segunda-feira, 10 de junho de 2013

Na falta de crônica


Vai qualquer outra coisa, e aviso logo: isto aqui não é uma crônica.

Venho tentando compor, dos retalhos confusos de uma vida insossa, pequenas anedotas, comentários, ou mirabolações sobre tudo que se passa ou que poderia se passar nesta triste capital de estado sulista. Mas esse fim de semana não deu. E por um certo tipo de maldição moral, que empurra os escritores para a máquina mesmo que só pra sofrer de tédio, cá estou eu explicando as minhas faltas para o leitor que, muito provavelmente, está cagando para meu atestado de incompetência.
            E é pior: não há nada de original nesse tipo de artifício. Lembro-me agora de Drummond, no seu formidável “Cadeira de balanço” – mas não sei ao certo o que o poeta inventou no lugar da crônica faltante. Certamente não foram desculpas. E de fora ele mesmo ainda cita, por escrúpulos, outro caso de inadimplência literária confessa, referindo-se ao autor apenas como “o célebre cronista”, que me parece se tratar de Rubem Braga.
Ou seja: já não bastasse não ter escrito, não ter o que escrever e estar enrolando desculpas, de quebra ainda corro o risco de estar fazendo plágio, quase um biplágio, um plágio terceirizado, uma monstruosidade, enfim. Mas se contasse tudo que me privou, nestes dias, do convívio torturante e maravilhoso do Microsoft Word, teria ao menos o consolo da irreprodutibilidade inata de cada vida, e, dentro dela, a unicidade de cada fim de semana.
Lá vai um esboço.
            O escritor – na cabeça de qualquer ser honesto que queira ser um escritor – é uma espécie de santo. Deve se manter impassível diante das tentações terrenas, eternas e modernas, fazer da vida o que também o Drummond já dizia em seus versos: “um sol estático, que não esquenta nem ilumina”, ou qualquer coisa assim. Deve dormir pouco ou quase nada, acordar muito cedo e ter sonhado com imagens e motivos para a sua nova obra experimental-surrealista, que está para escrever já há dois anos e que muito provavelmente morrerá sem escrever, dilacerado em crônicas, resumos, resenhas, e quinta-colunismos em geral.
A boemia cai muito bem em filmes hollywoodianos, ou na imaginação glamorosa de certos inocentes – mas é inimiga feroz da literatura. Primeiro porque no tempo em que você enche seu copo de Brahma, comprada por sete reais à garrafa, era pra você estar em casa começando o seu romance. Depois porque, bebida a primeira a segunda a quinta garrafa (R$35,00 que você não tem, porque não escreveu nada), você começa invariavelmente, na sua inconsolável frustração de escritor perdido no mundo, a falar das obras e manobras que você está fazendo ou que sem sombra de dúvida ainda há de fazer, corrompendo seus projetos com estúpidos e etílicos arroubos narcisistas, submetendo-os aos intermináveis pitacos das mais antipoéticas criaturas da noturnidade (poetas sem versos, pintores sem telas, músicos sem melodias) e por fim – questão de saúde pública – caceteando o lazer de todos os infelizes que tiveram por bem se sentar à sua mesa, excluindo pela chatice qualquer possibilidade de arranjar companhia que te arrefeça as frustrações alcoolizadas.
            Inevitável conclusão: bêbado, sozinho, e, dependendo dos tipos com que anda, com uma conta onerosa registrada seu nome.
            Outra abominável armadilha para pegar escritor é a internet. Em tempos de pouco lirismo, nada mais caduco do que o escritor sentado atrás dos papéis em uma vasta escrivaninha de mogno, presidida pela majestade nostálgica de uma Remington ou de uma Olivetti, com bustos barbudos prendendo folhas soltas e um cinzeiro abarrotado de bitucas. O escritor de nossos dias, se não quiser ser mais anacrônico do que já é par excellence, tem que trabalhar com um computador: se moderno, usará o Windows; o pós-moderno não dispensa o Macintosh. E ambos serão igualmente tentados, ao finalmente conseguir se sentar junto à máquina com o intuito de escrever, pelos detalhes coloridinhos dos ícones do Chrome, do Explorer ou do Firefox. E daí já é um abismo sem volta, um labirinto de abas e janelas... notícias frescas, e-mails importantes, vídeos engraçados, letras sentimentais, joguinhos viciantes, mensagens intensas...
Isso para não mencionar o Facebook, que já seria uma crônica à parte... e isto, antes que eu me esqueça, não é uma crônica. É antes qualquer coisa de desagradável, uma confissão absurda de um incompetente que não conseguiu dois dias para escrever uma reles historinha, um causo, qualquer coisa de minúsculo e de humano que mereça ser contado para a alegria de poucos, sem que o autor, espécie de evangelista, ganhe o que quer que seja por isso. Mas pelo contrário.
Poderia contar, num artifício retórico, das peripécias que me afastaram das letras nesta última semana. Da pomposa festa junina de anteontem, e da consequente ressaca de que ainda me curo, depois de ter bebido uísque com gim e batida de maracujá, ensinado forró a uma francesa, escorregado no trânsito e quase voado pra debaixo de um carro pra acabar às quatro da manhã comendo macarrão com minha mãe, também chegada da balada, no velho apartamento da rua Cônego Eugênio. Poderia falar da polícia montada, que estava na Vila quando quase fui atropelado, desfilando pomposa e fedegosa pela rotatória da Fidalga, e que hoje passou num trote calmo e ameaçador pelas portas desse restaurante, em cujo subsolo eu vos escrevo... ou ainda, quem sabe?, descrever a quermesse da Igreja do Calvário, com seu animador tão insuportavelmente animado que seus gritos alcançam até mesmo este buraco onde eu tento me isolar, tornando este ingrato ofício de beletrista fajuto ainda mais impossível... e vou parando por aqui. Todas essas histórias, reflexos vagos de um conteúdo humano, seriam assuntos, talvez, para uma ou duas outras crônicas.

E isto não é uma crônica. É só o que deu pra fazer.

Um comentário:

  1. Pedro, muito legal o texto! Li ontem e hoje entrei no blog; bem legal. Vc tem uma pomposidade que eu admiro. Li o penúltimo também, do aumento do valor da passagem, muito bons o ritmo e a ideia. Parabéns. Vou tentar frequentar o blog. Abraço! Davi

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