmigalhando não sei se a pedra, mas certamente a minha as minhas ideias. Agora já não dava mais, era incômodo e desrespeitoso! Essas crianças precisam de limite, não é todo mundo que pode passar a tarde de bobeira assim não, tenho muita coisa pra fazer. Levantei-me decidido rumo ao interfone, compensando a falta de concentração para o trabalho na determinação de descontar as frustrações nos outros. Mas quando cheguei na cozinha, comecei a ouvir um choro alto, de mais de uma criança, acompanhado agora por broncas de uma voz grossa de mulher, provavelmente a babá. Alguma eles deviam ter aprontado, e agora levavam um esporro. Fiquei atentando para o desfecho: dentro em pouco imperava o silêncio. Provavelmente tinham estragado a brincadeira de algum jeito, e receberam um castigo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Não tinha mais do que reclamar. Olhei com desprezo para a escrivaninha, no canto da sala, e suspirei, entre saudoso e arrependido. Aquela escrivaninha também vinha comigo desde a infância, tinha sido até do meu pai. E sempre estudei nela, nos mais vários tempos de minha curta vida. O problema era a tarde: aquela era uma tarde perdida, desencontrada.... e muito linda. O sol alaranjado deslizava manso pelas casas e árvores da rua Cônego Eugênio. Em algum lugar um sabiá cantava, alucinado, firme. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 36pt;">
<span style="font-family: 'Verdana','sans-serif'; mso-bidi-font-family: 'Microsoft Sans Serif';">Não se deve fugir dos fatos: eu não tinha como trabalhar. O melhor mesmo, concluí, vencido e contente, era pôr uma bermuda e descer para tomar um sol, dar uma volta, descansar. Talvez até tomar um banho de piscina, compensando a infância passada, e o presente confuso, num daqueles momentos sintéticos, de fusão do corpo a água, quando se sabe que a vida não é nada além do que ela é, e nada se quer além de tudo o que temos.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-11355398020755149292012-10-30T17:10:00.000-07:002012-10-30T17:10:18.473-07:00A lei de todos<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;">
<span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 11pt;"><i>“E o bonde que parece
uma carroça:</i></span><span style="font-size: 11pt;"><i><br />
</i></span><span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 11pt;"><i>Coisa
nossa, muito nossa"</i></span><span style="font-size: 11pt;"><i><br />
</i></span><span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 11pt;"><i>Noel
Rosa</i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 24pt;">E</span><span style="font-family: "Lucida Grande";">ntrei no ônibus e, por sorte ou
malandragem, consegui me sentar: era um daqueles dias em que a gente sabe que
merece sentar, e de um tal modo que, quando conseguimos, não ficamos com aquele
típico remorso pelos que vão de pé e nos olham, invejosos. Mesmo sabendo que o ônibus
está cheinho e que aquela moça ali, ares de cansada e cheia de sacolas, talvez
sinta tanto quanto você que merece se sentar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>O
dia de fato tinha sido difícil: estava exausto e irritadiço. Já nem ligava
tanto para o cheiro de suor, ou para as cotoveladas do sujeito ao meu lado, mas
estava de um jeito que qualquer barulho me incomodava: conversa, porta se
abrindo, celular. Até certo nível ainda relevava. Mas o destino conspira contra
os que se irritam facilmente. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Aconteceu que aquela moça, de cujo lugar me
apossei, sem mais opções, foi se escorar onde pôde, mais ou menos perto do
cobrador que cochilava, distraído. E foi mal ela chegar lá que ele, sabe o
diabo o que lhe deu!, de pronto acordou, viu a cabrocha e<span> </span>abestalhou-se, tentando puxar assunto
ou, ao menos, travar contato. Mas ela não estava nem aí pra nada. O doido ainda
tentou milhares de artifícios, desdobrou-se: nenhum tirava ela daquele denso
estado de contemplação, quase vegetal, que é costume sabido<span> </span>das mulheres belas quando ao uso do
transporte público. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">A coisa parecia mesmo sem solução... até
que ele tentou seu último recurso, do mais ousado romantismo: gritou bem alto
ao motorista, acordando a mim e a meu vizinho, e, dentro em pouco, de cada
canto daquela lata velha, começou a tocar um bolero-brega pavoroso, de um
sentimentalismo de ano-novo na Globo. Aliás, antes fosse: aquilo era pior do
que a velhice do Roberto Carlos. Mas foi tudo dedicado ao amor, imaginem. Houve
a princípio certo estranhamento geral, mas ninguém sequer esboçou reação. No
fundo no fundo o mais provável era que todos, principalmente a mulher,
estivessem adorando. Todos menos eu, que, já vindo de um mau dia, pressentia os
sinais de uma longa tortura, já que tinha que ir quase até o ponto final. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">De início não quis acreditar, mas logo me
convenci: era real, e não ia parar. E me levantei num impulso pra reclamar
daquela folga. “Não sabe ler não, meu amigo?” Diria. O jornalzinho informativo
da SPTrans, colado na frente de meu banco, trazia justamente esta lição, muito
bem desenhada, entre desenhos de pintos feitos à caneta: não se deve ouvir música
alta no busão, de modo a garantir a todos os passageiros um pouco menos de
infelicidade. Ia dizer isso mesmo, ou quase isso, ele ia ver. Mas quando vi o
cobrador de paquera séria com aquela moça, quase dançando, entendi e abrandei
involuntariamente as sete pedras que tinha na mão. Não seria assim tão
filho-da-puta: se fosse por causa da moça, ah, mulher!, tudo bem, vá lá,
esperaria. Mas só até essa história se resolver.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Altruísmo que, como qualquer boa intenção,
obviamente não seria recompensado ou sequer reconhecido. Deram uns dois pontos
e, olhando pelo espelho da frente, vi que a moça descia, não sem antes deixar
com o cobrador um papelzinho, supõe-se que com seu telefone, verdadeiro ou
falso. Aliviado, com princípios de dor de cabeça, suspirei, alegre pelo êxito
do cobrador e, ainda mais, pelo que supus ser o fim do suplício da música na
lotação. Mas não passaria de vã esperança: o cobrador, parece, tinha achado a
própria ideia muito boa (afinal, quem não gosta de música?), e resolveu no fim
das contas deixar o coletivo assim mesmo, animado agora sabe o demo com que
sertanejo dos infernos, entremeado por barulhentas propagandas de rádio. E até
então ninguém tinha reclamado: pelo jeito eu era o único que não estava feliz.
Mas não tinha como me constranger. Estava nos meus direitos, e aquilo estava
realmente me incomodando. Por fim deixei a vergonha de lado e me levantei pra
reclamar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ô amigo – comecei, cordial, mas sério –
você me desculpa, mas não dá pra ouvir a sua música o tempo todo não. Nem pode
ouvir música alta assim no ônibus, você sabe disso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">O homem se virou<span> </span>com certo desdém, talvez por ter acabado de se provar um
gostosão, talvez pela alta incumbência dos trabalhos de cobrador. A autoridade
suprema de que era dotado, pelo visto, tinha lhe subido à cabeça, e resolveu me
tratar como eu fosse um trombadinha sujinho pedindo carona, ou um bóy pagando a
passagem com uma nota de cem contos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ué, não gosta não, é, doutor? – riu de
canto, sem mal me olhar. - Dorme aí. Ou põe um fone, só não enche o saco.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Cachorro! E eu ainda tinha tentado ser
gentil.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Não tenho fone não, bróder. E quem tá
enchendo o saco é você. Você está errado. Não sabe ler a placa ali em cima não?
Vai, desliga aí, cara, numa boa, por favor.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E fiquei olhando pra ele com uma cara séria,
fixa, sem nenhum signo de agressão mas também sem qualquer paciência. Ele até
bancou por uns segundos, achei até que fosse mandar um “você sabe com quem está
falando”, mas a saída foi ainda melhor:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Aê gente! – gritou pra condução inteira.
O som aí tá incomodando alguém? Porque o velho aqui<span> </span>- e me apontou de maneira bem indiscreta – tá enchendo o
saco pra desligar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">A princípio ninguém falou nada, naquele silêncio
típico, em que todos fingem, de um jeito ensaiado, que a história não é com
eles. Mas logo uma moça cheia de tralhas<span>
</span>tomou coragem e respondeu, num sotaque forte.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Não, podexá! Tá muito bom, esse rapaz aí é
que é chato.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E depois um senhor respeitável</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Não tira não, que tá bom!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E mais muitos se manifestaram em prol do
trolha do cobrador. Até tentei redarguir com a legislação, mostrando a placa no
alto do ônibus, junto com a de “proibido fumar”, argumentei. Mas quem queria me
escutar? Podia até ser linchado. E antes que o cobrador pudesse olhar de novo
na minha cara, selando sua aclamação democrática na minha mais completa humilhação,
já tinha voltado de fininho para o<span>
</span>meu canto, profundamente aborrecido. Quanta injustiça num ônibus! Aquilo
não podia passar assim... Agora era questão até de honra... não, não de honra,
mas de justiça, sem dúvida. Ele estava errado, ninguém era obrigado a ficar
ouvindo música nenhuma, isso é um direito! Nem que fosse Chico Buarque, vai
saber quem ali não estava cansado, e sem vontade alguma de ouvir música, como
eu mesmo estava, mas que não teve ânimo pra se manifestar? E ao mesmo tempo a
plaquinha ali em cima, tão óbvia quanto ignorada, do lado do proibido fumar...
miséria!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">O ônibus parou em outro ponto. Mas ainda
faltavam uns dez.... a música não só não parava como ia ficando cada vez pior.
Agora eu reconhecia: era Ivete Sangalo. Cogitei a hipótese de pular pela
janela, mas desisti: não ia me humilhar a esse ponto, e de qualquer forma o ônibus
já tinha partido, levando um senhor que, antes de entrar, apagou o seu cigarro
e soltou, por acaso ou de propósito, a última baforada já dentro do ônibus. As
reações, claro, não poderiam ser mais previsíveis: mulheres tossiram, numa
falsidade perfeita, alguns reclamaram, houve rebuliço. Mas me deu a ideia que
faltava. Olhei pra a plaquinha no alto mais uma vez, certificando-me da coerência
de meu absurdo, e, sem pensar mais para não desistir, saquei lesto do bolso um
cigarro e um isqueiro. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Com a sua licença – pedi, por mera
polidez, e o acendi numa longa tragada, que fiz questão de arremessar, na
expiração, para o lado mais próximo do cobrador e da concentração do seu
partido. Meu vizinho na verdade estava dormindo e não percebia nada, só se lhe
pusesse fogo. Mas as primeiras reações não tardaram a aparecer.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Eita que cheiro é esse de cigarro?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Nossa senhora que cinzeiro!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- É o rapaz ali ó! Ô meu jovem, não pode
fumar aqui não, cê não sabe?!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ah é? Nem ouvir música alta, e vocês tão
ouvindo – retruquei numa tragada hollywoodiana, realizando, no fundo, junto com
a vingança, o sonho de fumar num ônibus. Mas as reações pioravam, as pessoas
começavam a se irritar. Só o velho recém-chegado que, surpreso, julgou se
tratar de uma condução liberal e resolveu também acender seu próprio cigarro,
de palha, bastante fedido. Um outro, de um canto, também entrou na nossa e
sacou até um cachimbo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Estavam formados os partidos. E o
antifumante já espumava.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Moço apaga esse negócio! Não sou obrigada
a ficar cheirando a fumaça dos outros. Isso mata!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Também não sou obrigado a ouvir essa música
aí não, que emburrece. Tá escrito lá em cima, ó! Proíbido fumar e ouvir música
alta. Só que quando eu reclamei só faltaram me bater. Agora aguentem.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E dei outra baforada. No fundo estava me
divertindo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Só que acontece que a música não incomoda
ninguém. Nem faz mal! – virou-se uma outra mulher, se achando esperta.<span> </span>– Cigarro mata e é nojento! – veio na
intenção de tirar meu cigarro de mim.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Nojento?! Nojenta é essa música aí de vocês,
puta que o pariu, viu?! E tira a mão daí, dona! Me deixa! – Retruquei, e logo
fui aplaudido pelo velho fumante, que assistia, entre tragadas, toda a cena,
animadíssimo. Só que nisso a frágil brasa do seu palheiro acabou caindo, e
justo no vestido da moça que se sentava ao seu lado. Depois de queimar o
tecido, queimou foi a própria perna da moça, que fez um escândalo e começou a
dar bolsadas no pobre do velho, que tentava se esquivar e ao mesmo tempo apagar
o braseiro que se formava no pano. Nisso o cobrador, que se fazia de
desentendido, teve finalmente de dar as caras na parte sublevada da condução:
mas já não era só eu quem fumava, mas uns quatro ou cinco, e ele não sabia por
quem começar. Até cheiro de maconha já rolava, e um casal pomposo gritava
absurdado contra aquele vandalismo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Em pouco a coisa se tornou uma festa, com
direito à música alta, maconha livre e o diabo à quatro, e já ninguém conseguia
se entender. A moça do vestido queimado agora batia até no cobrador, porque
ele, tentando apagar o vestido em brasa, acabou passando a mão na sua coxa. Em
volta do baseado já tinha se esboçado uma roda. Por fim o próprio motorista, um
negão de dois metros de altura, acabou perdendo a paciência e encostou o ônibus
na rua, logo levantando com um cabo de vassoura para acabar com aquela, nos
seus termos, “putaria do caralho”. Sentindo o perigo, os adesistas do partido
da fumaça rapidamente esconderam as provas do crime, mas eu e o velho, porque
envolvidos cada um em uma pendenga e sentados ambos na parte da frente, não
tivemos a mesma sorte. E sobrou pra gente.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Que porra é essa aqui?! E essa cigarreira
do caralho?! – gritou o motorista meia-noite.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- É esse moleque aí, ó! – se aproveitou o
cobrador, me apontando, vingativo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- E esse velho safado! – gritou a mulher do
vestido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Sem a menor vontade de ouvir explicações,
incentivado pelo clamor popular das indignadas com o cigarro e pelo maldoso
cobrador, o meia-noite tirou cada um de seu canto, pelos respectivos colarinhos,
com toda a delicadeza que a situação exigia, e nos arremessou em dois tempos
para fora do ônibus. Por pouco não dei com a cara no chão, não fosse ter
esbarrado no velho, posto para fora antes. Depois tacaram minhas coisas pela
janela, e o ônibus partiu, deixando xingamentos. Fiquei, no fundo, até bem
feliz de terem devolvido minha bolsa e não terem tacado nenhum tijolo na gente.
Mas que tinha sido uma injustiça tremenda...! Ah, isso não! No fundo, sabia,
estava certo. Aliás, estávamos! Mas quem pra fazer a lei...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Peço desculpas, senhor... não devia ter
entrado na minha...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Não tem nada não, meu filho. – respondeu
o velho, fanho, limpando a roupa e se certificando da frágil integridade física.
- No fundo foi até engraçado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ah é...<span> </span>mas que filhos da puta, ein? Eu até, nossa, devia era...
ufa! Bem, deixa pra lá, paciência. – silêncio. Cada um acendeu um cigarro. – Só
ficamos sem condução... </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ah, mas se resolve. Aonde você vai?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Descíamos no mesmo ponto, e acabamos
rachando um taxi. Transporte que, além de mais cômodo, no caso não tinha rádio.
E o motorista, que era fumante, de quebra ainda<span> </span>nos deu aquela brecha.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-4928787967513209682012-10-28T17:16:00.004-07:002012-10-28T17:16:46.997-07:00O velho e a urna<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span></span><span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 24pt;">V</span><span style="font-family: "Lucida Grande";">oltei
da seção eleitoral para minha casa vendo estrelas, e não só pelo cansaço de ter
acordado às seis da manhã de domingo para ser mesário. Ainda menos pelo prazer
futebolístico de já saber, numa expectativa certeira, que seria o meu candidato
quem levaria esta eleição, e que chegando em casa ia poder gritar horrores pela
janela. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>A
alegria mesmo era subir a Teodoro com o quente conforto de que, finalmente, a
organização das coisas não estava mais na mão das pessoas e grupos que me acostumei
a repudiar. E diga o que se disser, costume fundado na vida. Posso não saber de
dados, mas basta o dia-a-dia numa cidade como São Paulo para desenvolver, ainda
que de orelhada, uma consciência política mais ou menos articulada. E vendo a
tarde cinza, se arrastando lenta como o próprio domingo por sobre uma Teodoro
Sampaio vazia, tinha em meu peito entorpecido um sentimento, de que, das
esquinas, dos lugares que frequento e do afeto que eu sinto por essa cidade, em
que vivo e sempre vivi, não mais me espreitavam shoppings, preços de ônibus,
abandono aos pobres e policiamento moral, coisas que tanto suportaram-se, como
um assalto matinal previsto em lei. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>O
que, na real, me espreitava? bem, coisa difícil. A rua, claro, estava bem
vazia, e poucos pareciam se mobilizar de fato com aquilo que o Tribunal
Eleitoral teve a infelicidade de chamar “festa democrática”. De festa, tem
pouca coisa. Mas estamos no país do carnaval, e se releva. O que impressionava
e chamava à terra era ver certa falta generalizada de ânimo: os casais andavam
de braços dados nas mesmas cores e ritmos com que andariam qualquer domingo;
alguns velhos fumavam nas portas comerciais, já fechando; o Nélson fazia a
ronda, a chuva, já ida, escorria ao longo das padarias e do Pão de Açúcar. São
Paulo rangia sem pressa os seus semanais mecanismos de folga.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>A
alegria ali era só minha. Mas como se diz isso para uma pessoa? Via a alegria
em tudo, via finalmente alguma chance de renovação, de cuidado, de poesia, até,
imaginem. Poesia de entender esta cidade e suas sutilezas, e não querer agravar
seu lado que tende ao infernal. Me parecia mesmo que as janelas dos prédios, de
poucos andares, vibravam com a minha alma, jogavam confetes, refletiam a humana
sensação de se salvar. E também os poucos carros, até os transeuntes, coitados,
que nada tinham com a minha quase ingênua euforia: levavam a vida de sempre,
como sempre.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Mas
quem disse que isso chegava até mim: meu estado era inabalável. Até que,
olhando para os lados, dei com a vista em um senhor sentado ao chão, na parede
do Pão de Açúcar, meio sujo e alucinado. Sem dramaticidades: roupas rotas, mas
ainda boas; barba encardida, mas de bom corte; sentado, e não largado no chão,
as mãos maquinalmente numa posição de cunha. O desespero mesmo vinha do olhar:
aqueles eram olhos já incapazes de se ver no mundo, além dos espelhos. Não sei
se por alguma droga, cansaço, loucura... e isso no caso nem importava. A sua
simples existência lá, tão distante e funda, já contrastava desilusória com a
imagem que, nas minhas patriotadas ideais, tinha para mim do espírito geral da
nação naquele instante, naquela rua. Mas o velho não fazia nada além de
murmurar,<span> </span>no seu canto, e tenho
certeza de que não eram jingles ou mesmo propostas políticas, embora ele em si
já fosse uma.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Sentado
naquele canto, passasse o ônibus que passasse, sua feição permanecia a mesma,
seu olhar seguia voltado para si, ou para o mundo que se confundia com ele.
Nada de urnas, debates, campanhas, mobilização: possível que nem soubesse das
eleições. Possível que estivesse lá naquele canto, sentado, a mão em cunha, já
há muito tempo, e eu não tivesse reparado por simples negligência. A mesma
negligência que me levava a acreditar, naquele momento, naquela caminhada rumo
à minha casa, que eu me integrava ainda que só por intenções à uma cidade
imaginária, a um povo, a uma história, onde cabiam todos os homens. Até
possível em termos: um me escaparia sempre.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Se
por opção ou contingência, não tinha como descobrir. Quem sabe não queria
aquilo mesmo? E se não quisesse? O querer haveria de ter um porquê, sempre tem.
Mas o ignoro. Para mim, ele foi o urubu que, felizmente, veio pousar nos meus
arroubos de vitória. O que ganhei, no fim das contas, bolas, além de um domingo
trabalhando como mesário? O que é que, na verdade, se projeta por detrás de
todos estes prédios cinzas, preguiçosos no domingo, em todo esse lixo amontoado
pelas portas, no trânsito que acabou se formando, apesar do domingo? Perguntas
difíceis, que transcendem qualquer escritor de ocasião, ou pessoa de
sensibilidade arrebatada. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Sensibilidade que bem gostaria de chamar
àquele<span> </span>homem de irmão, de pai, de
Outro, mas por dever de consciência não se contentou com essas fugas naquele
instante. A vitória, repensei, calmo e mais atento, atravessando os viadutos da
Teodoro, não saiu das urnas. E nem a esperança. São coisas de tempos
indetermináveis... uma luz acena, a luzinha de hoje, mas ainda estamos longe de
chegar ao fim de qualquer marcha, principalmente daquela, a para além dos
domingos burgueses, das ruas sujas e dos homens sós por vontade ou por fome.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-51952569465183518432012-10-22T19:12:00.001-07:002012-10-22T19:12:16.163-07:00Fim dos tempos<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span></span></span> <style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span></span><span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 24pt;">P</span>
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span></span>oucas
vezes, na história deste país, vi rebuliços como o fim dessa última novela.
Talvez, quem sabe, o suicídio de Getúlio Vargas, a derrota na copa de 50... ou
nada disso, já que só me vêm à cabeça tragédias nacionais e não sei ao certo se
o último capítulo de “Av. Brasil” pode ser classificado como tal. Na verdade
verdadeira, eu nem assisti. Carrego mais esta mácula em meu nacionalismo, junto
com a de não entender abacate sobre futebol e nunca ter ido à Bahia. Mas no
caso não é preciso saber muito: a mobilização foi tão grande que é como se
tivesse assistido não só o último, mas todos os capítulos da novela.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Começou
nas bancas de jornais, nas capas de revistas, nas conversas corriqueiras. A
Veja, entre dois Mensalões, lhe dedicou uma capa. Depois passei a reparar
naquelas televisõezinhas de ônibus: lá também se passava um resuminho da
novela, não vi de pirraça. Mas para meu desespero o cerco começou a se fechar
por outros lados: amigos próximos, considerados pessoas cultas e ilustradas,
chegavam nas mesas de bar animados com as aventuras de Carminha ou de Tufão, e
não mais pela crise econômica ou pelas eleições municipais. Tenho de
reconhecer: precisamos nos aproximar do povo. Também a semana passada já começou
anunciando o abalo que seria o fim dessa novela: jornais comentavam, afoitos, o
fenômeno, as reações. Brotaram rumores de um apagão nacional, <i>à la </i></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">Fernando Henrique Cardoso, frustrando a
coletividade e prometendo, talvez, a revolução brasileira que Caio Prado morreu
sem ver. Um ou outro jornal satírico previa uma ainda mais catastrófica “falta
generalizada de assunto”, uma verdadeira crise moral. Fico me perguntando se
tudo isso já não é alguma espécie de crise, desde que comecei a me sentir, também,
sem assunto, quando meus amigos e próximos começavam a discutir a novela.
Cheguei a achar que o problema fosse eu mesmo, consultei o analista, entrei em
depressão, fiz avaliações. Mas mesmo assim não me comovi, e teria relevado esta
como muitas outras novelas de sucesso não fossem suas repercussões na vida prática:
o engarrafamento infernal que peguei na sexta à noite, por exemplo, num bairro
até pacato da capital paulista, por conta da loucura generalizada que não podia
porque não podia perder o tal do último capítulo da Avenida Brasil. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Mesmo sabendo que no dia seguinte tinha
reprise.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>E
não parou nisso. Desci no fim da Henrique Schaumann e saí com uns amigos para
tomar uma cerveja, honrando a sexta-feira pelo que ela é e sempre foi. Mas até
aí teve conspiração: o bar em que íamos sempre estava entupido de gente
estranha, principalmente de mulheres de seus trinta, quarenta anos, que
assistiam a tv com a fixação de um cachorro faminto. O silêncio imperava,
perturbado somente por esporádicas exclamações generalizadas. Fenômeno
sexualmente análogo ao do futebol, quem sabe.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Foi
só depois de rodar um tantinho que achamos um bar com espaço para lunáticos e
alienados. O movimento era o mesmo: muitas mulheres lá dentro,<span> </span>mesas de homens lá fora. E a conversa
mesmo assim não podia se desviar do movimento geral, pretendendo torres de
marfim: volta-e-meia uma frase era cortada por um grito generalizado, vindo de
todos os lados da rua. Predominava a voz feminina, rendendo a uma amiga a piada
de que tinham derrubado milho dentro do boteco. Já os homens, bem mais embriagados
e bem menos organizados, gritavam a sua maneira, um deles se exaltando em algum
momento mais do que os outros e falando: “Eu sou um Tufão mesmo, viu! Sou um
puta de um Tufão!”, eliminando possíveis sexismos. De modo que o assunto se impôs:
parece que a novela foi realmente envolvente, devido a enorme quantidade de
desventuras e picuinhas que a compuseram, fazendo, de fato, com que todo mundo
vidrasse, querendo saber o que aconteceria no próximo episódio. Por outro lado
a coesão geral foi fraca, boicotando o desenlace e fazendo com que essa comoção
logo se tornasse uma broxada nacional, o que pude constatar a partir de
segunda-feira.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Já
ninguém comentava a novela nos pontos de ônibus, nas redes sociais, nos
botecos, nos comércios. Os assuntos já eram outros... mormente a salvação do
Palmeiras e a nova novela das nove. Não me perguntem qual é, sou ruim com
nomes, e, enquanto ela passa, estou escrevendo. Fico pensando que estamos na
reta final das eleições municipais... e como petista de ocasião, não posso
deixar de ficar contente: ninguém dá muita corda para a outra novela federal
que é o julgamento do mensalão, e mesmo a imprensa laranja já tocou a vida pra
frente, esquecida como lhe sói ser, falando de amenidades depois do trauma
novelístico de tão grandes proporções. Por ironia brasileira teve apagão só no
Distrito Federal: a classe nessa sexta bebeu uísque sem gelo. E aproveitando,
senhores governantes, faço um apelo: precisamos providenciar com urgência algum
assunto nacional! A população já sofre: intermináveis silêncios ocupam os ônibus
lotados, os botecos já não vibram com mais nada, os salões de cabeleireiro não
têm mais a vida que tinham, nas bancas de jornais se lê em silêncio. Teria a
crise chegado ao Brasil? Em sua forma moral, talvez? Pouco provável. Os
brasileiros têm fôlego e ânimo para discutir qualquer assunto, contanto que
seja interessante. Acontece que a política, como a novela e o futebol, sem
barraco ou risco não tem lá muita graça... e a eleição por ser municipal também
não consegue as proporções que a Globo alcança. Teria de dizer respeito a todos
os estados: em Brasília, por exemplo. Se, suponhamos, pegasse fogo ou fosse
abduzida, garanto que seria muitíssimo comentado.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-14989135810199976022012-10-16T10:33:00.002-07:002012-10-16T10:47:26.625-07:00A morte do barbeiro<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div style="text-align: right;">
<div style="text-align: right;">
<i>A Artur Moraes</i> <span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 24pt;"><br /></span> <style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
</div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> </span><span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 24pt;">E</span><span style="font-family: "Lucida Grande";">stranhei
bastante quando, ao bater na porta uma, duas, cinco vezes, não tive resposta
nenhuma. A luz acesa, iluminando a placa vermelha com o pente e a tesoura entre
os dizeres “Ubaldo Barbeiro”, acenava na direção oposta da minha fracassada
tentativa. Alguém estava por ali. Não fosse isso e também o fato de que a loja
de discos, no térreo sob a barbearia, ainda estivesse funcionando naquele
quente fim de tarde, teria certamente pensado em alguma tragédia como a venda
do imóvel, o fim da barbearia, ou mesmo a morte do velho barbeiro, que já
estava na idade em que se esticam as pernas: todos os piores pesadelos de um
pinheirense bairrista, saudoso, sofrido, e que ainda, pela teimosia de ir
sempre no mesmo barbeiro, ficaria alguns anos feito um bicho peludo, não
suportando o dilema de achar um novo barbeiro, num bairro qualquer, ou fazer um
luto capilar pelo resto da eternidade.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Seria
muito digno, no fundo: Ubaldo cortava cabelos em Pinheiros desde 1964, e com
uma tal maestria que nunca vi em nenhum outro barbeiro. Mesmo o português de
detrás do cemitério, mesmo os melhores e mais chiques cabeleireiros da Vila
Madalena não cortariam um cabelo como ele corta. Todo o segredo se resume na
simplicidade e na prática. Quase 50 anos de serviço! Desde que o descobri,
naquele andar superior de um sobrado da rua Butantã, não corto meu cabelo com
mais ninguém no mundo. Até porque cortar o cabelo, descobri em algumas visitas,
é muito mais do que apenas receber tesouradas e navalhadas e sair com uma cara
de gente civilizada: é todo um ritual, desde o momento em que o barbeiro te
cobre com uma capa de tecido rijo, e desfere a primeira tesourada, passando
pelos inevitáveis assuntos de barbearia, mormente política e futebol, até
chegar no final, o pincel com talco, o espelho, o pagamento. Cada fase deveria
ser devidamente bem feita e apreciada, como se se rezasse. Daí que, depois de
descobrir o Ubaldo, passasse às vezes meses inteiros com o cabelo enorme e
amarrotado, só esperando a oportunidade de passar com a devida calma no único
barbeiro que, a meu ver, era verdadeiramente digno deste nome.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Ainda
esperei mais um pouco, bati outras vezes na porta, gritei pelo nome, mas me dei
por vencido: não houve resposta, e a luz permanecia acesa, como um enigma. Sem mais
nada a fazer, desci a escadaria estreita e, dobrando sentido centro, segui num
enorme vazio interno a Teodoro Sampaio, a estas horas terrivelmente
movimentada. As lojas de roupas, guarda-chuvas, bolsas, cedês e salgados ainda
funcionavam com o mesmo afinco, entre centenas de compradores curiosos,
suarentos pela soma do calor incomum do fim de tarde à faina banal de todo dia.
Em frente, nas obras do triste largo, o maquinário descansava, atrás dos
tapumes do velho quarteirão posto abaixo, feito uma manada de elefantes no
calor. Um moleque passou vendendo balas, que por recusar quase derrubei uma
barraca de muamba, na desatenção, naqueles meus passos tortos e melancólicos de
saudosista. Não me conformava com tantas transformações. E se ainda o barbeiro
tivesse sumido também, daí é que... já nem saberia mais. Ubaldo era a alegria
do largo. Mesmo com tudo acabando, ele ainda estava lá, cortando cabelos,
tomando umas pingas, falando de futebol. Se ele fosse embora, aí sim seria o
fim do Largo dos Pinheiros, e deveria providenciar na mesmíssima semana a minha
mudança para outro bairro, ou mesmo para outro estado. Pois não ia suportar
viver num cemitério de lembranças.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Já atravessava a rua. Junto à igreja, além
dos vagabundos de sempre, encostados nos altos pinheiros da praça Septímio
Severo, dava pra ver no sentido da Paes Leme outro imenso e imundo canteiro de
obras, do tal recapeamento que andaram fazendo por lá e também na do Sumidouro.
Eu seguia num passo lento, distraído e sem grandes impressões, me acostumando
com sadismo às mudanças corriqueiras que se passavam a cada esquina. No
panorama que tive do Largo, fixei o olhar nas velhas casas da esquina junto ao
posto, abandonadas já há muito, até
que percebi num susto que estavam sem teto. “Em breve, novo lançamento”, concluí,
melancólico e meio basbaque. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Mas uma voz roufenha me chamou à terra.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Ô Pedrão, você voltou, foi, rapaz?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Tirei
os olhos do outro lado da rua e me virei para baixo: o baiano atarracado me
olhava, alegre, com os olhos pretos e o espesso bigode grisalho, vestido no
tradicional jaleco azul da barbearia. Vinha conversando com um sujeito
narigudo, de boné, a cara gentil,
volta e meia cutucando o velho Ubaldo, que trazia numa mão uma tesoura e
na outra uma gordurenta coxa de frango. Mal pude conter minha alegria em vê-lo
ali, vivo, alegre e ainda na boa e velha praça pinheirense.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Hô seu Ubaldo! – e lhe dei um tapa no ombro – tava justamente atrás do senhor!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">........................................................................................................................................</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> O
velho baixinho destrancou a porta num gesto duro, e dentro em pouco eu já me
sentava na velha cadeira de couro preto e de altura regulável. Na verdade ele já
ia fechar, tinha ido comer alguma coisa e ia voltar só pra terminar de arrumar
as tralhas, mas para mim, freguês fiel, ia fazer uma exceção. Mal me cobriu com
a capa branca e foi por hábito ligar a tv, somando assim ao ambiente da
barbearia e às buzinas da Teodoro aquela voz escandalosa e trágica do
apresentador de “Cidade alerta”. Limpou a mão gordurenta, afiou a tesoura e, no
primeiro corte, puxou um papo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
E aí, rapaz? Faz tempo que você voltou de lá do... do... Canadá, não é, que você
estava?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Não... – respondi, pacientemente, - eu não fui pro Canadá não, seu Ubaldo, eu
fui é pra Rússia!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Ah, é? Rússia é? E como é que foi
lá?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Foi frio pra porra!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Ele
se riu, perguntou das mulheres e de outras coisas típicas da Rússia, como o
comunismo e a vodka. Da segunda ele gostava muito, mas detestava comunistas. E
logo começou seus causos intermináveis... enquanto isso, no fundo da barbearia
o Datena narrava com horror e bile como uma criança tinha sido esfaqueada pela
mãe em algum bairro da zona Norte, seu corpo encontrado na rua e a facínora
desnaturada refugiada na casa de algum parente. Parece que já tinha algum
antecedente, e o apresentador clamava por justiça e maldizia a humanidade. Aos
meus pés, o cabelo emaranhado havia muito caía aos chumaços, formando um tapete
negro, cada vez mais fechado. O barbeiro interrompeu suas lembranças com
indignação.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Rapaz, viu que absurdo essa vagabunda aí! Tinha que esfaquear era a buceta dela
pr’ela aprender a fazer isso com a filha! Onde já se viu...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Simplesmente
escandalizado, sem nenhum ânimo para discordar ou sequer concordar, assenti num
suspiro de “pois é”, enquanto a tesoura deslizava suave e ágil pela parte de trás
do meu crânio. Tinha até me esquecido que, embora gostasse muito de ouvir as
coisas que o Ubaldo contava sobre São Paulo antiga, suas histórias pessoais e a
sua vinda da Bahia, ele tinha certas opiniões meio incisivas com as quais
dificilmente poderia concordar, ou mesmo questionar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
É meu amigo, a coisa nessa cidade tá preta! A gente num tem mais sossego... nem
andar na rua a gente pode mais! A própria mãe! Também, deixa tod’esses marginal
aí solto pelas ruas, daí já viu! Só pena de morte mesmo, pra acabar com esses
vagabundos. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Numa
manobra para mudar de assunto, perguntei uma coisa que me interessava mais e
que não era tão passível destes tão nossos e tão populares reacionarismos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
E vem cá, seu Ubaldo, e esse quarteirão aí da Fernão Dias? Puseram tudo no chão
assim da noite para o dia?! Que coisa...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
É, rapaz, demoliram tudinho! Não sobrou nada! Ainda tinha a lotérica funcionando
lá debaixo daquele prédio, mas botaram eles na rua também! Agora não tem mais
nada... nem o juiz que não queria vender a casa pro governo eles pouparam, já
destruíram também...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
E agora vai ser o quê aí, um prédio, uma praça...?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Vai ser sabe o quê?! Sabe o quê?! Cracolândia! É isso que eu te digo, Cracolândia!
Uma praça pr’os vagabundos dormirem e fumarem droga... imagina, tanto
trabalhador honesto que ficava lá na Martim Carrasco, e agora essa
sem-vergonhice aí, é de lascar. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> No
fundo, com tristeza, eu concordava, e aproveitei:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
É esse trolha desse prefeito! Vai enriquecer todos os amigos dele com essa história,
esse Kassab.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Ah mas esse é uma bicha arrombada! Isso é que dá botar veado na prefeitura!
Coisa boa é que não sai!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Ah, é... e vem cá, seu Ubaldo, pra prefeito, o senhor vai votar em quem?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> -
Ah, tá difícil! É tudo bandido mesmo! Eu vou votar é no Russomanno! Esse Serra
aí a gente já viu, e o outro lá do PT é outro vagabundo, quem nem o partido
dele! O Russomanno pelo menos é um homem decente, trabalhador, rapaz jovem, tem
que dar uma chance.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Com
essa eu já não podia concordar assim sem mais nem menos. O mínimo que eu tinha
que fazer era tentar dissuadi-lo, mostrar bem, por mais difícil que seja
conversar com um barbeiro de sessenta anos de idade. Expus alguns argumentos,
mas não era nada que ele não soubesse, e se manteve firme e forte na intenção
de voto no patrulheiro do consumidor. Acabei me cansando também e deixei a
conversa morrer. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Agora
ele trocava a tesoura, por uma maior e dentada, para tirar volume. Pediu para
que eu me levantasse, para ir lavar o cabelo na geringonça que ficava no fundo
do salão. Ao lado, um armário repleto de utilidades e inutilidades se escorava
junto ao espelho, com tesouras, copos, recortes de jornais, jogos do bicho já
perdidos ou por conferir, e até mesmo, meio escondida num canto, uma garrafa de
Pitu já pela metade. Acima do espelho, que tinha na bancada todos aqueles
incompreensíveis apetrechos de barbeiro, um curioso conjunto de imagens se
destacava, começando pela Nossa Senhora, depois o desenho de um porco de verde
mijando nos brasões de outros times paulistanos e por fim uma foto, ampliada e
bem cuidada, do que presumi ser o netinho do velho barbeiro. Ao lado se abria a
janela, de onde se via, por detrás da estreita rua São Miguel, grande parte do
Largo, totalmente despedaçado. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Quando
ele começou a lavar o meu cabelo, com água fria e um shampoo forte, me lembrei:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Aliás, seu Ubaldo, queria te perguntar:
você sabe o que é que vai ser dessas casas aí na frente, na rua Butantã? Já tá
tudo até sem teto, uma semana e já põem tudo abaixo...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Isso daí? Ah, vai ser mais um prédio alto
desses aí que têm dado que nem banana aí por Pinheiros. Aqui também, vai ser a
mesma coisa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Por efeito da água fria, talvez, ou da hipótese
que se afigurara em minha mente, tive um calafrio e quase um sobressalto.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Aqui, você diz, aqui no Largo, né, com
todas essas obras...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- É, em tudo quanto é canto esses
sem-vergonha vão encher o cu de dinheiro... mas eu tô falando é daqui mesmo,
Pedrão! Já compraram o imóvel e tudo, não teve conversa nem nada! Até o fim do
ano nóis tem que sair daqui...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Uma indizível tristeza escorreu pela minha
alma como o shampoo escorria pelos meus cabelos encharcados, que o barbeiro
agora espalhava com seus dedos grossos. Fiquei ainda um tempo sem resposta,
inerme, pensando: ia ficar sem barbeiro! E mais, toda aquela parte que ainda
restava do velho largo, em frente ao posto, aquela margem direita intocada, com
a loja de discos, o boteco, a falsificadora de atestados, o “compra-se ouro”,
e, claro, o meu velho barbeiro, tudo aquilo estava prestes a desaparecer do
mapa, defenestrados por uma jogada real de Banco Imobiliário. Me senti como que
transposto a um funeral, como se eu mesmo, com aquela tosa e aquela lavagem, me
transformasse lentamente em um defunto obsoleto.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Poxa vida, Ubaldo... que coisa... não sei
nem o que dizer... e você, vai fazer o quê? Já arranjou outro ponto?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Eu, imagina! Eu já tô velho, seu Pedro...
eu trabalho é mais pra passar o tempo, e ganhar um dinheirinho a mais. Até
porque mesmo a barbearia não dá assim tanto dinheiro quanto dava há uns anos
atrás não... eu vou agora é me aposentar mesmo, que eu já trabalhei demais. Eu
tenho um terreninho lá na Bahia, eu vou acabar meus dias é por lá...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- É, a Bahia é uma boa... – suspirei,
cogitando –. Você é de lá, não é não, Ubaldo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E foi a deixa para que o velho contasse
mais uma vez aquela sua infinidade de histórias, desde quando veio para São
Paulo com uma mão na frente e outra atrás, até quando finalmente conseguiu a
sua barbearia, antes na Benedito Calixto, mas como tudo era diferente! A
Henrique Schaumann nem existia... depois foi parar lá no Largo, onde estava há
não sei quantos anos. E também falou do netinho, tão querido! pena ser
corinthiano, e da primeira esposa, de como quase matou o amante daquela vadia
com uma peixeira, mas não ia fazer isso, ele tinha coração, só exigiu o que era
seu. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E nessa infinidade de histórias, que o
tempo trás como que compensando a quantidade cada vez menor de dias que a
velhice nos reserva, o velho barbeiro terminou o meu corte – no fundo o clássico
corte de macho que todo barbeiro faz –, espanando meu pescoço e meus ombros com
um pincel cheio de talco e depois me mostrando num espelhinho. Não iria fazer
objeções: o que se discute com um barbeiro? Depois largou logo o espelho em
cima do balcão e se serviu uma dose de cachaça. Até perguntou se eu queria, mas
recusei, polidamente, enquanto procurava o dinheiro na carteira e alguma
alegria no peito, em vão. No fundo sentia vontade de beber com ele,
compartilhar ainda que pela última vez daquela vida simples, quase rude, que o
velho bigodudo levava há cinquenta anos na cidade de São Paulo, agora demolida para abrir outra vez caminho
ao dito progresso. Mas alguma coisa me impedia, para além de meu estômago. Não
podia mais comungar com aquele homem, nem com a sua gente: aquele era um
barbeiro morto, numa rua morta, num bairro morto. Não sou necrófilo, exijo distância,
sentia nojo. Tudo que eu poderia fazer era acender-lhe uma vela, em alguma
igreja escura de esquecimento.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Ou pagar, como acabei fazendo, em meio a
devaneios e melancolias. Ainda trocamos meia-dúzia de ideias ao longo da
escadaria, onde a comunicação era facilitada pela distância da televisão em que
o Datena ainda berrava por alguma velha que tinha sido defenestrada no Morumbi.
Mas o assunto acabou rápido, com a chegada daquele mesmo sujeito com quem havia
encontrado o Ubaldo na rua. Golpe de sorte, pois o assunto começava a enveredar
para o futebol e aí sim eu já não teria absolutamente nada a dizer. Talvez
chorar, só, talvez, o que já seria o cúmulo do ridículo ou do absurdo. Adeus,
Pinheiros! Adeus, meu bairro! Era o que eu queria dizer, mas só saiu um</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Adeus, Ubaldo. Espero que tudo corra bem.
– e quis abraçá-lo, cheio de sentimentalismos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ué, mas adeus por que, rapaz? Você vai
viajar de novo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Não, mas o senhor é que tinha dito que...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ah, mas isso é só lá pra março, a gente
ainda se vê. Ou você vai ficar mais seis meses sem cortar o cabelo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Ri, um pouco mais aliviado. Apesar de que,
no fundo, a morte seria até pior, mais lenta... mas mesmo assim mais humana. Não
haveria nenhuma grande e dramática despedida. O barbeiro não seria morto pelas
retroescavadeiras, quando pusessem o teto da barbearia abaixo com tudo dentro,
os clientes, as imagens, a televisão. Mas ele sairia lentamente, pela porta da
frente, depois de empacotar, com certa dor, coisa por coisa, retrato por
retrato, desligar a tv, tirar as imagens e os recortes das paredes, embrulhá-los
em uma caixa de sapatos, com todo o carinho que uma alma, a mais simples que
seja, acumula ao longo de sua vivência, para transmutar-se em pesar e nostalgia
no dia do fim de tudo. E depois de tudo pronto, após certificar-se de que só
esqueceu o que queria esquecer, apagaria a luz com um suspiro e desceria as
escadas num silêncio saudoso. Mas quanto ao bairro... cocei a barba,
encafifado, e lembrei:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- Ah, Ubaldo! – o velho quase se afastava,
mas voltou. Queria já faz tempo te perguntar uma coisa: aquela pedra branca que
você costuma passar no rosto depois de fazer a barba, o que é que é? Queria ver
se eu arrumava...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">-Aquilo lá? É naftalina, em barra! É bom, não
é? E tem mais – me puxou para perto de si, cochichando na minha orelha – tem um
segredo também. Se a mulher passar isso na xoxota, vira virgem de novo!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E depois foi embora, sem nem dar tempo de
eu expressar a minha dúvida ou pelo menos perplexidade diante de uma ideia tão
esdrúxula. Naftalina... virgem de novo... atravessei o Largo despedaçado com
essa ideia na cabeça. O que no fundo, concluí, sorrindo, é uma ideia
interessante: se as mulheres puderem revirgenescer, os Largos se reconstruir e
os barbeiros, depois de tanta vida e da morte, com uma pedra qualquer puderem
ressuscitar de um bairro entre escombros, purgados de seus erros e pecados ante
a visão do Infinito. </span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-63478740353600808122012-10-01T18:23:00.001-07:002012-10-01T18:23:56.778-07:00Pior do que está fica!<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 26pt;"> Q</span><span style="font-family: "Lucida Grande";">uando
me meti nesta empreitada, ainda na Rússia, cabe dizer, confesso que fui movido
pelo desespero e nada mais. A situação é cínica, como dizia o Adoniran. De
quebra há um trocadilho ainda pior: tá ruço, mano. E está mesmo. Todas as
previsões se mostraram pífias, e o tal do fenômeno Russomanno mostrou a língua
a todos os analistas de jornais: não baixou, cresceu. E está aí na porta de
nossas casas, nas esquinas, nas praças, na televisão, nos meus piores
pesadelos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>O
Serra, creio, dispensa comentários. Espero que estes oito anos de administração
falem por mim: todo o pouco que esta cidade tinha de bom, suas noites, seu
despojamento cultural, sua vida fervilhante, seus tipos, suas ruas, tudo ameaça
desaparecer em quatro anos de mandato. Se é que ainda não desapareceu, como o
defunto que esqueceram de enterrar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Por
essas e outras acabei me metendo em questões de campanha, na medida do possível,
sem grandes sacrifícios já que a minha convicção não os permite. E digo, entre
lágrimas, com decorado desespero: é 13, Fernando Haddad. O termo campanha, me
parece, tem origens militares. Pois bem, entrei nessa história de campanha como
um pracinha, um cabo, sei lá, daqueles que limpam a latrina e descascam batatas
porque paciência, a vida aconteceu assim, e que um belo dia, ao tocar da
corneta, se viu fardado lutando contra os alemães, na eminência da morte ou do
fim dos pagamentos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Não
morro de amores pelo PT, embora o admire, não pelas ideias mas pelo realismo,
pelo balde de água fria que deu nas almas mais sensíveis, mostrando como é que
se <b>pode<i> </i></b></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">fazer
política na atual conjuntura, sem rachar o país nem nos meter em crises de
qualquer ordem. O meu lado mais lúcido encara tudo como paliativo, e os anos de
lulismo assim não teriam trazido nada de novo, apenas uma atualização do
progressismo de um Juscelino Kubitschek. Já o lado inocente ainda vê alguma
luz, como, com Getúlio e Juscelino, vieram Goulart, Brizola e Arraes. Mas essa
luz pode ser só mais outro farol de carro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Estamos
a uma semana da eleição, e o cenário ainda é completamente incerto. Quer dizer,
há a triste certeza da Patrulha do consumidor, a cidade na estupidez da ordem e
na orgia do progresso. Nova lei de zoneamento, mais automóveis na rua, Nova
Luz, ônibus a R$3,00, recordes de chacina pela polícia, educação e saúde nos
estados mais ou menos calamitosos a que já nos acostumamos, quase como patrimônios
culturais. E eu de minha parte não quero lavar as mãos, digitando, de qualquer
forma, números confusos na minha seção eleitoral. Digo e repito: o que eu quero
é me comprometer, sejam quais forem os riscos. No caso de Fernando Haddad, não
vejo, com a devida lucidez dos cálculos, que sejam altos. É professor universitário,
homem das esquerdas, e que bem ou mal trouxe propostas interessantes, como o
bilhete único mensal e a descentralização dos polos de trabalho da cidade,
colaborando (paliativamente! mas colaborando) para o fim do trânsito. Vindo
depois do Kassab, certamente terá um prazer quase sádico em desfazer as
burradas mais exemplares da última prefeitura, como o escandaloso caso da
Controlar, a expulsão dos artistas das ruas, a caretificação da cidade em
geral. Ao menos assim o espero, repito: ponho minha língua na mesa. Nada foi
dito em relação ao surto imobiliário, e o receio de assustar o cidadão de bem
pagador de impostos, o consumidor indefeso, é fonte de cautelas para abordar
qualquer solução mais drástica. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Se
perguntarem do Maluf, respondo: o PP emplacou um ministério. O acordo já se
cumpriu.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Quanto aos riscos de lavar as mãos com a
pureza do “nulo”, numa verdadeira masturbação moral, são em parte conhecidos:
José Serra terá também prazer imenso em continuar fazendo o que sempre fez. E
mais: se sair, para o estado OU para a república, deixará no alto poleiro do
edifício Matarazzo mais outro pessedista, que vai achar a cadeira quentinha e a
carta branca pra passar seis anos no governo. O filme é velho e nem graça tem
mais. Mas o filme novo pode ser de terror: espero que o hipotético leitor saiba
alguma coisa sobre as propostas de Celso Russomanno, como as câmeras de vigilância
ou o policiamento ostensivo. Mas também ele é autoexplicativo, tanto pela
figura da Patrulha do consumidor, quanto pelo apoio de igrejas evangélicas ou
pela tradição tão paulista de tipos como este, conservadores populistas. E
desta vez não podemos nem mesmo ter o prazer de gritar “o jeito é Jânio”, ou
ouvir o delicioso sotaque de “brimo” de Paulo Maluf. Repito: a piada e velha e
já não tem mais graça. E os riscos são altos. Já não preciso lembrar que na
atual conjuntura política paulista, dificilmente teríamos coisa melhor, como a
Guanabara vem esboçando timidamente na figura brilhante de Marcelo Freixo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">E foram tantas as decepções com o PT... não,
melhor não pensar, abdico por hora das minhas convicções. Até domingo, quando,
mesário, acordarei às seis da manhã para ir à seção que foi-me por Deus e pelo
Tribunal Eleitoral indicada, nesta última e desesperadora semana de campanha
ponho a honra e os princípios de lado e compro a briga. Não há nada a perder. E
depois de seis anos de Kassab, sob o risco de mais quatro de Russomanno ou
Serra, vai ser necessário um esforço espetacular, sobre-humano, até, da parte
de Fernando Haddad para afundar ainda mais esta cidade, tão boa, coitada,
quanto estúpida. Se tudo der errado é porque no fundo merecemos.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-78692084473993008562012-09-26T19:52:00.001-07:002012-09-26T19:52:40.273-07:00Demolidor de moinhos<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 26pt;"> O </span><span style="font-family: "Lucida Calligraphy";"><span> </span></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">final
do encontro, que de qualquer forma já se anunciava, foi dramaticamente marcado
por uma notícia perturbadora: tinham chegado no terreno com máquinas, disse a
dona do posto ao lado, companheira de urbanos quixotismos, e parece que iam pôr
tudo abaixo, na calada da noite, como já tinham feito. Mas deram azar: estávamos
lá mesmo, na outra esquina, e já num clima de articulações, de modo que foi só
juntar as tralhas e ir para lá, com câmeras, ânimo e até, se precisasse,
telefone da polícia na mão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Dessa
vez não ia ser como na última. O casarão foi derrubado assim, tínhamos clara a
lembrança: na calada da noite... baixaram lá com retroescavadeiras, operários,
enfim. Dizem as testemunhas que começaram o trabalho pontualmente às sete. Às
oito já não havia mais nada, o terreno estava vazio. Segundo o sacrissanto
direito à propriedade, tudo em ordem, mas... ainda há alguma justiça neste país,
e o imóvel havia sido encaminhado para o tombamento. Mas não teve nem discussão:
o casarão já não existia, o que se pode argumentar? Depois a história é
conhecida, a luta, simbólica, antes de mais nada, pela criação de um parque em
frente ao colégio Godofredo Furtado, para aproveitar o espaço magnífico que
ficou lá, vazio, com árvores gigantescas, maravilhosas. Há quem argumente, na
inocência nociva do progresso, que já que foi posto abaixo mesmo, bolas, que se
construa alguma coisa por lá, um condomínio residencial de não sei quantos
andares, um “kinoplex”, clamam os tupiniquistas. Mas a coisa não é bem assim: já
passou a hora de dar um basta. Apartamentos por mais de um milhão cada um...!
Onde que isso democratiza o espaço do bairro? Muito pelo contrário. Só
corrobora com a elitização, que expulsa, pouco a pouco, os moradores
tradicionais, em sua maioria velhinhos, artesãos, lojistas, pequenos
comerciantes, gente, essa sim, humilde, que é obrigada, ante o aviso de despejo
e a delirante vertigem dos preços imobiliários, a ir com as tralhas para a
periferia. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Todas
essas ideias já foram muito bem repetidas. E mesmo assim lá iam os donos do
terreno, mais uma vez, nos fazer de trouxas. A liminar ainda não caiu, e tudo
segue em discussão. Se fossem derrubar o que restou no terreno, seria apenas
mais um desafio, uma humilhação às nossas quixotescas (e por isso tão nobres!
Quem não quer viver numa cidade melhor?) reivindicações. Já chegamos lá com
sete pedras em punho, eles que tentassem. Não somos mais um bando de
idealistas, não só: advogados, jornalistas, funcionários públicos, todos estão
engajados, conforme a sua especialidade e experiência de vida e luta, nessa
pequena grande causa. Compraríamos a briga no atacado. E se não vencêssemos,
que ao menos o inimigo perdesse um bom tempo lambendo as feridas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Em
frente ao terreno praticamente baldio, repleto de árvores frondosas na colina
que o caracteriza, só havia mesmo uma guarita, onde um homem simples,
agasalhadinho, dormitava. Claro que as pedras foram jogadas ao chão, brigar com
ele? Fomos claros: não pode mexer em nem uma folha, por tais e tais razões. O
senhorzinho entendeu tudo, concordava, só estava trabalhando. Disseram que a
retroescavadeira era só pra limpar o terreno, estava cheio de entulho,
precisava mesmo de limpar. Mas ia ligar pro engenheiro, explicar a situação, o
povo aqui é alarmado, não vai deixar passar batido não. De qualquer forma
chamamos a polícia, vai saber... o homem concordou, ainda mais de ter ouvido a
história da demolição do casarão, imagine!, se riu, na calada da noite, isso não
se faz, tem que respeitar... ainda mais pra levantar condomínio pra grão-fino,
vê se pode... ia ligar pro engenheiro mesmo, dizer tudo, o povo aqui não dorme
em serviço. Só estava trabalhando.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>A
polícia, a bem da verdade, não chegou ainda. Parece que há uma hierarquia de
sangue nos atendimentos, quer dizer, quanto mais sangue, mais rápido eles
chegam, o que é muito natural. E o nosso caso era uma retroescavadeira. Estava
lá, no alto do morro, parada, animal de sono, imóvel, neutra, até que os homens
a despertassem... talvez a máquina também não faça as coisas por vontade, é
obrigada, é o trabalho dela. Não sabe da lei, e mesmo se soubesse: é paga para
isso.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Mas
nós não ganhamos nada, nem um tostão. Talvez a alegria de saber que não estamos
sós, o sofrimento não é mais isolado, estamos juntos. E um mostra as fotos da
casa em que passou a infância, hoje demolida, outro lembra do córrego que
passava na Henrique Schaumann, do mosteiro que virou estacionamento... chega um
sujeito novo, quem será?, é jornalista, quer ajudar, tem informações novíssimas,
importantes. Tudo por amor, pode-se dizer. E vamos abrindo caminhos, tortos, de
paralelepípedos, mas apaixonados, na esperança (tão batida quanto nobre!) de
uma cidade melhor. “Saudosistas!” clamam alguns, sem saberem-se eles mesmos
saudosistas, comprando no atacado a ideologia caduca do progresso, getulista,
militar, do século passado. Porque quem pensa de verdade no futuro, aliás, no
presente!, somos nós, e todos aqueles que trabalham em silêncio, com calma
apaixonada, pela preservação e melhoramento daquilo que já existe de bom.
Londres, Paris, Moscou, Roma, Rio de Janeiro, Buenos Aires. Cidades que provam
que ainda há uma convivência possível entre presente e passado, com
perspectivas de qualidade de vida. “Mas isso daqui não tem mais jeito”,
confessam os homens de pouca fé, entre a preguiça e a mesquinhez. E rebato, no
chavão da primeira república: “derrotistas!”. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Tudo, menos o derrotismo. Enquanto houver
vida, e gente decente, haverá o possível, mesmo que no papel leve o carimbo
sujo do impossível. Mas ainda sairá do papel, seja o projeto do parque,
concreto, visível, seja a fotografia da infância, remota e doce, mas que ganha
vida na perspectiva da nossa própria velhice, e num futuro em que, queremos,
nossos filhos poderão brincar com a calma e a dignidade que tivemos. E que se
perdem na generalização, roídas pelas traças da indiferença farisaica.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-4441934656868095322012-09-24T19:15:00.001-07:002012-09-24T19:21:43.977-07:00A volta das capivaras<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<style>@font-face {
font-family: "Times New Roman";
}@font-face {
font-family: "Lucida Calligraphy";
}@font-face {
font-family: "Lucida Grande";
}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal { margin: 0in 0in 0.0001pt; font-size: 12pt; font-family: "Times New Roman"; }table.MsoNormalTable { font-size: 10pt; font-family: "Times New Roman"; }div.Section1 { page: Section1; }</style>
<span style="font-family: "Lucida Calligraphy"; font-size: 36pt;">L</span><span style="font-family: "Lucida Grande"; font-size: 12pt;">ê-se em reportagem da Folha de São Paulo do dia 19
de setembro do ano da Graça que, até 2015 o rio Tietê, bandeira da capital
paulista, não federá mais. Trata-se de uma promessa espetacular, melhor do que
todas as outras de campanha já feitas em nossa história, até porque,
finalmente, Alckmin não poderá se reeleger, sendo notoriamente a vez do Serra.
Isso se o osso da República tucana for finalmente entregue a Minas, e a
proposta de campanha for finalmente esclarecida como “Viva a república do café”.</span>
</div>
<span style="font-family: "Lucida Grande";"></span>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Mas
não posso deixar de me decepcionar com o atraso da proposta: o rio deveria
estar apresentável até 2014. De que cor nos pintaremos quando todos aqueles
estrangeiros nos visitarem durante a Copa? Vai que, suponhamos, faz o calor que
tem feito e sobe aquele cheiro... tremendo papelão. Mas não me queixo.
Contentemo-nos com os princípios da honestidade: nenhum rio cercado por dez ou
mais autopistas pode ou mesmo deve cheirar bem, se formos pensar faz até parte
da paisagem... o Tietê é motivo de orgulho, famosíssimo em todas as outras
capitais da Federação, e não por sua tristeza, pelas bandeiras, pelos versos de
Mário de Andrade: ele é famoso pelo cheiro. Claro que também há máximas como “cheirinho
de Copacabana”, e pessoalmente tive experiências olfativas memoráveis no porto
de Manaus, mas é com orgulho e honestidade que afirmo: não chega nem aos pés do
Tietê, que fede invicto na estrela paulista da bandeira da Federação. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">O Tietê, como diria Noel Rosa, se fosse
paulista, é coisa nossa. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Diz-se
também na reportagem que o projeto desinfetante do rio começou em 92, data que
me suscitou curiosidade. Lembro-me quando pequeno de ainda ver garças e,
pasmem, capivaras passeando
calmamente pelas margens do canal, certamente imunizadas pelo hábito, ou sem
poder aquisitivo para ir para o Pinheiros – que, fato notório, mesmo não
fedendo menos vale muitíssimo mais. Não é qualquer capivara que pode se mudar
para a marginal Pinheiros, qual! É grande a tentação de explicar esse sumiço
com a especulação imobiliária, identificando um fenômeno massivo de gentrificação
das capivaras, mas isso ainda não se aplica ao Tietê. O fato é que hoje em dia
por lá mal se veem mosquitos, só mesmo umas plantinhas e o cartazinho do
governo: postos de tratamento, ciclovias, etc. Até barco dizem que passa. Mas
seres vivos... bem, houve, sim, o terrível boato dos jacarés albinos, que
habitariam as profundezas do rio. Seres quase que de outro planeta, adaptados àquela
sujeira toda, brancos como vampiros, e também dentuços... teve todo um rebuliço,
mas no fim acabou como uma loira do banheiro qualquer, sem mais.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> De
minha parte duvidava que qualquer coisa viva que se preze conseguisse viver
naquele esgoto. Mas o artigo me contradiz: tem uma formidável espécie de peixe
que parece ser capaz, não precisa de oxigênio, respira na superfície.
Praticamente um golfinho. Golfinhos para o Tietê! E há ainda, no meu ingênuo
otimismo, a possibilidade de que seja além de tudo um peixe comestível,
saboroso, típico. Que belo negócio será: barraquinhas de peixe fresco frito às
margens do Tietê. Nem precisa mencionar a cerveja... adicione-se um pôr do sol
e uma Bossa-Nova e daí sim, nunca mais deveremos nada ao Rio de Janeiro. Até
ciclovia as marginais já começam a ter, não duvido que daqui a pouco construam
também um calçadão, se o experimento der certo, e ninguém morrer asfixiado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Já
imagino, deslumbrado: “Calçadão do Tietê: não tinha, agora tem.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> E
se tivermos fé e esperança de verdade, daquelas que movem montanhas e despoluem
esgotos, poderemos contar com toda uma fauna aquática fantástica, tropical
mesmo, dentro de alguns anos, para alegrar a ressaca da copa e já esperando
pelas Olimpíadas. Nada foi dito, confesso, mas guardo as mais luminosas
expectativas de que, sim, as capivaras, assim como os seres humanos, voltarão
para o Tietê, em clima de País do Futuro. Com ciclovias, oxigênio, calçadão e
bossa-nova, vai se tornar sem dúvida alguma o próximo polo comercial de São
Paulo, junto com a marginal Pinheiros, mas com a incrível vantagem de contar
com um entretenimento muito mais diversificado. A iniciativa poderia até mesmo
ser feita pelo próprio governo, por que não?, importando do interior do estado
colônias de capivaras, dando-lhes a grande oportunidade de viver na capital. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Até porque a capivara, como também diria
Noel Rosa, é coisa nossa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"> Em
meio a toda esta euforia, bastaria, talvez, somente lembrar de sinalizar muito
bem as marginais, com os simples dizeres “Travessia de capivaras”, e mais um
desenho, quem sabe, em cada uma das dez ou mais pistas que tem o complexo viário.
Pois infelizmente, ao que me consta, elas ainda não sabem usar as passarelas nem
tampouco o CPTM. Detalhe que, embora simples, tornaria sua vida, num rio imundo
entre dois gigantescos complexos viários, meio infernal, mandando-as sem dúvida
alguma de volta para o interior do país. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Porque no fim a única prejudicada é a população.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3755035179767135952.post-64913833788562265342012-09-20T21:05:00.001-07:002012-09-20T21:15:09.652-07:00Maldito escrevinhador!<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"></span><br /><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span style="font-size: x-large;">E</span>screver por aí, onde quer que seja, quando
e como a dita “inspiração” aparecer, é um hábito tão saudável quanto problemático.
Quer dizer, saudável dentro de certas perspectivas, no meu caso, a de aspirante
a homem de letras, pois dentro de outras inumeráveis perspectivas tal costume não
passa de uma maluquice com riscos seríssimos de atropelamento ou exclusão
social massiva, sob acusações de lunatismo. Não dou a mínima para estas questões.
O problema maior, no meu caso, eu que não hesito em anotar versinhos ou motivos
narrativos atravessando a Paulista ou num samba no Butantã, é quando as pessoas
começam a achar, na sua humildade mais santa, que é sobre elas que eu estou
escrevendo. Daí sim a coisa complica.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Trata-se
– não julgo – de um equívoco bastante natural. E não preciso fazer grandes
reflexões históricas: peguemos a palavra “canetar” tão corrente quanto
detestada. Ninguém caneta pelo bem alheio, o ato vem sempre de uma intenção
perniciosa. O canetador é primo-irmão do amarelinho, do fiscal, do dedo-duro, e
sempre que alguém tira o cilindro esferográfico do bolso e põe-se
compenetradamente a rabiscar alguma coisa, pode ter certeza: de alguém ele
deseja o mal.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Não
se pode dizer que este seja o meu caso. Quer dizer, só se se tratar do meu próprio
mal, por perder tempo com as tintas enquanto podia fazer outra coisa; mas o mal
dos outros, bem, pouco me importo que casem ou caiam num poço. Claro que não se
pode exagerar, já que o ato criativo é de certa forma um ato de amor,<span> </span>e, principalmente,<span> </span>se não fossem as figuras com as quais
me deparo no dia-a-dia, para o bem ou para o mal da vida prática, por certo não
teria um único assunto para escrever, a não ser a lua, já rota e batida de
tantos versos que se lhe escreveram. Eu prefiro mesmo escrever sobre os malucos
que me rondam, não obstante muitas vezes serem eles os maiores inimigos deste
ingrato <i>métier</i></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Andava
eu pela Teodoro Sampaio quando uma placa de loja, com algumas letras caídas, me
chamou a atenção, e achei digno de nota. Era perto de uma esquina de vila, e
sendo um horário comercial, diversos carros se amontoavam folgadamente ao longo
do meio-fio, quase invadindo o passeio. Pois foi eu tirar a caneta da camisa e
o caderno do bolso, para escrever, que um sujeito entretido numa conversa de
esquina parou tudo e pulou como uma mola na minha direção.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Opa opa opa amigo! Parei só cinco minutinhos, o piscalerta tá até ligado, ó! Não
vai fazer isso comigo não...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Isso o quê?... – perguntei perplexo, e o sujeito ficou aflito.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Essa multa aí não é pra mim! Suei muito pra comprar esse carrinho! A quantidade
de pilantra sem-vergonha que vive no bem-bom com o nosso dinheiro e você ainda
vai dar mais pra eles, é?! Assim não! Eu sou patriota!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Ah... – caíra a ficha – não é isso não, amigo. Não sou CET não, isso aqui é...
isso aqui é outra coisa!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Mas
ele era desconfiado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Sei! Que é que é isso então, se não é multa?!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Agora
quem estava aflito era eu.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Isso aqui são só uns versinhos aí, que eu escrevo... tive uma ideia e resolvi passar
pro papel... quer ver?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>O
sujeito veio, meio sem muita fé, deu uma olhada nas besteiras que eu tinha
acabado de escrever e se acalmou. Ia voltar pra conversa, depois de pedir
desculpas, meio rindo, quando percebeu que o verdadeiro amarelinho, enquanto
ele me fazia aquele absurdo interrogatório, tinha acabado de arrancar uma folha
do talão de multas e enfiado no vão do para-brisa. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>No
fundo, achei bem feito: ele nem pra elogiar os meus versos! </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">............................................................................................</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Outra
foi num restaurante, ainda que com outros contornos. Era um daqueles
tradicionais do Centro da cidade, na rua Aurora, um italiano digníssimo já
desde os tempos em que meu avô trabalhava por lá. Como estivesse inspirado por
aquele mosaico formidável de edifícios e azul do céu da avenida São João, mal
me sentei junto à mesa e tirei o pedido e logo comecei a anotar alguns versos,
freneticamente. Volta e meia, como a inspiração respirasse, parava e observava
o garboso restaurante, seus garçons antigos, até que finalmente a palavra
faltante chegava e eu retomava a escrita, com cega dedicação. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Só
quando já tinha jogado toda a minha reserva de estrofes sobre o papel foi que
pude perceber o tratamento diferenciado que passara a receber dos garçons. Não
só pelo excelente <i>couvert</i></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">
que tinham posto em minha mesa, mas também pelo frescor fumegante, bem
apresentado e farto do pretenso simples macarrão ao sugo que havia escolhido
pelo preço, cheio de ervas, especiarias e até – quem diria! –<span> </span>uns gordos tecotos de carne. O
estranhamento cabal foi quando, ao dar a primeira garfada, descobri a taça de
vinho tinto que tinham servido discretamente, num canto da mesa, como que
propositalmente escondida.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Levei
um susto. Mal sabia se os vinte dois merréis que tinha no bolso bastariam pra
pagar a massa, quanto mais toda aquela regalia! Presto chamei o garçom, que, de
um canto, parecia me olhar junto com todo o serviço do salão, e voou para me
atender.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Pois não, senhor?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Ô amigo, seguinte: você me trouxe esse vinho aqui e...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Que foi? Não está bom? Quer que troque? – desesperou-se o homem.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Não, não é nada disso. Eu nem toquei nele, aliás. Mas é que eu não tinha pedido
isso não, e nem tenho como...</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Ah, sim, senhor. A casa é que está oferecendo!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
A casa está pagando também? – desconfiei.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Mas é claro!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Bem... sendo assim... muito obrigado, é... Está tudo muito bom, viu! Só... você
pode me trazer um queijinho ralado, também, fazendo o favor?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Despachando
o garçom, dei outra boa olhada em minha volta: era o único que tinha uma taça
de vinho, que dirá de por conta da casa! Daquele mesmo canto o serviço ainda me
observava, entre cochichos e olhares de expectativa. Olhei para a caderneta
fechada ao lado do prato e finalmente juntei lé com tré: ali se passara algum
engano, certamente me tomaram por algum crítico, gastrônomo, algo assim. Que
fazer? Desmentir? Ser honesto? “Não, senhores, sinto muito, eu não...” Mas e
depois, o vinho, o <i>couvert</i></span><span style="font-family: "Lucida Grande";">,
a conta? Passaria uma boa tarde lavando pratos, isso sim, a recompensa pela
honestidade!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Não, se a burrada era deles, eles que se
virassem! Não tinha dó de ninguém e nem pretendia voltar ali tão cedo. Agora só
teria de levar a farsa até o fim. Com trejeitos esnobes e sapientes, pus-me a
balançar a taça de vinho, imitando os ditos entendidos, e só então dei um gole,
minúsculo, quase imperceptível, para saboreá-lo. O efeito na plateia, bisoiei,
foi maravilhoso: os garçons estavam em completa tensão, causada com certeza
pela pressão do gerente. Prossegui o almoço com as mesmas maneiras, percebendo
o sucesso absoluto da desonestidade. Volta e meia fazia uma cara severa,
degustava, e rabiscava qualquer porcaria na caderneta, pra coisa parecer séria.
Até que me dei conta do anedótico de tudo isso e anotei de fato, para poder
escrever depois.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">Por fim, depois de tomar um café, também
oferecido e pago pela casa, levantei-me. Agradeci elogiosamente ao garçom,
velho simpático!, e fui para o caixa acertar o que tinha pedido. Mas quando me
aproximava, o gerente me barrou.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-indent: 0.5in;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";">- E que tal, senhor, gostou? Estava tudo
certo? Foi bem atendido?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Hum... sim, claro. Tudo muito bom. Só o molho, estava um pouquinho ácido.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>A
expressão do homem se nublou de um tal modo que até me arrependi, e emendei.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Mas eu gosto. E era só isso. Tudo perfeito, excelente, não há mais restaurantes
deste porte em São Paulo, são raríssimos. Conte com uma crítica extremamente
favorável, de minha parte.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Ah, senhor! Muita bondade. Aliás, bondade desde o princípio, ter aceitado vir
aqui fazer esta matéria. Volte sempre que quiser!</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Voltarei. Agora para acertar...?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>-
Acertar?! Não senhor! Hoje você é nosso convidado, já estava nos planos. Aliás,
tome este chocolatinho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Me
estendeu um chocolate e um imenso, quase patético sorriso. Chega senti pena do
homem, mas a alegria do almoço na faixa era maior do que tudo. Dei um sonoro “adeus,
muito obrigado!” a todos os garçons e ia saindo pela porta, quando esbarrei com
um sujeito todo janota, acompanhado por uma mulher excessivamente produzida. O
carro da Abril do lado de fora não me deixou mais dúvidas: dobrei a São João
como uma cobra e disparei pro Anhangabaú. Se não me desse bons versos, pelo
menos uma história das boas a tarde já tinha me dado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Qual
o problema com o papel e a caneta? Difícil pergunta. Parece ter alguma magia,
aura de respeito e autoridade, por mais que neste país não haja a menor
consideração pelo escritor. Mesmo que entrasse o Lima Barreto no bar da edição
de um jornal e pedisse uma pinga, ninguém iria perceber, corria até o risco de
ser maltratado. E ao mesmo tempo... bem, ao meu ver, é puro medo. Quem escreve,
reza a lenda!, tem que pensar. Por mais que se possa dar mil contraexemplos...
a começar pelo fato de que o pobre do papel não escolhe a tinta: aceita tudo.
Mas mesmo assim, há muitos que prefeririam aparecer na grande mídia, nem que na
última página, num rodapé depreciativo, do que morrer num honesto anonimato. E
para tanto, claro, não economizam hipocrisias. É aquela história de arrumar o
penteado antes da foto, passar maquiagem, por mais que infelizmente hoje
existam os photoshops da vida.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Mas
não na literatura. O que escrito foi, amém!, escrito está. E daqui a paúra de
muitos. E o desespero de outros. Uns ditadores queimam livros... outros os abençoam.
Curioso é o homem de letras, coitado, esquecido e ao mesmo tempo central neste
genérico ridículo, que ele se resume a captar, mas de quem só se lembram na
hora de incriminar por alguma calúnia provavelmente verossímil. Lembro-me agora
de Nikolai Vassílievitch Gógol, que resumiu, há 200 anos e em poucas palavras,
tudo o que quis dizer: </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span><i>Qualquer
que seja o nome inventado, sem dúvida se encontrará, em algum recanto do nosso
país, pois ele é grande, alguém que tenha esse nome, e que sem falta ficará
furioso, e criará um caso de vida ou morte: dirá que o autor foi já às
escondidas para espioná-lo, para descobrir quem é ele, e que tipo de casaco
veste, e qual é a Agrafena Ivánovna que ele visita, e o que gosta de comer.
[...] Entre nós, agora, todos os portadores de títulos e cargos estão tão
exacerbados, que tudo o que aparece em letra de forma já lhes parece ofensa
pessoal – deve ser por causa das condições atmosféricas. Basta que se diga que
numa cidade reside um homem tolo, e isto já constitui alusão pessoal: de repente
saltará um senhor de aspecto respeitável e gritará: “Acontece que eu também sou
um homem, portanto, eu também sou tolo!”. Em suma, perceberá logo do que se
trata.</i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Lucida Grande";"><span> </span>Tivesse
eu citado desde o começo, não precisava nem escrever essa crônica... nem mais
nada, nunca mais. Seria uma excelente solução: livrar-me-ia não somente desse
texto, mas ainda, o que é mais importante, dos problemas pentelhos, que tive o
trabalho de narrar, só por ter ideias, caneta e papel sempre à mão.</span></div>
</div>
Pedro Pintohttp://www.blogger.com/profile/07844950525022813640noreply@blogger.com0