quarta-feira, 30 de maio de 2012

Com fome e na rua


Olhei para os salgados dispostos na vitrine com um misto de desejo e, por isso, culpa. A verdade é que me apeteciam, menos por atração do que por mera fome, já que tinham aquele aspecto meio idoso, murcho, e até, quem sabe, nocivo à saúde. Mas o que mais pesava na minha indecisão era a lembrança cruel das palavras de conhecidos russos, quando pela primeira vez me apaixonei pelos preços desses quitutes subterrâneos. “Não valem a dor de barriga que você vai ter depois!” se riram, enquanto eu me envergonhava. Claro, tinham trazido comida de casa, que me ofereceram gentilmente, como compensação à destruição de minha inocência. Mas agora eu estava só, com fome, sem comida e com pouquíssimo dinheiro, naquela galeria subterrânea que ligava os dois lados da enorme e galante rua Tverskaia, atravancando a passagem dos moscovitas mal-humorados com a minha indecisão estomacal-monetária.
         Mais uns cinco minutos... o mais difícil era sempre entender o nome das comidas. Nos manuais sempre descrevem, com desenhinhos muito ilustrativos, as palavras básicas para “carne”, “frango” e “peixe”, além de “pão”, “queijo” etc. Mas se a realidade nos complica um pouco que seja a vida com os vocábulos para partes específicas, ou, pior ainda, para nomes já convencionais de certos alimentos, o estudante de russo educado com “Língua russa para todos” constatará melancolicamente a ineficiência de seus estudos, ou ao menos de seu nível, que não chegaram àquele ponto da fluência em que se pode pedir um enroladinho de presunto e queijo, um pão na chapa ou um bife mal passado.
         Acabei seguindo o conselho dos nativos, julgando saberem mais do que eu a esse respeito, continuei para o outro lado da rua, o estômago me cutucando. O jeito seria achar outro lugar para comer, na superfície, por si só marca de qualidade, pelo que entendi. Saí na rua abarrotada de gente, carros, panfletos, anúncios, telões, procurando entre essa massa desnecessária de informações algum indício de comida boa e, claro, barata, requisitos bastante exigentes, quando juntos. Se só um me detivesse, a escolha entre a superfície e o subterrâneo seria clara, mas não era o caso: seguia atento às lojas e vitrines da avenida, procurando alguma porta de restaurante onde se pudesse ler o cardápio. O primeiro que achei ficava entre uma joalheria e uma loja de roupas, e me aproximei, já sem grandes esperanças. A simples vista do preço de uma garrafa de coca-cola de 200ml bastou para me afastar imediatamente dali: coisa de cento e sessenta rublos, ou seja, um pouco mais que dez reais. Por sadismo, resolvi checar minha carteira: tinha exatos cento e cinquenta. Um perfumado casal que chegava pediu, aliás, mandou licença, num típico tom de desprezo moscovita, para entrar, e saí de lá praguejando. Já devia ter percebido a minha inadequação ao ambiente pelas pomposas figuras de gravata que tomavam vinho por detrás do vidro, com suas esposas-modelo, contrastando com minhas roupas amassadas e meu pouco dinheiro no bolso, mas alguma inocência tola me guiava junto à fome.
         Segui caminho, percebendo frustrado e faminto a enorme quantidade de joalherias e lojas de grife, ditando o preço da terra e assim por tabela o dos cardápios dos restaurantes vizinhos, junto com os carros possantes que se engarrafavam por toda a rua, diante das lojas de roupa, dos clubes, dos teatros. Até que avistei uma esquina um pouco mais humilde e quieta, e dobrei-a com pressa, esperançoso, me perdendo entre ruelas um pouco mais residenciais, arborizadas, sem muita pompa.
         A mudança foi tal que poderia até pensar que estava em outra cidade: uma paz tumular dominava as ruas por que passava, contrastando de uma forma quase que esquizofrênica com a histeria mercantil da rua Tverskaia. Pouquíssima gente andava pelas ruas, o movimento praticamente se reduzia a alguns escritórios e a famílias que passeavam com suas crianças ou cachorros. Mas de pequeno comércio, nem sombra. Às margens das avenidas, ainda alguns restaurantes, mas com a mesma faixa de preço. Por enquanto o jeito era fumar, para esquecer a fome e seguir caminho.
         Mais três quadras e acabei em uma rua mais movimentada, no velho Anel Sadóvoe, rua circular que determina o velho centro de Moscou. Lá pelo menos o público é misto, é uma rua geral, não só de roupas de grife, restaurantes de gala e joalherias, mas também comércio de rua, quinquilharias, mendigos, os soviéticos e velhos Ladas se misturam à paisagem caricatural e pós-moderna dos automóveis do ano. E, ao longe, uma estátua de Maiakóvski. Fiquei admirando o poeta, numa pose pomposa que talvez ele mesmo repudiasse, até que lembrei que aquilo não matava fome, era precisos seguir caminho. Do alto, os prédios inclinados sobre as calçadas largas contrastavam uma opressão berrante com a liberdade urbana, contradição que a fome que eu sentia reiterava a todo momento.
         Já tinha desistido dos restaurantes. De achar uma pequena casa de pasto, um botequim, então (ai, saudades), mais nada me iludia. A razão que achei foi que o fim do regime socialista, muito provavelmente, leiloou todas as terras em uma única sentada, impossibilitando o surgimento de um pequeno comércio, deixando tudo na mão de grandes franquias, restaurantes pomposos, redes lucrativas, e empurrando os pequenos vendedores para as passagens subterrâneas, ou para bancas improvisadas em terrenos baldios, trailers, o espaço que restou. Nos edifícios principais, de pedra e respeito, só nomes de proporção, no inglês cirilificado: MacDonalds, Kofekhauz, Chokoladnitsa, Stardogs, Subway...
         Detive-me por um instante no último nome: era a mais razoável das opções. Talvez lá conseguisse comer alguma coisa por 100 rublos, deixando 50 para o caminho de volta para casa. Entrei. A paisagem desses estabelecimentos de franquia, creio, é a mesma em qualquer nação, em qualquer cidade, em qualquer época ou regime, apesar de algumas diferenças linguísticas elementares, vez ou outra alfabéticas, de modo que não cabe me demorar na descrição as mesas quadradas cheias de migalhas, dos painéis luminosos com sanduíches brilhantes, nem mesmo dos casais de namorados comendo coisas com bacon e tomando coca-cola. Até porque não prestei atenção nisso: a fome implicava a imediata interpretação dos preços, que, como se sabe, são vários e multifacetados. Para um sanduíche grande, por exemplo, temos o preço de... não, não, é melhor logo descartar o sanduíche grande, não como discriminação ou repúdio à sua própria natureza – grande -, mas pela proporcionalidade entre essas suas características fundamentais e seu preço correspondente. Vamos à ala dos médios (não há pequenos), começando, claro, pela escolha do pão. Até que um pão integral de aveia não seria má ideia, mais gostoso, nutritivo e... qual! Com cem rublos nenhum homem são pode se dar ao luxo de desfrutar de uma comida saudável. Pão integral, tinha até graça... É preciso partir de premissas populares: pão branco, até sem miolo, se assim for. Ótimo. Agora o recheio, pepino, quem sabe. Uma porção só! Isso. E alface, duas folhas. Tomate? Não, muito obrigado, até gostaria, mas a conta não fecha, vai sem tomate. Pode pôr sal também, se for de graça. Um molho... de que importa o molho antes da carne? É melhor escolher uma logo, é o que dizem, escolha uma carne... como seu estivesse pra escolher carnes...
         Foi nesse momento em que a ilusão se desfez por completo: o recheio mais chinfrim, de bolognesa, ou rosbife, sei lá eu, sairia por cento e cinquenta rublos. De modo que até poderia comer ali, mas teria de voltar para casa a pé, do centro, já anoitecendo, coisa de três horas de caminhada, hipótese que a fome até me fez cogitar por dois ou três segundos, mas logo voltei ao juízo, me desculpei com a atendente e, fugindo da sua justificada raiva, saí tropeçando do restaurante, envergonhado. Sentia que me olhavam com o mesmo desprezo do restaurante grã-fino, apesar de ser uma simples sanduicheria.
         Desiludido e faminto, saí à rua outra vez, agora sem mais ideias que me movessem. Ainda me arrependi um pouco, quem sabe eu não pudesse simplesmente comer o sanduíche sem carne mesmo, e assim saísse mais barato... mas já era tarde. Não acharia nada mais barato do que aquilo, meu dinheiro não dava para nada. E meu cartão não funciona por essas bandas, e, mesmo se funcionasse, poucos são os lugares que aceitam cartão por aqui.
Inconscientemente, fui tomando o caminho da estação de metrô, comeria em casa, talvez, se em casa houvesse o que comer, ou faria compras, devorando um saco de batata chips antes mesmo de sair do mercado, para aí sim ter uma indigestão pouco depois. Mas avistei, do outro lado da rua, uma possível solução: um banco filiado. Foi como se o sol o iluminasse num instante miraculoso. E se... E por que não? Se tirasse dinheiro, imagine, poderia comer onde quisesse, até no mais patrão dos restaurantes de Moscou, comendo cordeiro e bebendo champanhe, se me faltasse juízo, apesar das roupas amassadas por falta de ferro, e do cabelo desgrenhado, por falta de banho. A nota de 1.000 seria o meu terno, e uma boa gorjeta, a gravata. Mais 1.000 e arranjaria uma esposa. Dinheiro não me faltava em conta, estava decidido: atravessar a rua, tirar dinheiro, e comer bem.
         Segui pela escadaria à passagem subterrânea, ainda deslumbrado com as possibilidades do caixa eletrônico. Mas no caminho avistei, novamente, uma barraquinha com salgados, daquele mesmo aspecto velho, surrado, murcho, mas mesmo assim agradável e de bom preço, e com variedade, pelo pouco que entendia dos nomes e das formas de massa folhada. O efeito em mim produzido foi três vezes mais forte do que anteriormente, a fome aumentara, e a epopeia jogava uma nova luz sobre a situação. Atrapalhando o fluxo atribulado do fim do dia, detive-me pensando longamente sobre aqueles salgados, sobre o meu trajeto, sobre a morte da bezerra, até que voltei à terra, ou melhor, ao seu subterrâneo, me dirigi à vendedora atrás da barraca e pedi uma sloika de queijo com cogumelos. A senhorinha redonda retirou o salgado murcho da vitrine, meteu-o no microondas, pegou meus quarenta rublos e depois guardou o requentado num saquinho plástico, desejando-me, num sorriso, bom apetite. Agradecendo, tomei o caminho do metrô, devorando o salgado em algumas poucas e ávidas dentadas.
         E estou vivo até hoje.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O camarada Kóstia


- Konstantin Mikhailov, muito prazer – dirigiu-se a mim a figura séria, num sorriso manso no rosto enorme, os olhos claros, num gesto de sincera e normativa cordialidade. Vestia um terno simples, monocromático, desses que em São Paulo por muito pouco se compram na Teodoro Sampaio, e que na maioria dos serviços de escritório se exigem mundo afora.  De cara me levantei, num típico embaraço, para cumprimentá-lo também.
– Mas pode me chamar de Kóstia, todos me chamam assim.
E logo dispôs-se a me ajudar, depois das apresentações. Eu havia chegado demasiado tarde para aquele curso, embananado que estive com as complicações burocráticas do funcionamento regular da faculdade. O professor a princípio estranhou, mas depois que expliquei minha situação o estranhamento converteu-se em simpatia e até mesmo uma certa honra, por ter em seu curso optativo um estrangeiro, para além da miséria moral de dois únicos alunos. Em seguida recomendou-me ao tal Konstantin, que se sentava num canto, entre papéis e uma pasta de couro preta, uma figura não muito comum, não só pela expressão e jeitos mas principalmente pelo conjunto, o rosto enorme terminando em um cabelo, outrora cortado em escova, já quase hirsuto, mas com traços predominantemente quadrados. A benevolência e a seriedade profunda se destacavam.
Saímos lentamente da sala, ao fim da aula, e Kóstia ia me dando informações básicas sobre como correria o curso, o que já tinha sido passado, essas coisas mais fundamentais. Depois, seguindo-se um breve silêncio, em que seus olhos verdes aguados oscilavam entre o chão e mim mesmo, animou-se ante um tema um pouco menos maçante:
- E que tal, a nossa cidade?
- Bem, sabe... – juntei as ideias e palavras para uma pergunta habitual. – Tirando o frio, ehn, é uma cidade sem dúvida interessante, muito grande, de fato, maior do que eu imaginava. O centro é mesmo muito lindo, mas essa parte aqui já não me agrada muito... muitos carros, muitos anúncios, muito...
- Eu te entendo – cortou num calmo sorriso de lamentação -, tudo aqui agora vai muito mal – olhou para o canto, e logo voltou-se, com a mesma calma. - Se você tivesse vindo há vinte, ou há trinta anos atrás, sua impressão seria completamente outra. Aqui tinha muito verde, era um bairro calmo, meus pais têm algumas fotografias em casa. Mas agora... – suspirou -, tudo está muito confuso, o capitalismo é uma completa desordem, e a cidade nesse tempo cresceu demais... constroem essas coisas horríveis, como este Moskvá-City
- É, isso é verdade... – concordei, lembrando- me com tristeza da monstruosidade que se ergue diante da universidade, um condomínio residencial de fato escabroso, de vinte e tantos andares, daqueles que nós paulistas já nos acostumamos a olhar com indiferença, contrastando ufanamente com os predinhos residenciais à la Stalin. Mas logo emendei numa exclamação positiva:
 – Pelo menos tem esse fantástico sistema de metrô, que liga a cidade inteira!
- Pois então, herança soviética... – suspirou.
Seguiu-se um outro breve silêncio, em que seu olhar percorreu o mesmo trajeto entre mim e o chão. Nessas já tínhamos caminhado até a entrada da faculdade, onde logo acendi um cigarro, oferecendo-lhe, o que ele logo rejeitou. Ficamos ainda um pouco sem falar nada, enquanto eu fumava e olhava para o gigantesco prédio central, construído nos anos finais do stalinismo. E súbito outro tema de seu interesse apareceu.
- Mas então... por que a Rússia? Como nos veem lá no Brasil?
E pôs-se a falar que sua mãe já havia ido para lá, para o Rio, e que contava maravilhas, tinha fotos lindas, principalmente de Copacabana. Logo expliquei que, antes de mais nada, lá no Brasill se sabe que a Rússia é um país excessivamente gelado, algumas pessoas mais velhas associam diretamente com o comunismo e a coisa para mais ou menos por aí. E que eu, de minha parte, já estudava a língua há certo tempo, amava Dostoiévski (como qualquer estrangeiro, fascinado por “Crime e castigo”), e que em geral tinha uma admiração muito grande pela cultura russa, pela literatura em geral, pelo teatro, pela música...
E foi aí os seus olhos brilharam novamente, contrastando com a calma resignada, quase indiferente, com que tinha interagido até então: era sua paixão.
- Você conhece a nossa música? Do que você gosta, por exemplo?
- Bem... conheço muito pouco, na verdade, mas... conheço principalmente compositores anteriores à revolução... gosto muito de Tchaikóvski, de Korsakov, de Glazúnov... – comecei a lista de uma forma demasiado tzarista, ao que logo me emendei. – E também dos soviéticos, claro, embora eu conheça muito pouco, muito pouco mesmo, menos ainda... por exemplo, Chostakóvitch, Prokófiev... e acaba por aí.
- Eu simplesmente amo a música soviética... não só a clássica, mas principalmente a popular. – Disse num tom animado, quase triunfante. - Naquele tempo havia muitas gravações de músicas tradicionais, não só russas, mas de todas as antigas repúblicas socialistas... tenho um disco de músicas da Ásia central, que é maravilhoso... sem contar as músicas soviéticas propriamente ditas... – olhou para o chão novamente, num longo suspiro. - Grandes cantores! grandes gravações!... dependendo do período, claro. Devo confessar que, depois de 1960, há muito pouca coisa que preste. Tanto que na minha coleção só há gravações mais antigas...
- Você coleciona discos de... vinil? – surpreendi-me ante um hábito fantástico, mas um tanto quanto burguês. – Que legal!
- Sim, tenho de várias épocas, e de vários tipos. Uma coleção nada modesta, confesso. E todos em ótimo estado. – respondeu com um sorriso, inclinando levemente a cabeça, satisfeito. Nessas uma típica boneca russa, de salto-alto, óculos escuros, olhos claros, cabelos lisos e vestido hype, do tipo que povoa toda a universidade, veio me pedir um cigarro, sem mais. Depois de pegá-lo, foi se juntar a um grupo de semelhantes, dos muitos que começavam a se aglomerar na porta da faculdade para fumar e matar o tempo.
Daí voltei ao assunto.
- Muito legal... e você sabe bons lugares para se comprar?
- Sim... tem um aqui do lado, perto da Av. Lênin... tem muita coisa. Se quiser, posso te passar o endereço.
- Não acho que ajudaria muito... eu por aqui não conheço nada. Poderíamos ir juntos um dia desses, que tal?
- Eu agora não tenho muito tempo - embaraçou-se -, essa semana está complicada...
- Não, não precisa ser hoje! Nem essa semana... quando der. Eu tenho tempo de sobra. Quando for bom para você, combinamos.
Ele concordou com alegria. Já tínhamos trocado telefones, por conta da organização do curso, e combinamos de ir qualquer dia. A princípio era no próximo domingo, mas, quando nos vimos novamente, a figura grande e gentil veio explicar com pesar que, infelizmente, não poderia. Disse para que não se incomodasse, ficava para uma próxima. E nos encontrávamos com bastante frequência, para além da aula, na sala vazia, onde o velho professor, entre acessos de tosse e papéis amarelados batidos em máquina, contava sobre as crises diplomáticas do começo do século XIX, sobre como conheceu o homem que carregou a pistola de Gavrilo Prinzip, e ainda sobre como eu precisava arranjar uma garota russa, puramente a título de prática e melhoramento da língua – ao que respondia, sorrindo, que estava fazendo o meu melhor. Entre risos e explicações, Kóstia se sentava sempre no mesmo canto, com a mesma pasta, e no mesmo terno, anotando calmamente as informações relevantes, sorrindo de leve aos gracejos do professor. Depois sempre conversávamos, entre longos e típicos silêncios, sobre os temas habituais. Contava-me de algumas viagens, que fizera há muito tempo, sobre como seu pai nascera na Áustria, na zona de ocupação, e como não via os parentes da Sibéria já há muito tempo – “é mais fácil para um moscovita ir à Paris do que à Sibéria”, se lamentava. E perguntava sobre o que eu andava fazendo.
- Ontem fui ao teatro, como sempre... só que dessa vez infelizmente tinha duas garotas bestas que não paravam de falar...
- É por isso que eu não vou ao teatro. Além de caro, o público anda terrível... – sorriu, explicativo. E se pôs a falar sobre a música soviética.
Eu ria, concordando sem mais. Por quê discordar? Não tinha teorias nem contrapartidas ao seu saudosismo, e pelo que observava cotidianamente, nos anúncios abusivos, nos condomínios monstruosos, na juventude estupidificada, como as garotas do teatro, que mexericavam com o Facebook aberto no celular, e na música americanizada sem critérios, de qualidade lastimável, concluí ser preferível, entre os dois extremos, se escorar num passado idealizado a engolir a realidade na bazófia diária do liberalismo triunfante. E a música é sem dúvida a arte que mais se presta a idealizações.
As nossas conversas habituais seguiram esse mesmo ritmo. Às vezes me mandava mensagens, avisando que não haveria aula, devido às constantes crises da saúde do professor, ou que haveria reposição, necessidade de algum material, enfim. Tudo muito cortês, polido, respeitoso. Até que um dia, quando eu entrava  na faculdade para a nossa aula comum, dei com ele na entrada, como que me esperando.
- Olá! – sorri brasileiramente. – O que houve? Não temos aula hoje?
- Não, hoje não... eu te mandei uma mensagem, você não recebeu?
- Não...
E seguiu-se uma conversa habitual, sobre a fonografia soviética, o que de fato me interessa bastante. Depois de silêncios, tragos e comentários, decidimos ir embora, mas nesse dia íamos na mesma direção, como eu precisasse ir para o metrô e ele, para sua casa, que era para aquelas bandas. No meio do caminho a ideia lhe surgiu.
- Sabe do quê? Você... tem tempo agora? Podemos passar na loja de discos, se quiser... pelo menos posso mostrar onde fica, daí depois você pode...
- Sim, claro! – animei-me no ato, lembrando de súbito da proposta esquecida. -Tenho tempo sim, vamos lá!
E fomos, cruzando o mercadinho de frutas, livros e lanches improvisado junto aos prédios de quatro andares de Stálin, perto da estação de metrô, seguindo pela majestosa Av. Lomonóssov, onde a antiga habitação para professores resplandece em seus muitos andares e em sua completa ausência de enfeites, entre dezenas de outros prédios do socialismo real, que agora abrigam restaurantes de luxo, franquias de café de duvidosa qualidade e agências de turismo. A uma certa altura dobramos para dentro da quadra, atravessando um arco, e imediatamente o barulho dos carros e da confusão da rua se apaziguou: estávamos numa praça, no meio dos prédios com fachada para a rua, na típica unidade residencial soviética ainda remanescente, com a sua escola local (provavelmente já privatizada), seu parquinho, seus pequenos serviços, seus soldados e veteranos conversando, em uniforme de gala, em um banco, suas velhinhas resmungando cheias de sacolas, e sua clínica geral, ainda pública, mas Deus sabe com que qualidade de atendimento. No fundo do cenário, entupido de automóveis estacionados a torto e a direito, via-se a placa indicando a loja de discos, num subsolo.
Entramos em silêncio; logo de cara pilhas e pilhas de discos de diversas rotações, tamanhos e qualidades se amontoavam numa desordem desanimadora. Era a sessão de música soviética, que o camarada Kóstia, com meticulosidade e interesse frio, pôs-se a remexer. Já eu, com uma devastadora alergia à poeira e com uma preguiça física e alfabética, percorri levianamente com os olhos todo o amontoado de música, até chegar a uma pequena escadaria, que levava à outra parte da loja. Lá a ordem era completamente outra: os discos de rock eram dispostos com espaço, cuidado e destaque, assim como os de blues, de pop, de metal, etc. Nada disso, obviamente, me interessava, e aliás mesmo os discos soviéticos me eram de pouco proveito, já que estou com a mala abarrotada de livros e os LP’s, além de ocuparem um espaço enorme na bagagem, facilmente se danificariam na longa epopeia que ainda me aguarda no caminho de casa. Acabei me enfurnando num estreito corredor de clássicos, dispostos sem o mesmo esmero dos discos mais populares mas mesmo assim melhores do que o pós-guerra dos discos de música soviética. Chostakóvitch me espiava de um canto, na interpretação da filarmônica de Leningrado, agora São Petersburgo; a figura sóbria de Karajan, descrita em russo e em alemão, também se impunha, e até mesmo uma compilação de discursos de Hitler, temerária raridade, estava pendurada com um preço absurdo. Cheguei a uma sessão de literatura declamada, que me oferecia um interesse maior, e pus-me a procurar com ingenuidade algum disco barato de declamações de Maiakóvski, preferencialmente de seus poemas líricos, sem patéticas exaltações do regime, na sua voz poderosa, calada em 1930. Mas foi em vão: todos os que achei eram lidos por personalidades soviéticas aleatórias, e, claro, de seus poemas mais datados, destacando frases tristonhas como
 “Lênin – viveu; Lênin – vive; Lênin – viverá”
 junto ao selo oficial do partido. Acabei escolhendo um desses por puro interesse antropológico, desistindo da gravação dos clássicos pelo risco da compulsão, e me dirigi ao caixa, onde Kóstia já me esperava, com dois compactos e uma nota de cem rublos.
- Achou alguma coisa?
- Esses poemas do Maiakóvski...
- Ah...- sorriu satisfeito.
- E você?
- Sim, essa compilação de músicas da Moldávia... tenho poucas coisas de lá.
Pagou, e se dirigiu à saída, me esperando. Mas chegou minha vez, e quando descobri o preço de meu LP, quase tive um troço.
- 1.200 rublos?! – perguntei inconformado.
- Ora, é um disco duplo – resmungou a moça, de cabelo azul. – E além disso é uma raridade...
Conheço muito bem essas raridades. “Não, obrigado”, recusei, encostando o LP numa estante qualquer, e me voltando novamente às caixas de compactos soviéticos. Precisava pegar ao menos um, por lembrança e, claro, para não fazer desfeita com o companheiro. Uma olhada rápida e já me decidi: uma gravação de 50 e tantos de dois clássicos absolutos: Kalinka, e Noites de Moscou. Não havia erro: paguei razoáveis sessenta rublos e fui ao encontro de Kóstia.
- Nossa, meio cara essa loja, não?... me inconformei, na saída.
- Meio? – respondeu com espanto. - Meio não, muito! É por isso que eu quase nunca venho aqui. Não vale mais a pena colecionar discos, nem moedas, nem nada... – suspirou. – Tem alguma máfia que controla os preços, sobem a cada mês, virou artigo de luxo, coisa de ricos... felizmente tenho a minha coleção em casa, que herdei de meu avô.
E, voltando ao arco por onde entramos, nos despedimos amigavelmente, quase que para sempre. Ainda nos veríamos na última aula, em que, junto com uma cartinha com seu email e contato, me deu um cd gravado com músicas soviéticas. “De Kóstia – como lembrança”, estava escrito.
- Coloquei as minhas músicas favoritas – disse, explicando. – E tem também uma seleção especial de músicas da Grande Guerra Patriótica. Espero que goste.
Agradeci imensamente, explicando a dificuldade de se achar músicas dessa época sendo estrangeiro e desinformado. Foi nosso último encontro. Ainda consegui arrancar-lhe um abraço, meio rígido e desengonçado, e fui-me embora, pensando na vida. “Da juventude de hoje em dia”, disse uma amiga daqui, “metade bebe, e outra metade estuda. Infelizmente os que bebem não estudam, e a grande maioria dos que estudam não bebe”, apesar dela mesma ser a prova viva de que sim, graças a Deus, há exceções, nem que para confirmar a regra. Não conseguia mais esquecer a melancólica e saudosa sobriedade de Kóstia, nos seus hábitos simples e amarga resignação, e, às vezes, chego mesmo a experimentá-la, ao ouvir o disco que tão gentilmente me gravou, conforme pulo as grotescas marchas militares e observo a paisagem moscovita ao som de algumas canções profundas, meditativas e fortes, em que a tristeza do presente se intercala à esperança do futuro, ou à melancolia do passado, que sempre tortura os vivos como um fantasma, mas que na Rússia convive diariamente com eles, assumindo formas caoticamente banais.

domingo, 13 de maio de 2012

De corvos e livros

Poema histórico

Sento-me às nove horas da noite no parapeito da janela, à título de puro tédio, para olhar o azul do céu e a aberrante claridade de tudo. Ainda resta pelo menos uma hora até que o sol se ponha, coisas do norte, que dão àquele angustiante começo de noite o ar filosófico e calmo das cinco ou seis horas da tarde, fim de um dia normal ao redor do Equador, em que o rápido movimento do sol rumo a outras terras impõe à cabeça inquieta o balanço das experiências do dia, ou da vida, junto com a massa humana que se dirige aos lares, com os comércios que fecham, na circular rota do mundo num tempo plano e aberto.
         Sou envolvido por essas abstrações, como pelo sol que me roça. Adiante meu horizonte se abre em pinça: no fundo da paisagem os poucos arranha-céus de Moscou se impõem discretamente, até que a noite revele as cores de um século fantasma, rosa, azul, berrantes, como um calendário lúdico e cifrado. O panorama monótono de um século XX ajuda-os nessa tarefa, destacando-os nitidamente entre os habituais prédios de seis ou sete andares. Mais perto, a floresta que engatinha ao mês de maio já povoa o azul de verde, o que me acalma. Mas não me esqueço de onde estou: o verde é típico, e a tal da pinça de meu horizonte é o próprio prédio em que moro, estrela vermelha de seu tempo, acinzentada, onde, da multidão uniforme de janelas foscas, se impõem emblemas e signos de um futuro defunto. A foice e o martelo, fantasmagóricos, surgem da pedra rígida como parte do horizonte, distantes, eternos, sólidos, e defuntos. Sós, todavia. Não há bandeira, jornal ou marcha que os acompanhe.
         Resolvo-me pela compaixão a estes emblemas vazios. Ainda hoje ganhei de um amigo, entusiasmado saudosista, um CD de músicas tipicamente soviéticas, e ponho-o para rodar em meu MacIntosh, o cirílico isolado entre colunas brancas, determinadas pelo inglês. Em dois únicos botões a música é capaz de colorir o mundo inteiro, como uma tinta translúcida, ou algum cheiro de tempo, impregnando-se em tudo sem tocar em nada, discreta mas possante como uma certeza clara.
         “A certeza da vitória internacional do socialismo”, vinda de um século que já se pôs, às dez horas da noite de duas décadas atrás. Do pátio se ouve uma conversa em inglês, estrangeiros, como eu, mas numa ânsia de comunicação que põe para trás qualquer objetivo anterior, a língua, a cultura, por exemplo. Se tudo se nivela num único plano, nada disso interessa – no inglês cabe o mundo. Neste MacIntosh, por exemplo, em que escrevo, se lhe junto um cabo, também cabe o mundo, nas mais diversas línguas que este teclado comporta. As canções, por exemplo, vão em russo, sem escândalo. E como elas também em russo vai a paisagem que me envolve, suponho, desde os prédios mais altos, que agora já assumem cores vermelhas e amarelas, para voltar ao rosa e ao azul, até os primeiros postes que se acendem, mesmo os estrangeiros que conversam em inglês, os parapeitos das janelas, os emblemas do regime, e também...
         Junto à parede em que me abrigo, mais para baixo, uma enorme caçamba de lixo acaba de ser reabastecida, multicolorida como os arranha-céus, embora mais polissêmica, na futurista combinação de vegetais e sutiãs, ferro, papelão, plástico, e outras matérias dificilmente identificáveis. Mal o lixeiro termina de esvaziar os sacos, e um enxame de pombos e corvos voa de todos os cantos para a tão esperada novidade, a título de almoço, ou, quem sabe, se entre eles existe tal conceito, pura sociabilidade aviária. Como os arranha-céus, e a bem da verdade como a maioria da população atual, estas aves ignoram o lixeiro que acabou de lhes fornecer alimento e distração, vão direto ao ponto, que o voo lhes permite, sem qualquer prelúdio.
         Mas com as aves outra figura se aproxima, esta humana: em passos lentos e arrastados, num chapeuzinho rosa, que vejo circundado por um longo e surrado sobretudo azul, uma velhinha se dirige humildemente ao lixeiro. Também leva uma enorme sacola, vazia, o que o vento constante confirma, ao balançá-la constantemente, querendo arrastá-la. Depois de pouca conversa o lixeiro se afasta, deixando a velhinha a sós com a caçamba, espantando as aves famintas, que vão para outra caçamba, do lado oposto.
         Daí se segue um preâmbulo: a figura humana, cansada e paciente, projeta um longo olhar pelo entulho a sua frente. Ao contrário das aves, não lhe interessam sacolas, não lhe satisfazem restos apodrecidos de carne ou de legumes, muito menos os trapos imundos e gavetas espalhadas... aliás, em uma destas gavetas seu olhar se demora. Mas está distante, rodeada de outros restos, bem no meio da enorme caçamba, e a velhinha não a alcança, e tampouco pode pela idade ou pela decência simplesmente subir ou voar na caçamba para pegá-la. o lixo com alguma dificuldade – as pernas não ajudam -, e, depois de certificar-se da inutilidade do movimento, busca com avidez algum instrumento que lhe auxilie. O mais próximo no caso era uma caixa de pizza, largada num canto da caçamba, por descaso do lixeiro, que a deixou cair para fora. Sua alegria se nota até mesmo desta janela do sexto andar, através de um pequeno salto, o que suas pernas permitem, e uma exclamação mais alta do que sua voz roufenha normalmente, suponho pelo conjunto, seria capaz. É como se acabasse de descobrir o fogo novamente: a caixa de papelão, segurada transversalmente, estende seu braço até o  incompreensível conteúdo da gaveta, a que remexe com insistência e ímpeto. Até que finalmente esta se vira e revela, esparramada, uma enorme quantidade de livros: vermelhos, verdes, de capa dura, páginas já roídas de traça, ou até em condição perfeita, mas muitos, que a velhinha com dificuldade atrai para si, através da caixa de papelão. O primeiro finalmente se encontra ao alcance das mãos: ela o limpa com a barra do casaco, assopra, folheia rapidamente, e logo guarda na sacola, que deixa de balançar com o vento insistente. Logo os outros livros vindos da gaveta também estão disponíveis, ao alcance das mãos, e, repetindo o mesmo processo com a barra do sobretudo, ela vai colocando um a um na enorme sacola, que agora certamente já pesa, talvez até mais do que ela consiga carregar por muito tempo, até sabe Deus onde ela mora, em que palácio, em que barraco. É inclusive obrigada a deixar mais uns três ou quatro, que ficam lá espalhados, entre um sutiã e muitos sacos coloridos de supermercado, que um pombo logo se apressa, ao perceber que a concorrência se afasta, a bicar com indiferente avidez. Mas logo é obrigado a se afastar novamente, pois a velha rival volta, como se tivesse se esquecido de algo fundamental, com certa pressa, quase angústia. Era a caixa de pizza: abre-a, olha com calma, solta outra exclamação de alegria e a guarda dentro da sacola. Só daí então se afasta de vez, rumo aos portões da pinça que me cerca, onde para por um instante, toma fôlego, observa mesma paisagem verde, e depois segue à esquerda, numa direção que meu panorama, embora grande, não alcança.
         Enquanto isso a marcha da Juventude Comunista trovoa de meu MacIntosh, fazendo companhia aos solitários e desesperados brasões, fundindo-se ao prédio, à caçamba rodeada de aves e ao horizonte. Como a própria música, vitoriosamente anacrônica, agora uma tristeza irônica banha o mundo num silêncio cínico e poliglota. “Na União Soviética, para se conseguir um livro, tinha que esperar um dia inteiro numa fila, isso se se chegasse cedo”, disse certa vez o guarda de meu andar, ao me ver lendo nos corredores. “Agora há tantos que até se jogam no lixo”, suspiro, desligando a música e me projetando tristemente para o horizonte que anoitece. Busco ainda, desesperado, o apoio dos mesmos brasões e símbolos de que tive pena. Mas o fim da música retoma a realidade das coisas, e a resposta à minha angústia vem em plena indiferença, seja dos pássaros, das árvores, dos arrogantes arranha-céus e até mesmo  dos brasões, agora rígidos e distantes, completamente frios, sem qualquer agradecimento à minha compaixão por sua inutilidade.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O verbo e o tempo


Como muitas outras partes ativas da cultura, e, talvez, como a sua parte mais fundamental, a palavra acompanha e encarna as transformações da sociedade que a carrega. Novas experiências exigem novas palavras, e as antiquadas envelhecem consigo os seus termos correspondentes.
         Não me demoro nessas especulações: não sou nenhum filólogo alemão do século XVIII; aliás, esquecendo o tempo: nem sequer filólogo, termo um pouquinho antiquado, mas ainda em uso por aqui, e muito menos alemão, apesar de meu convívio constante com essa gente muito boa, que vem às chusmas aqui para Moscou. Minha observação é inclusive pontual, sendo, já que falamos de forma e de tempo, até compatível com o estilo do anúncio

         “PROCURA-SE FORMA OU PRONOME PARA RELAÇÕES FORMAIS”

         Poder-se-ia colocá-lo n’”A Gazeta da língua russa”, se tal gazeta existisse, e até mesmo organizar um concurso, mostrando os finalistas em rede nacional, como em um programa de calouros, quem sabe até com algum correspondente linguístico à Aracy de Almeida, premiando a melhor ideia com uma viagem à Barcelona, Nova Iorque, Sidney ou até mesmo, hehe, Rio de Janeiro. Um verdadeiro fenômeno nacional, exaltando os ânimos, dividindo opiniões, criando apostas, polêmicas, ponderações. A final certamente pararia o país, aliás, os países em que essa língua é falada. Seria inclusive o jeito ideal de criação da expressão, já que na palavra anda o mundo e tudo isso iria a par e passo com o novo clima da Rússia pós-URSS: consumo massivo, capitalismo oriental, etc. etc.
         Mas ainda não expliquei de quê propriamente tudo isso se trata (o que também vai bem com o estilo dos anúncios), e me apresso a corrigir-me, enquanto há tempo: a língua russa se encontra atualmente sem o fundamental vocativo para estranhos, pessoas de respeito, e outras relações formais ou só não tão íntimas. À título de exemplo, nós no Brasil temos uma penca dessas: amigo, chefe, grande, mano, senhor, senhora, moça, gracinha, gostosa, hum, dependendo do nível da formalidade e da ousadia do falante, claro. O último caso, pondero, é específico ao caso dos “pedreiros”, de alma ou de profissão. E ainda pode ser que uma série de regionalismos ainda coloram os diversos estados do Brasil e mesmo os diversos países em que nossa língua caminha. Mas eu não sei. As formas que coloquei acima são razoavelmente neutras, claro, dependendo da situação. Quem se dirigisse ao chefe dizendo “ei grande, e aquela papelada lá, é pra hoje?” passaria por folgado, da mesma forma que quem perguntasse ao garçom se “não teria o senhor uma garrafa Brahma” passaria por excêntrico. No melhor dos sentidos, todavia, um excêntrico elegante.
         A despeito da informalidade no primeiro caso e do absurdo do segundo: ambos são só a título de introdução, só pra chamar educadamente a atenção do interlocutor. Depois é que vem o “você”, o universal “você” que cobre desde a presidente até o flanelinha da esquina, desde o Sílvio Santos até o manobrista do shopping. Só em Portugal, pelo pouco que sei, o “você” fica para formalidades e o “tu” para situações mais íntimas. No russo há um relativo às situações formais, que é o uso do “Vós”, por mais absurdo que a nós, lusófonos, isso pareça.
         Mas para dirigir-se, para chamar a atenção nesse primeiro momento, bem... aí a língua ficou desbancada. A única forma mais geral ruiu com a União Soviética: era o “camarada”, a forma sem erro, que trazia em si alguma beleza de irmandade ideal pregada pela ideologia. Camaradas eram todos, desde o motorista do ônibus, até o secretário geral do PCUS, desde o professor universitário até o sujeito sentado ao meu lado na parada do bonde, a quem me atrevo a dirigir uma pergunta sobre o itinerário.
         - Camarada, por favor...
         Ele não faz mais que olhar para minha cara com um misto de admiração e ofensa – deve ter lá seus rancores -, e nem se preocupa em ouvir o resto da pergunta; só se levanta e vai para o outro lado da parada. Perplexo, esperei outro sujeito chegar para saber do tal itinerário, dispensei apresentações, quase perdi o bonde e anotei a experiência no caderno. Não foi sem surpresa que depois, em outras ocasiões, vi pessoas usando o termo normalmente, em especial em pequenas frases penduradas nos restaurantes, pedindo para que se levasse a louça ao balcão, não se bebesse de terça-feira, e outras coisas do gênero. Também alguns empregavam o termo em conversas, mas, reparei, eram pessoas já bem mais velhas.
         Gosto da palavra “camarada”, em russo, továrisch. É forte, bonita e enfática. Mas ao mesmo tempo é datada. Agora uso-a somente com amigos, russos ou não, e mesmo assim o efeito é muitas vezes cômico, alguns me perguntam onde foi que aprendi a falar assim, como num comício do partido. Há também outras variantes, que alguns desesperados tentaram resgatar, ainda mais antigas, dos tempos do tzar, que os bolcheviques fizeram questão de abolir e que, hoje em dia, podem soar ainda mais cômicas.
Merece destaque a palavra “cavalheiro”, gospodín, encontrada direto na literatura do século XIX. E bem por isso dizia um jargão soviético, eternizado por Bulgákov, que “os cavalheiros estão todos em Paris”. Na URSS havia só camaradas. Me disseram que há quem voltou a usar o termo, agora que a liberdade, a igualdade e a fraternidade da moeda imperam novamente no país, apesar da evidente velharia da expressão. Quer dizer, evidente agora, porque no primeiro dia, arrastando a minha mala em torno da universidade sob a nevasca de       -30º, no auge do meu desespero me dirigi, atrás de informações, ao primeiro sujeito que vi, com o auxílio deste arquipomposo termo, contando com o resgate massivo ao baú do tzar. Felizmente dessa primeira vez, ao contrário da que narrei anteriormente, não houve nenhuma ofensa ou repulsa, talvez por pena da minha situação, mesmo revelando-se, através da nevasca, que não era cavalheiro coisíssima nenhuma, mas sim uma senhorinha muito bem agasalhada.  E santa, porque não levou a mal a dupla ofensa sobre o sexo e a idade.
         Também tem “senhor” e “senhora”, é verdade, palavras até que parecidas com o português, súdar e sudár’nha, mas carregam aquele gostinho rançoso de sistema feudal, contexto em que eram bem utilizados. E há quem goste, cabe dizer, muitos por aí por lambuza, princípio ou propaganda escrevem tabuletas e anúncios com requintes de grafia prerrevolucionária... já que o comunismo fez por bem reformar (e bastante) até a gramática e a ortografia, claro. Mas mesmo assim esses termos soam mais engraçados do que “camarada”, e não são lá muito difundidos hoje em dia. Até os bolcheviques dispensaram jargões a seu respeito.
Não há nesse caso nenhum relativo ao nosso “senhor” para pessoas mais velhas. São chamados idosos, mas não se deve em lugar nenhum chegar e dizer “ei, idoso”, me parece, nem no Brasil, nem aqui, e quiçá nem na China, não sei ao certo. Já eles, os idosos, aqui podem vir para cima da gente com um tal de “pessoa jovem”, que particularmente não gosto, ou “moça”, que como não sou mulher deixo o juízo para as outras.
         Essas talvez sejam expressões mais gerais, de fato, por relacionarem-se com aspectos mais genericamente humanos, como sexo e idade. Mas o fim do socialismo, assim como fizera antes o seu próprio advento, pôs os termos de fato mais usuais em cheque, o que dá dor de cabeça a todos aqueles que ainda pensam. É sinal de crise da sociedade, sem a menor dúvida, quando você já não sabe como considera o cidadão próximo de você. Compatriota? Só no estrangeiro, diante do outro ou do inimigo. Cidadão? Na província, talvez. Na cidade grande todos se odeiam. Agora pensando bem talvez mesmo em português tal expressão nos falte, apesar de ser bem difundido o termo “senhor” para situações formais, e muitos outros, dependendo do caso. Se voltássemos à proposta do concurso, talvez não só no russo, mas em todas as línguas, eu teria uma sugestão: consumidor. Consumidor Pedro Augusto Pinto, consumidor Fulano, consumidor Siclano, por exemplo. Por quê não? É onde nossos direitos nascem e morrem, é o que nos faz ser gente e indivíduo na sociedade moderna, pílulas, consumir. Sem consumo, ou com pouco, somos reduzidos a raia miuda, mendigos, serviçais, no trato dos quais formalidades se dispensam e muito se permite, às vezes ao extremo da folga e do desrespeito. Pois então deixemos para lá os eufemismos e oficializemos na linguagem a completa miséria da vida real! Em certo sentido a poesia agradece.