sexta-feira, 8 de março de 2013

Assim não tem como


Imagino cá com meus botões quantos escritores, ou pretensos, não deixaram de vez a pena e a tinta por não terem um lugar de trabalho, um cantinho íntimo em que pudessem passear com as ideias por uma folha em branco até enchê-la de letras, sem esbarrarem nos móveis ou serem engolidos por problemas prosaicos. Não que alguém ainda escreva com pena ou até com tinta: foi força de expressão. Se bem que descreva um problema real, ao menos para quem segue o caminho torto das linhas: às vezes, escrever com pena de ganso numa isolada torre de feudo seria melhor do que se meter no emaranhado de fios de uma máquina, num qualquer apartamento de nosso século.
          É que o computador e o Microsoft Word, apesar do inegável brilhantismo das inovações técnicas, têm em contrapartida seus pepinos particulares, para além dos pepinos clássicos; somando-se os dois, tem-se então a monstruosa fila dos engodos que perfazem o ofício de escritor, já por si bastante ingrato. Pois vejam: além do barulho pedregoso da Cardeal Arcoverde, além do cheiro estonteante da janta do vizinho, e além da vontade louca de sair sem mais nem menos e passar a tarde inteira no boteco, de quebra ainda tenho de aturar a impertinência das criações de Bill Gates, que insistem em questionar meu Firewall e mesmo a originalidade de meu produto – o qual, dizem, sendo pirata, comprometerá irreversivelmente a qualidade desta ou de qualquer crônica que através dele se produza.
E pior: a tentação do Facebook, piscando no canto inferior da tela. Isso é que é de matar. Bem sei que deveria, por comprometimento profissional, fechar tudo e me concentrar no que de fato importa. Mas como bom escritor não posso deixar de acusar uma conspiração: a mesa está bamba, já estou com fome e até a geringonça com que escrevo parece querer me atrapalhar – no fundo não passa de uma tela de tentações. E pra quê escrever quando se tem o Facebook? Ninguém escapa à generalizada ansiedade deste século: vivemos na expectativa, como se uma única mensagem pudesse alterar a rotação da terra em nossa quarta-feira – coisa que ainda pago para ver, acessando a minha página três vezes ao dia...
Aflito com a distração que o computador involuntariamente proporciona, cheguei num momento de crise até a pensar numa máquina de escrever - ideia claramente estúpida, mas que no desespero de inúmeras tardes improdutivas ganhou proporções de genialidade inaudita. “E por que não?”, pensava, “não precisa de energia, imprime enquanto escreve, não deve ser caro e é impossível se desconcentrar com babaquices”. Sem contar toda aquela áurea de escritor do século passado, fumando um cigarro num escritório em Copacabana – romantismo besta, mas, em se tratando de um jovem igualmente besta, bastante influente. Fui atrás de algumas lojas, pesquisei detalhes e por fim, obviamente, desisti, ao descobrir sobre fitas, tipos e outros artefatos arqueológicos de difícil aquisição. De fora, mesmo que dominasse esses artigos, fugindo assim das tentações da internet, restariam os problemas antigos, de qualquer maneira, já que não fumo, não vivo nos anos 50 e tampouco em Copacabana. No mundo dos vivos o vizinho continuaria cozinhando, a Cardeal continuaria barulhenta e a minha avó seguiria me interrompendo para falar alguma coisa sobre meias, demolindo inocentemente a frágil arquitetura de ideias que tento organizar numa qualquer narrativa. O que eu precisava mesmo era de alguma coisa móvel, portátil, simples e objetiva, sem firulas ou apetrechos, mas diretamente ligada ao registro do pensamento – a imediata ligação entre ideia e palavra escrita.
Foi depois de mais um dia estéril – corroborado pela ruidosa presença de um eletricista pançudo, na sala em que costumava trabalhar – que finalmente tive uma iluminação: saí pela Teodoro e fui direto à papelaria Bragança. Papel e caneta – pronto! Já devia ter sacado faz tempo. De que mais eu precisava? Senti que um horizonte novo, a um só tempo mais genuíno e ancestral, surgia na minha hipotética carreira, e não pelas coisas em si – não era nada que não tivesse em casa –, mas pelo simbolismo da ação, oficializado com a compra de uma Bic cristal e de um caderno Tamoio. Sem mais, sabendo da impossibilidade de escrever em casa, pela presença espaçosa do eletricista, e pela iminência da hora da novela de minha avó, fui para a Benedito Calixto na fixação de escrever um romance inteiro, ali, naquela única tarde – tamanha era a fé que depositava naquela caneta amarelo-azulada, e naquele caderno com o indiozinho sorridente.
Felizmente havia um banco vazio – nos outros, conversavam uns taxistas, um mendigo cochilava e dois namorados se engalfinhavam. Mas mal prestei atenção: me acomodei, rasguei o plástico do caderno com a ponta da caneta e abri numa página aleatória. Possuído e desorientado, rabisquei numa caligrafia apressada:
“Era uma tarde calma...”
E parei – a mão não queria seguir. Olhei em torno absurdado: a mesma cena de praça. Depois me voltei raivoso contra a linha: como assim, uma tarde calma? Calma para quem, e onde? Não fazia o menor o sentido! Um romance? Era com certeza o começo de romance mais estúpido, pobre e desinteressante que alguém jamais tinha arriscado.
Risquei com raiva aquelas quatro palavras, e me pus a tentar meditar em alguma coisa melhor – tarefa nada simples. Se não era calma, o que seria a tarde? Bem... “Era uma tarde tranquila...”, ah, ajuda muito. Meu Deus... melhor talvez desistir dessa ideia, deixar que evapore completamente da minha cabeça e daí começar do zero, sem compromisso com o cadáver do irreparável. Aflito, voltei a olhar a praça: os namorados tinham sumido; o mendigo terminava seu cochilo, coçando as costas; e os taxistas estavam tão compenetrados na conversa que nem viram a moça que se aproximou do ponto, na intenção de ir a algum lugar, e que ficou lá esperando. A conversa parecia realmente ser séria, densa, e até arriscada, talvez: um deles, com uma barbicha rala e óculos quadrados, olhava para os cantos o tempo todo, e estava claramente nervoso. Já o outro ouvia impassível, olhos no chão, fixos e melancólicos, até que alguma coisa fez com que os dois se perturbassem de maneira espalhafatosa, se ajeitassem no banco e começassem a buscar, inutilmente, disfarçar a conversa. É que chegava um terceiro homem...
E era essa a história, exatamente essa! A conversa sobre o apartamento, a corrida não paga – o atendente de verde–, e daí então finalmente... Segurei a caneta numa dificuldade trêmula, como se segurasse brasa, e não tinta. O desespero pelo achado me excitava, e pressionava a caneta excessivamente contra o papel – a ponta não fluía, se arrastando com o peso de mundos. Já não distinguia direito as linhas – o sol tinha se posto, e nenhuma luz fora acesa. Mas apesar de tudo, eu avançava, lentamente, mas avançava, tentando inutilmente alcançar a cadeia lógica de ideias que escapava num fluxo absurdo, conforme os dedos penavam ainda para pingar os ‘i’s da descrição da barbicha do primeiro taxista. E como que de propósito a caneta, novinha!, insistia em falhar maldosamente, nas curvas dos ‘l’s, nas pontuações... e eu teimando. Já não era possível parar, ainda que não entendesse a minha própria letra, a história continuaria; mesmo que a mão já doesse, por causa da força nervosa que empregava na caligrafia, mesmo assim haveria de...
- Ô irmão, com licença! Tem como cê me dá uma...
- Puta que o pariu! – explodi, chamando a atenção do taxista e de uns três passantes.
O indigente barbudo me olhou assustado, sem entender a desmesura da reação.
-Opa irmão, foi mal aí cara! Na humildade, eu só queria...
- Eu sei, eu sei... – murmurei apressado e confuso, procurando a carteira como que num gesto de desculpas – eu é que... toma, ó, e desculpa mesmo, viu. – e me virei, procurando algum lugar pra enterrar a cabeça.
Sem entender se eu era louco ou idiota, o sujeito vacilou o olhar entre eu e a nota de dez, agradeceu sem muita convicção e tratou de se despachar antes que eu pudesse mudar de ideia, ou ao menos olhar para a nota que tinha dado – coisa que, no nervosismo, não me dei ao trabalho de fazer, e que aliás pouco importava: o taxista tinha sumido, e as minhas anotações se resumiam a duas linhas e meia em que descrevia o banco e a barbicha. O lapso, obviamente, fora momentâneo, e a ideia fugiu com o indigente, para passar a dormir na rua, sem casa e sem dono.
Sem mais, faminto, frustrado e nervoso, larguei aquela praça dos diabos e tomei o caminho de casa, deixando a caneta e tudo. A gente bem que tenta, mas, ora, a vida! Quando não é o Word, é a carga da caneta; se não é minha avó, é o indigente; se não é a fome, é o Facebook. Quando, eu pergunto, quando é que essa profissão teve direito a um lugar no mundo, ao menos com a paz de que carece para organizar as ideias? Poderia continuar me servindo de idealismos, dizendo que há sessenta ou setenta anos atrás o mundo era outro, e que lá sim, o escritor e a sua máquina de escrever eram respeitados e admirados, ainda que através da forma mais simples de reconhecimento, que é o não atrapalhar. Mas já não posso concordar. Há setenta anos havia a guerra, imaginem! – e se escrevia. Há cinquenta faltava água, carne, e gás – e também se escrevia. Há quarenta havia censura... e por aí vai. Por que eu, capeta, não haveria de escrever por causa de uma pergunta impertinente, de uma rede social ou do cheiro de comida? Seria no mínimo uma desculpa esfarrapada, assim como a técnica. Por acaso não devo assumir as estruturas de meu tempo? Feliz ou infelizmente, é impossível voltar aos feudos e aos manuscritos em pena de ganso.
Sem mais, me sento às onze da noite de uma quinta-feira no quarto dos fundos de meu apartamento. Aqui é garantido – ninguém me atrapalhará, pelo menos até as duas, quando os funcionários da padaria ao lado chegarão para o trabalho, e hão de conversar em voz bem alta sobre as anedotas de suas vidas. Coisa que, bem sei, longe de me atrapalhar, me alimenta, mais do que qualquer janta preparada pelo vizinho. E até nisso eu me preparei: na escrivaninha, que tem pouco espaço, mas que me acompanha desde sempre, descansam um pires com bolachas e uma garrafa d’água - além do papel higiênico para rinites, o carregador para suprir a bateria e papel e caneta, para ideias avulsas, que não mereçam a tela. O quarto é módico e inacabado, a cadeira não me serve, a noite avança o meu cansaço, mas mesmo assim eu, abstração verbal, insisto, existindo através dos séculos que tentam me apagar das pedras, me roer dos livros e me deletar dos sites.
Mas falando em sites, alguém ficou de me mandar uma mensagem...

domingo, 3 de março de 2013

Para melhor atendê-los


            “Estamos em reforma para melhor atendê-los”. Difícil topar com uma placa dessas no lugar aonde íamos, sem qualquer suspeita da inconformidade do mundo com os nossos planos. Se se trata de uma urgência, é o caso de praguejar contra os céus ou chutar um cachorro. Mas não era, felizmente, sem que por isso eu deixasse de ficar um tanto aflito, e até desnorteado com a cortina de aço baixada em pleno horário comercial, sem maiores explicações além da tal da placa. Que aliás nem placa era, mas uma simples folha branca, presa mal e porcamente numa fita crepe já gasta, anunciando, numa impressão desbotada, que “Estamos em reforma para melhor atendê-lo”.
         Não fosse a cal polvilhada sobre o chão, ou dois pedreiros encurvados sobre as suas marmitas, e a frase pretensamente simpática poderia soar até mesmo cínica. Estarem em reforma não só não me atendia melhor, como estragava o meu humor e complicava o meu dia: agora ia ter de buscar outra papelaria que trabalhasse com aquele tipo de carga de caneta, coisa difícil. E de fora, pelo que eu lembrava, não tinha nada de errado com a Papelaria Bragança: uma papelaria como qualquer outra. Talvez uma rachadura na parede, o soalho um pouco gasto... nada que estragasse a simples venda de material de escritório. Mas existem invenções de moda, fazer o quê. O jeito era sair Teodoro Sampaio afora atrás de outra papelaria, contrariando, dolorosamente, o costume rígido e prazeroso de resolver aquele problema de uma determinada maneira, única, imutável, dispensando-se da experiência do tempo, como se cada impasse não tivesse mais do que uma única solução na sua existência, predeterminada, precisa, como se o atravessar a vida se tratasse simplesmente de ir colhendo as respostas que aparecessem, conservando-as no frasco dos costumes e fazendo do mesmo jeito até que chegasse o dia de não fazer mais nada.
         Mas tal como a vida é um emaranhado ilógico de soluções e erros desquitados, o emaranhado comercial da Teodoro às 3 da tarde não tinha uma única papelaria que vendesse a carga para caneta que eu precisava. Havia outras, para outras canetas à venda, de diversas formas, mais anatômicas, charmosas, atrativas, de outras cores e cargas, muito melhores que a minha. E, no desespero da saída mais prática, cheguei a cogitar a troca – mas bastou um olhar para o bolso da camisa azul, onde pendia o desbotado e gasto cilindro de tinta, para que me sentisse um canalha por tal pensamento, e saísse da loja correndo. Absurdo, absurdo completo trocá-la: era amiga fiel e caríssima, por razões alheias ao preço, e vinha comigo nos últimos anos pelas linhas tortas e poeticamente pobres que tracei São Paulo afora, desde que a ganhei de meu tio, num aniversário triste e sem balões. Não, não a trocaria nunca: haveria de respirar fundo, andar com uma Bic temporariamente e, até que a reforma da papelaria Bragança terminasse, para assim “melhor me atender”, também eu estaria em reforma, fechado e indisponível, sem explicações além de um papel lacônico. Ainda que, talvez, nunca chegasse a atender ninguém.
         É que, nos últimos meses, acabaram-se os trabalhos, que amainavam o sufoco da volta ao Brasil; os serviços temporários desapareceram; e certas necessidades, tão súbitas quanto ridículas, me fizeram gastar mais do que se deveria em tais situações, em que a instabilidade é iminente e as perspectivas não se deixam vislumbrar. As saídas com que sempre contei para as horas difíceis, como portos distantes ao alcance da mão, na hora do aperto mostraram sua face de farsas patéticas, de vidas que nunca terei, por incapacidade ou nojo. E, não havendo nada de novo sob o sol, o costume, idiota, insistia em bater nas mesmas velhas teclas, nas mesmas portas fechadas nas ruas aparentemente vivas. E batia com raiva, com obstinação doentia, até que o erro esgotasse finalmente todas as suas possibilidades e eu pudesse retornar, animal derrotado, para a casa que já não era minha.
         Nisso veio o ano-novo, quando a TV e a champanhe profetizam a renovação dos tempos, a purificação dos crimes, a inauguração do que é de todos; a cornucópia pelo calendário, enfim. Mas depois da queima de fogos, nas minhas tardes só via os mesmos gestos e propósitos, maquinalmente disseminados, repetidos nos velhos lugares com, no máximo, uma luminosidade nova, a de veraneio paulista. Como sempre, no desespero, me apeguei em vão aos deuses do cinema: o amor, que é coisa pífia; e a viagem, que é redundante.
         Voltei para a solidão de São Paulo na obstinação da mudança, e a primeira coisa que notei, arrumando as coisas para mais outro infindável ano letivo, foi que a carga da caneta de estimação, a única com que escrevo, por neurose pessoal, tinha acabado. E já devia fazer tempo – sinal do abandono em que deixei a literatura nos tempos de crise, talvez por sua patente inutilidade, excessivo desgaste psicológico, esterilidade absoluta. Mas numa vida em que estas formas céticas de preguiça já imperavam, soberanas, há pelo menos um triênio, com um Pão e Circo feito de subversão bem comportada, de boemia confortável, de indignação resmungada, de revolta de cartilha, numa conjuntura tal ao menos a honestidade de se reconhecer inútil, cansado e impotente já assume a sua grandeza ao se voltar contra si mesma, gato acuado, praguejando contra o universo que a tolhe com censuras de mil tipos, inimigas e principalmente amigas, abertas e claramente veladas, e sempre num cinismo completo.
         Determinado, saí para comprar a tal da carga, e dei com a papelaria fechada, com o chão coberto de cal e os dois pedreiros almoçando, como descrito. E depois a busca por novas lojas, as novas canetas, nada que servisse às minhas velhas, mas puras determinações. Gostaria de acabar esta crônica encontrando a carga em outra papelaria, depois, com alguma paciência, ou com a velha reabrindo, anunciando que pretendo ir lá amanhã. Mas as lojas novas são todas absurdas e a reforma segue sua marcha, sem previsão de término, e dificilmente acharei o que busco em algum lugar que desconheço. O que me resta é esperar, num trabalho surdo, e anunciar, como a papelaria, a minha própria e indispensável reforma, feita a papel e caneta Bic, para talvez, quem sabe, melhor atendê-los, irmãos no exílio da vida, ainda que não com material de escritório, mas com presença digna. Não é difícil reparar num imóvel que apodrece: o teto abre, as paredes mofam, o chão se rompe... e por fim desaba. Mas vivemos entre mortos indiferentemente, sem perceber nem mesmo o verme, gordo e feliz, que rasteja em seus sorrisos de bom-dia.