sábado, 24 de dezembro de 2011

Festividade


A essas horas em que escrevo o Natal provavelmente já se consumiu em cada mesa, farta ou nem tanto, das famílias dessa cidade, e já todos estão de pança cheia, preguiçosamente conversando sobre qualquer coisa com um parente que há muito não se vê ou, ainda, com um parente que se vê todo dia ou toda semana. Mas o importante mesmo é a barriga cheia. É pelo menos como eu me sinto depois de passar um dia inteiro entregue a petiscos e doces e refrigerante e cerveja etc. etc.
Deus, para quê tanta comida num dia só? Certamente não tem nada a ver com Cristo. Nem nunca teve. Para além do ídolo Papai Noel, a quem louvamos pelo consumo-recompensa pela labuta de outro ano sofrido e feliz, parece que o natal era um feriado pagão em que a Igreja se meteu de abelhuda, para ficar mais pop entre os bárbaros e tudo o mais. Mas o papa não contava com São Nicolau nem com seus aliados os meios de comunicação massivos de difusão da cultura norte-americana, que fizeram o mesmo lance da Igreja, só que fizeram direito, deixando o pobre do Cristo no chinelo. E o papai Noel, hoje, impera soberano sobre os corações brasileiros. Inclusive sobre o meu cansado, ébrio e obeso coração pós-ceia.
Poderia, entre um arroto e outro, dar um viva ao papai Noel. Ele merece. Seria um gesto de honestidade, depois de comer tanto, um gesto coerente com as minhas práticas, apesar de mentalmente abominar aquela roupa vermelha e quente (é verão, cacete!), aquelas musiquinhas infernais que se desdobram em mil propagandas, a decoração da av. Paulista e as milhares de avenidas da Zona Oeste da capital paulista que têm suas árvores apertadas e eletrificadas com pisca-piscas, tortura dos bêbados e de outros sequelados, como eu. Como eu desprezo isso tudo! Desprezo mas mesmo assim acabo de voltar da casa de minha vó, que, velha marrenta e amargurada, raramente se permite arroubos de afetividade, e hoje me deu um beijo sincero e disse me amar. Ao que eu retribui com igual sinceridade, “eu te amo” e tudo o mais que cabe em uma cena de amor familiar. Esse amor... esse amor eu não desprezo, não consigo e nem quero desprezar, quer dizer, só quando aparece televisionado, na cena da novela, por exemplo, quando me tentam impô-lo.
Eis as contradições em que essa vida nos mete! Contradições como a de, agora, por exemplo, estar meio bêbado, farto, meio pra baixo, e com fogo no rabo por uma festa qualquer que me anime e distraia do natal, enquanto lá fora, quero crer, ele crepita nas famílias que o comemoram até a meia-noite com rigor de ritual. Enquanto eu estou aqui, crianças rosadas, e também morenas, abrem seus embrulhos de papel colorido e barato com alegria e talvez até volúpia (se conhecessem essa palavra). Enquanto eu estou aqui, escrevendo, um gordo e suculento Chester ainda é calmamente servido, mastigado e engolido, em meio a conversas agradáveis, no apartamento ao lado, eu posso escutar. Enquanto eu estou aqui, os pisca-piscas de todo o Brasil exercem nervosamente a única função que têm, na única época em que a exercem, pois amanhã mesmo algum desavisado compulsivo pode metê-las novamente em um lixo ou em um armário. E até parece que, de todo o universo, eu sou a única criatura em quem essa substância natalina, de pura e verde alegria, se recusa a se manifestar, se recusa a derramar suas bênçãos, se recusa a aparecer em sua totalidade e plenitude mística, como na televisão ou no apartamento do vizinho. Porque se há, de fato, um Natal, se ele realmente existe e deve existir, ele tem de ser essa substância profunda... ou então ser uma farsa total.
Mas como, farsa? Se na tv todos comemoram, solenes, e se a av. Higienópolis e outras burguesas avenidas simplesmente refulgem ofuscantes com bilhares e bilhares de luzinhas amarelas e azuis? Se consigo ouvir os risos e gritos do apartamento vizinho, se minha barriga está assim tão cheia? Acho mais fácil eu estar simplesmente errado, e ponto.
Eu, e toda minha vida, claro. Ainda lembro da casa de minha vó: a tv estava ligada, como sempre, e sentamos, eu, meu pai e meu avô, junto à mesa de centro. Como sempre os dois falaram sobre negócios, tudo vai mal, tudo legal, fulano fez isso, enfim. Depois eu e meu avô conversamos sobre Getúlio Vargas e sobre o rombo da previdência – igualmente uma conversa nossa de todo santo domingo. Depois comemos... e não havia ninguém especialmente convidado, alguém que eu só visse por causa do natal, algum parente distante, mesmo que nem tão querido, mas exótico, algo que justificasse a enorme quantidade de comida e a existência das luzinhas, piscando na árvore de natal sintética junto ao telefone. Nada disso: eu, meu pai, meus avós, meu tio e minha tia, irmã gêmea de meu pai, e minha prima, mais velha, mas “especial”, isso é, com síndrome de Dawn. Afora minha vó, que havia se vestido com muito cuidado e gosto para a data, minha prima era a única realmente comovida com a data em si. Andava de um lado para outro, ansiosa, soltava frases emocionais sobre o evento e se decepcionou profundamente quando me viu comer bem antes que a meia-noite soasse.
-Pedro, você vai comer agora? Não pode isso.
-Mas por quê, Ju? – perguntei sem levar a sério, colocando um pedaço de leitão no prato.
- Porque não pode. É natal, tem que esperar até a meia-noite         . Antes não pode comer.
- Poxa, se eu fosse esperar até a meia-noite, eu ia era ficar faminto! – ri, e continuei a comer, ignorando o ritual que minha prima, tímida e amorosamente, tentava instituir sem força naquela casa. Mas ninguém a levaria a sério, como normalmente ninguém levava. Comeríamos, cada um no seu turno; conversaríamos sobre as mesmas coisas e, pouco tempo depois, iríamos embora, eu e meu pai, apesar de seu olhar sincero, atrás dos óculos, de tristeza e reprovação. Depois, confesso, senti remorsos, poderia ter sido mais compreensivo, tentado projetar na atmosfera da sala alguma magia. Já fui criança, eu acho, soube ver certa graça mágica nessas comemorações até mesmo depois de descobrir a verdade sobre papai Noel. Mas hoje, entediado, alguns quilos mais gordo e alguns anos mais velho, incapaz de sentir qualquer magia nessa história toda, me contento em tentar entender de onde vem esta mistificação... não me contento com Cristo e tampouco com o capitalismo internacional. Não explicam o beijo de minha avó e nem a expectativa de minha prima, não explicam a alegria que imperou soberana sobre o apartamento do vizinho, agora já calado. Tem outra coisa aí. Mas não entendo nada além da minha dor de barriga e da vontade que sinto, louca, de ir beber antes que a noite acabe, antes que o ano acabe.
Afinal de contas, antes de ser natal, hoje é sábado de qualquer maneira. Espero que as ruas, pelo menos nisso, estejam de acordo comigo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Excerto sobre via pública

        Paro, e passo certo tempo olhando o caminho que sigo. Já são pra lá de 9 horas, mas a Teodoro ainda tem movimento, carros, pedestres, ônibus, e mesmo os prédios ainda dão claros sinais de vida. Vejo por exemplo este residencial de uns 10 andares, com uma galeria embaixo, letreiros “Mazzaro”, que beira o viaduto da Matheus Grow. O saguão da galeria e do elevador, que normalmente serve de café e fila de lotérica, ainda está bem iluminado, e habitado, por algumas famílias e suas crianças bem alimentadas. Realmente bem alimentadas, gordinhas, e felizes, em alguma festinha de fim de ano, presumo.        
         Os risos e as luzes se projetam pela via pública. Noite de verão, faz um calor muito a propósito, o céu está claro e, como sempre em São Paulo, sem estrelas. Alguns helicópteros, talvez, e satélites e aviões, mas sem qualquer lua. Os prédios nessa altura da Teodoro já são esparsos, e a imensidão da capital paulista, em sua infinita massa concreta, se revela no sentido da av. Paulista. É uma bela noite, essa de São Paulo, mesmo que não tenha mar, que não tenha estrelas, mesmo sendo só cidade e barulho, ainda assim alguma calma consegue pôr o nariz para fora na noite de sábado... as ruas já não têm tanto barulho... a Teodoro tem alguma calma, mesmo a festinha infantil já tendo ficado para trás. Sigo adiante, não tenho pressa mas isso não significa necessariamente que tenha tempo. Preciso ir para casa, todos estão indo para algum lugar, principalmente os automóveis.
         Daqui há algumas horas haverá um engarrafamento.
         Mas por enquanto a calma impera, ao menos na rua de minha casa. Talvez seja calma só por ser de minha casa, assim como toda beleza. Mesmo o prédio mais horroroso de todos, com uma galeria de móveis por debaixo, fechada, e com uma péssima vitrine, consegue ganhar qualquer beleza só por ser a marca de minha rua nos céus, na vista pública. E isso porque tem uns 20 andares, é grotesco, meio amarelo, como é possível? E mesmo a Teodoro, imunda, rangendo ainda umas buzinas e sons de carro, como consegue ter ainda algum tipo  de beleza?
         É curioso... é apenas o caminho de casa, e prossigo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

De volta


Meu retorno ao bairro de Pinheiros, ou melhor, meu retorno à rua Cônego Eugênio Leite em seu trecho entre a Teodoro Sampaio e a Cardeal Arcoverde, onde nasci e me criei, foi um verdadeiro fenômeno na freguesia, não só para mim como para todos os amigos, comerciantes e vizinhos que ainda moravam e vivam por lá. Alguns me conheciam desde muito pequeno, e eu fiz questão de tornar minha chegada um evento público: depois de dois anos, quase três, longe do bairro que me fez ser quem eu sou, longe de seus dois viadutos, do cemitério, das floriculturas, dos botecos, de suas ruas planas, dos pinheiros, enfim, e de todos aqueles que dão vida às ruas do bairro, eu estava de volta na minha velha residência, na qual praticamente toda a minha história havia se passado.
    Mal terminei a mudança e já fui pela rua espalhar as boas novas, a começar pelo boteco do seu Medeiros, onde quando pequeno eu pegava tampa de coca-cola pra trocar por cacarecos e comia batata-frita escondido da minha mãe.
- Boa tarde, Márcio! Você não sabe, estou de volta aqui na rua!
    O dono do boteco saiu do fundo, estranhou um pouco, mas respondeu sorrindo.
- Opa, beleza Pedrão? Tá morando aqui de novo é? Bem, seja bem vindo!
    E me ofereceu uma cerveja, que bebi com mais dois ou três sujeitos que frequentavam aquele bar desde que me dou por gente, e que, já meio alcoolizados, também ficaram muito contentes com a minha volta à Cônego Eugênio. Depois foi a vez da floricultura do Renato, em cuja sobreloja cheguei a morar no último ano que passei naquela rua.
- E aí Renato!  Passei pra dar um oi, to de volta aqui na rua!
- E aí meu irmão,  voltaram pra cá no fim das contas? Só não me vai arrebentar a lona da floricultura outra vez... – e riu. Conversamos um pouco e me despedi.
    Depois veio o Cláudio, da banca de revista, o Joaquim da barbearia, o Seu Águido, zelador do prédio, o porteiro de outro prédio, o dono da padaria e o Nélson, o velho Nélson, aposentado que morava há não sei quantos anos numa das casas da frente junto com um cachorro. Todos me receberam com tanta simpatia e carinho, que tive certeza de que aquele era o meu lugar, de onde nunca deveria ter saído na vida.
    Mais para a noite, como nos velhos tempos, ia descer a Cardeal pro trecho dos bares, mais movimentado, só que para aproveitar o meu retorno chamei um amigo que havia se mudado há pouco tempo para a rua, para um prédio vizinho. Quando desceu, logo expliquei que nesta noite nós iríamos comemorar.
- Mas comemorar o quê? – perguntou meio perplexo.
- Como o quê? A minha volta aqui para o bairro, claro!
- Mas... Como assim para o bairro? Você não morava na Cristiano Viana?
- Exatamente.
- Isso é aqui do lado, cacete!
- Acho que você não entende muito dessas coisas – lamentei, com paciência. – Veja, a Cristiano Viana pode até ser aqui do lado,umas quatro quadras para cima, mais precisamente... mas o fato é que, olha só, sabe a Henrique Schaumman?
- Sim, o que é que tem?
- Depois da Henrique Schaumman... não é Pinheiros, é Cerqueira César. Outra história, entende? Outro bairro... é mais caro, não tem tantos botecos, pelo contrário, tem mais lojas de música, edifícios novos... umas lojas de roupa.  E é uma ladeira só, até o Hospital das Clínicas. Até que umas coisas legais, mas... não, não é Pinheiros de jeito nenhum. É Cerqueira César, é um outro bairro.
    E como a comemoração fosse pretexto para que eu pagasse uma rodada, acabou trocando o ceticismo pelo entusiasmo, e bebemos à minha volta até as duas da manhã, quando subimos a Cardeal, margeando o cemitério, de volta à Cônego Eugênio Leite, agora quatro quadras mais perto do que na noite anterior.