terça-feira, 5 de junho de 2012

А visão


“Mesmo calado o peito resta a cuca
dos bêbados do centro da cidade”
Chico Buarque

Dei para voltar tarde para casa, mais tarde do que o habitual e, inclusive, mais tarde do que o próprio metrô funcionava. Felizmente existia o bonde 39, que ligava o bar tcheco onde me despedira de um amigo, em Tchistye Prudy (“Represas Limpas”, literalmente), à Universidade, me salvando de uma noite fria debaixo da chuva ou, mais real possibilidade, 400 rublos de táxi.
         Mas mesmo na tão cruel quanto irreal possibilidade de não haver táxi: o lugar de onde saíra, o Bulevar de Tchistye Prudy, era palco da prova viva de que se poderia passar a noite lá, debaixo da chuva, caso houvesse uma boa causa. A história toda começou com uma manifestação, ou melhor, com um encontro da oposição, na região central de Moscou, que terminou na clássica “dispersão” por parte da polícia, com ajuda de gás lacrimogêneo etc., levando vários presos e complicando mais ainda a já delicada situação política russa, principalmente, lógico, a da oposição. Logo em seguida à intervenção policial aqueles que não foram presos ou feridos se organizaram em grupos, largaram as bandeiras, cartazes e lencinhos brancos (símbolo da oposição desde as fraudes das eleições legislativas, no fim do ano passado), e começaram a passear, feito perfeitos “cidadãos de bem”, por trajetos aleatórios, em grandes grupos. A polícia os seguia, atenta e sedenta, mas não tinha o menor pretexto para intervir, já que, pílulas, eles só estavam passeando, e de quebra era domingo.
         Daí se deu, primeiramente, a organização, alguns dias depois, de um grandioso e massivo (mais de 10 mil pessoas) passeio, passeio mesmo, sem qualquer cartaz, grito ou bandeira, e quase (curiosamente) sem presença policial, intitulado “Escritores encontram seus leitores”, já que foi organizado pela intelliguentsia, constituída majoritariamente por escritores, aquartelada no jornal digital “Eco de Moscou”. E também um movimento, que pude observar por instantes da janela molhada do bondinho 39, naquela noite fria e chuvosa, chamado “OccupaiBai”: um dos grupos enxotados do encontro andou aleatoriamente até parar em Tchistye Prudy, achou a praça agradável e acabou ficando por lá mesmo, não sei quantos dias, semanas, até. O nome, transliterado do russo, se deve à estátua do poeta cazaquistanês Abai Kunanbaiev, que fica neste lugar, mais à brincadeira com o inglês “bye-bye”. Comparando com as outras ocupações deste tipo, que pipocaram no mundo inteiro no ano passado, essa acabou sendo um tanto heterodoxa: primeiro porque a escolha do lugar foi completamente ao acaso (como o nome confirma), e, depois, pelo simples fato de ser na Rússia e não numa “bela república francesa”, como diria Dostoiévski. Os manifestantes já tiveram a sorte de terem se organizado na primavera (ficar na praça no inverno seria impraticável), mas, para além disso, para evitar as sempre gentis intervenções policiais nenhuma única barraca foi armada, para nem cogitar um pretexto.
         Longe disso: revezavam-se na ocupação do bulevar, uns traziam comida, panos, roupas; guarda-chuvas, quando começou a chover; e ficaram por lá um bom tempo, organizando discussões, tocando violão, marcando presença, enfim. Poderia ter me juntado a eles, se a causa fosse minha ou, ainda, se tivesse um guarda-chuva. Não fosse o bonde ter passado, justo quando me afastava da porta fechada da estação de metrô, e eu teria ido lá pelo menos ver qual é que era. A movimentação era anormal para aquelas horas, principalmente lá para o meio do arborizado bulevar, onde normalmente, de madrugada, só passeiam bêbados zuretas e vândalos com facas.
         Os habitantes normais das noites de Moscou, cabe infelizmente confessar. E era por isso que, ao descer do bonde, ainda a uns 20 minutos de caminhada até o prédio em que moro, ao ver o marasmo da rua escura, fiquei um pouco receoso e acuado. Já não bastasse a chuva, que me maltratava. Não tinha nenhum sinal de vida por ali, só carros, muitos, como sempre, embora menos do que durante o dia. Eram sem dúvida umas duas, três horas da manhã, era normal. No mercado vazio, ratazanas passeavam contentes, imunes à chuva, revirando lixos e restos, mordendo-se raivosamente, de vez em quando. Com nojo, apertei o passo, correndo para atravessar a enorme avenida à minha frente.
         Foi então que vislumbrei do outro lado uma coisa muito mais aterradora do que ratazanas. A princípio era vago, embaçado pela própria chuva: um vulto começou a se mexer da esquina oposta, conforme eu já passava do meio da pista. Tinha um passo pesado, lento, e se escondia no fundo de um capuz. Suspeito e estranho por si só, claro, mas não era o pior: o que me gelou a espinha foi perceber que ele levava, alta e tremulante, uma bandeira russa nas mãos.
         O capuz, a hora e a bandeira se fundiram numa certeza funesta. “Pronto”, quase chorei, “é um neonazi voltando da caça”. Não são poucos por aqui, infelizmente. São até mais do que em boa parte da Europa, por mais ridículo e absurdo que seja, para além do nojo normal, semelhante ideologia numa cultura claramente de fronteira, cuja identidade maior e fundamento do estado é a ponte entre o mundo europeu, o muçulmano e o dito extremo-oriental. Como tal aberração carece de um inimigo local, aqui os culpados são os caucasianos, especialmente, e às vezes até todos os asiáticos, das antigas repúblicas soviéticas ou do próprio sul da Rússia, territórios que foram mantidos por Moscou à força depois do colapso da URSS. Não raro fazem passeatas e manifestações, especialmente nas “datas nacionais”, e alguns também agem espontaneamente, sozinhos ou em grupos, assassinando e espancando a torto e a direito.
         Já comecei a pensar nas minhas desculpas, aliás, nas minhas súplicas, para o que o vocabulário talvez nem bastasse, ainda mais nervoso do jeito que estava ficando. O pior de tudo é que com esse cabelo e barba pretos, olhos escuros, pele morena em comparação à transparência rosada dos eslavos, muitas vezes me tomam por árabe, o que não convinha à situação. E minha professora de russo até me disse, ainda no Brasil, que por aqui achariam que eu sou armeno, o que convinha ainda menos.
         Já não tinha como voltar, o farol fechava, estava no meio da avenida, os carros já aqueciam os motores do outro lado para cruzarem correndo, me atropelando, se preciso. A chuva tinha engrossado, meu Deus, como...? Meu passaporte! Meu passaporte seria a prova de que não sou nenhum caucasiano, pelo contrário, eu... ora, como pelo contrário, desde quando brasileiro é o contrário de caucasiano... pode ser que ser brasileiro seja até pior do que caucasiano, mistura de raças, há quem ache isso repulsivo... não, não, é impossível. Eles não vão se meter com um estrangeiro, ainda mais um estrangeiro digno e culto como eu. Até falo a língua deles...! E de fora não vão querer uma crise diplomática deste porte, imaginem, um brasileiro assassinado na capital da Federação Russa! Seria um escândalo. Não vão encostar um dedo em mim, nenhum dedo! Se não eu vou... eu vou... ora, eu vou o quê?! Vou virar presunto! Se eles quiserem, me trituram, não estão nem aí! O jeito é pedir piedade, passar batido, fingir-se de cego, ou mesmo...
         Procurava o passaporte com desespero, mas não encontrava de jeito nenhum. Tinha deixado em casa, certamente. Já estava chegando do outro lado, as pernas trêmulas, um medo imenso me encharcando com a chuva, que agora, depois de engrossar por uns cinco minutos, começava a desaparecer. Mas, curiosamente, o dito neonazi se movia com uma incoerente indecisão, como se não tivesse rumo ou, ainda, se tivesse um rumo muito incompreensível para um cidadão comum, com aqueles mesmos passos pesados, que, agora claros, revelavam-se bem desengonçados. Aliás parecia muito ocupado, tentando fazer alguma coisa com a bandeira, prendê-la, talvez, num poste, para o que se esticou inteiro, com bastante esforço, e deixou o capuz cair para trás.
         Foi aí que vi do que se tratava. Não era neonazi nenhum, mas, muitíssimo pelo contrário, o bêbado de plantão da estação de metrô “Universidade”. Que inclusive tem jeito de caucasiano, mesmo que o constante estado de embriaguez e da cara sempre inchada não permitam reconhecer exatamente o quê ou de onde ele é, para além de que esteve bebendo vodka em algum lugar por perto. Pelo jeito, havia achado a bandeira caída num canto, comoveu-se com o desrespeito e agora tentava hasteá-la por sobre o poste, o que o estado de porre certamente não facilitava. Para ser sincero nem sei se era possível pendurar qualquer coisa naquele poste, mas naquele instante, para ele, ao menos, isso não só era possível como também imprescindível.
         “Ai meu Deus...”, suspirei, aliviado, andando com muito mais calma, com folga, até, e passando ao seu lado, observando a empreitada patriótica. Até pensei em ajudá-lo, mas, como antes, desisti antes mesmo de mover-me, já que a bandeira não é minha (ainda que fosse...!), e me faltava um guarda-chuva. Se tivesse, o mais provável é que lhe desse de bom grado, como apoio e ajuda à sua causa, mas de minha parte seguiria em frente.
Já mais adiante não pude me conter, e ri. Não só do meu medo frouxo, mas da cena, como um todo. “Eis uma boa representação nacional. Mais do que um neonazi, e que Deus nos livre deles, um bêbado caucasiano, hasteando a bandeira nacional. E que as bandeiras fiquem mesmo com os bêbados e loucos, e os hinos na inspiração de seus grunhidos”.

         Quanto aos manifestantes: no dia seguinte foram expulsos. O pretexto foram reclamações da vizinhança, pacata cidadania de bem, que se disse incomodada com o movimento constante.
         O juiz acatou e mandou a polícia.