terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Velha Arthur


Se existe uma rua que resuma minha breve passagem na terra, certamente não é a Cônego Eugênio Leite, mesmo que eu tenha vivido praticamente toda a minha vida  por lá – essa rua é a Artur. “Rua Arthur de Azevedo, n. 1800 e tanto – m. 1900. Médico”, diz a placa rota e apagada. Mas na minha cabeça foi sempre o debochado escritor maranhense, ainda que pra isso precise tirar o “de” do nome.
Pra começo de conversa, a Artur de Azevedo é uma das três ruas que, atravessando Pinheiros, passam tanto pela Cônego quanto pela Cristiano, resumindo assim, liricamente falando, a soma das ruas em que já vivi. E também porque, ao longo desse breve existir, fui mantendo com suas quadras as relações mais diversas, conforme também se transformava a minha relação com as Coisas em geral: desde a pequenez, em que a via com certo mistério e encantamento, pela sua graça e  por ser a rua de muitos amigos, e também depois, já com certa idade e descobrindo a vida, quando a Artur viria a ser um dos meus lugares mais queridos em toda a cidade. Era a rua perto do Elvis, o bar do Vavá; do Eric Discos, onde filmaram aquele Durval, épico de Pinheiros, e que depois descobrimos ser uma das maiores bicas em matéria de LPs; e por fim tem as suas esquinas – cada esquina linda! –, sempre de quatro casinhas, de no máximo um andar, e repletas de amoreiras e pitangueiras que em outubro estavam invariavelmente carregadas.
Era a minha caminhada na volta da escola, e depois se tornou companheira nas tristezas, de amor e também de bairro. Que dor foi quando demoliram o açougue da esquina e as Ferragens 7 anões, pra dar lugar a uma padaria modernosa! E mesmo assim continuávamos na rua, o Graça-Aranha (sobrinho bisneto, entenda-se) se mudou do Rio e passamos a beber nossa Brahma também por lá, na esquina com a Fradique. Dessa esquina tenho as melhores recordações: lembro-me ainda dos primeiros bancos do barzinho simples, meio que à americana, fechados em mesas para quatro com uns baita janelões... lá fora, as tardes longas de primavera, os sabiás alucinados dos fins de tarde, num tempo em que a cerveja custava três e meio e quando em bar se fumava sim, sim senhor.
Pois o tempo passou. Fui aos pouquinhos deixando de frequentar aquela rua, e por mazela de saudosista mesmo, de não querer ver a coisa toda se acabando. Primeiro foi o Elvis, que fechou, e meio que fechou consigo a rua inteira. Veio aquela padaria, as obras do metrô... e daí ladeirabaixo. Passei a contorná-la, a passar mais pelo caos da Teodoro, a fazer trajetos mais longos e até cheguei a mudar de sapateiro, com medo que o velho – de profissão já meio rara e insalubre – esticasse qualquer dia e eu nunca mais visse os meus sapatos.
Mas dei de passar por lá, esses dias, por alguma razão. A volta de uma amiga minha do estrangeiro de fato colaborou, já que um dos caminhos para sua casa – e justo o que eu fazia, antigamente – passa por lá. Logo no primeiro dia achei graça no passeio, ainda que com a involuntária e dolorosa comparação das formas novas com as que gravamos no afeto, duas peças que já não se encaixam. O caso da padaria foi isso, mesmo já sabendo de antemão, e também o velho bar do Surdo, com seus quadros pretendendo a Café e excelente mesa de sinuca, que foi reformado para virar alguma loja de roupa. Pelo menos as árvores seguiam firmes e robustas, sombreando – sem trocadilhos – os sobrados que sobraram e a entrada dos novos prédios.
Mas chegando pela Fradique meu estômago deu uma volta. Me acostumei com o tempo a pressentir o vazio pelos muros, janelas e telhados, como que premunindo o fim próximo de alguma casa. E lá era bem esse o caso: térreo lacrado, janelas tristemente escancaradas para o além, e murmúrios de pombos fugindo pelos vãos do forro. Nada mais claro. Sem reações, tentei remontar algum passado vago, no cruzamento entre a lembrança e esta esquina. Por segundos me vi mais moço, naquele lugar vazio e triste, com ideias que já não tenho e amigos que já não vejo, numa tarde posta já há muito. Mas a imagem logo sumiu: sem nada a fazer, acendi um cigarro e me pus a caminho.
Passei por lá mais alguns dias, me inteirando das coisas: um prédio, obviamente, e em breve. Mas o que não podia saber era que o tal do prédio ia pegar mais um pedação da pobre Artur, demolindo, além de casas, o velho bilhar Big Small, final de não poucas noites nos anos idos. E de fato: passando lá hoje, pude ver salões sem mesas, sem tacos, sem teto. Só entulho mesmo. Mas daí, ao contrário do esperado, não se repetiu a mesma cena: não consegui lembrar de nada. Já fazia tempo que não ia lá, e talvez nunca tivesse sido algum frequentador apaixonado daquele lugar. Talvez fosse uma noite ou duas e só, mas que acabaram, na memória embaçada feito a placa, ganhando proporções de vida inteira – e de fora o espírito às vezes resolve nos poupar de certas coisas. Sem mais, segui caminhando pela rua Artur abaixo, constatando friamente as permanências, em passos lerdos e observadores. Já não tinha nada para fazer: andei até o fim, senti tédio, e voltei para a Teodoro.
Se existe uma rua que resuma os meus dias, é aquela rua triste, mas que leva nome de escritor debochado se a gente tira o “de” do nome. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

02 de janeiro


          Curioso fenômeno, este da cidade de São Paulo entre dezembro e janeiro! Talvez seja a única época de fato agradável nessa cidade, e seria bom se o seu cartaz Brasil afora fosse feito nessa base. É a única época em que uma avenida como a Rebouças poderá ser encontrada completamente vazia, com um velhinho atravessando lenta e calmamente a quilômetros da faixa, e uns pombos ciscando em pleno corredor de ônibus – coisas que, em qualquer outra época ou dia, seriam manchete sanguinolenta.
            Estamos em uma determinada praça, às duas horas da tarde, na dita época do ano. Onde antes tagarelavam os taxistas, feito um bando de maritacas, há agora somente um bêbado mal-amanhado, no sétimo sono, e por cima, na copa das árvores, um bando de maritacas de fato, alegres e indiferentes às festividades de Natal e Ano Novo. Mais ao lado, nos bancos de cimento – aqueles bancos em que o homem de escritório e o flanelinha, nos quinze minutos que sobram do almoço, fumam o seu cigarro olhando para o nada –, naqueles bancos não tem absolutamente nada, ainda que o observador atento sempre ache um chiclete mascado, uma lata de cerveja ou até mesmo uma carteira cheia, se tiver sorte..
Mas na tal praça nem isso tem. É terça-feira, um dos dias normais da alucinação coletiva do trabalho e do transporte, mas dada a época do ano até mesmo a circulação do ar – fresca, lenta e silenciosa – parece querer nos convencer tratar-se de um domingo, e de algum domingo pós-guerra, tamanha a calmaria pasmacenta que envolve as ruas e as esquinas. É num momento como esse que se poderá identificar a verdadeira natureza da praça, fosse ela alguma espécie de formação geológica sem finalidade urbana: árvores frondosas balouçam seus galhos preguiçosos ao sabor dos ventos, abrigando periquitos, papagaios fugitivos, miríades de pombas e pardais, obviamente, e alguns sacos de lixo pendurados por distração. Tudo sobre o pano azul do céu de veraneio. O que não há de carros, de negócios e de azáfama parece se compensar nestes galhos cheios de pássaros – já que, para eles, é um dia normal, e até mais normal do que nunca, pois em se tratando de pássaros só poderiam ser estranhos o barulho do trânsito e o cheiro de bife com fumaça.
E também a paisagem humana, nessa praça, se compõe em lenta harmonia: é a época em que as crianças finalmente podem voltar às ruas, que lhes pertenceram algum dia, e nada melhor para isso do que um campinho gramado, um parquinho, às vezes uma colina ou um concretado, onde logo se juntam com cacarecos e mirabolações para aprontar as suas, graciosamente. No caso, uns cinco pimpolhos jogam bola mais um ou outro pai, também transformado em criança, pelas circunstâncias de jogo e de fim de ano. E todo o barulho que fazem com seus gritos agudos, que tantas vezes chega ao infernal, se integra naturalmente a esta harmonia universal de férias paulistanas, que o badalar dos sinos na igreja em frente à praça completa, numa bênção inesperada.
Bênção que também abarca o metafísico universo canino: na sua ingenuidade, os cães tornam-se reis daquele espaço vazio, tão cheio de cheiros, de formas, gravetos, lixeiras saborosas, e também outros cães, com novos focinhos e cus e, quem sabe, novas amizades. Dois desses já se aproximam: um é de raça, um Retriver, bobo e peludão. Já a outra é uma vira-lata, sem que com isso perca um pingo sequer em dignidade, que expressa num olhar altivo, e num pelo curto vistoso bem escovado. Sua dignidade é, aliás, tão grande, que beira até o excessivo, conforme esnoba o pobre do Golden que já se dispõe a enormes intimidades.
- Desiste, amigo, ela é castrada. – diz, num sorriso, a loira dona da vira-lata.
Mas o cachorro, que de português entende pouco, segue insistindo, e o seu dono, mesmo versado na língua de Camões, acaba prestando bastante atenção no sorriso da moça, tentando os artifícios humanos que correspondem mais ou menos diretamente às cheiradas e impulsos do cachorro. E obteria muito mais sucesso que o seu amigo canino, não fosse este beirar o desrespeitoso e receber, consequentemente, mordidas e latidos de feminina e justa indignação da sobredita vira-lata, estilhaçando a um só tempo a cantada do sujeito e todo aquele quadro pacífico e dominical descrito acima: voam as pombas e as maritacas, as crianças param seu jogo, curiosas com o rebuliço. Até mesmo o vento para de soprar.
E o bêbado – o bêbado e indigente, que sonhava sabe-se lá com o quê no banco do taxista, finalmente acorda, com aquele barulho. Sua primeira e impulsiva reação é xingar aquilo tudo, ainda que sem muita dicção. A começar pelo salafrário que tinha tentado roubar a sua garrafa de cachaça. Mas ao perceber que aquele já não estava mais lá, e talvez nunca tivesse estado, se acalma e repara no barulho dos cachorros.
- Ê vai latir na casa do...
Mas não conclui a frase – tem coisa muito mais importante. Onde é que está a...
-Ufa! Graças a...
Estava lá, encostada, onde ele tinha escondido. Mais relaxado, esquece dos cachorros, dá um gole e se apronta para começar o dia. E que dia mesmo? Lá importa... foi mais cambaleando pro caminho de sempre, mas, na esquina da praça, esbarra com a desagradável notícia de uma cortina de aço, cobrindo dramaticamente a porta da padoca.
- Como assim?! Mas... como assim!?
Não acredita. Bate umas três, quatro vezes, até chuta. “Ô seu Jair!...” grita, bem articulado. Mas nada do seu Jair – o cearense que costuma dar pão com manteiga e pingado. Tudo fechado, e em silêncio. Mas não cai a ficha logo de cara. Ainda fica esperando uma meia hora, indeciso, meio pasmando, até que finalmente se dá conta e bate, genial, com a mão na testa:
- Eita que deve ser domingo, cacete.
E, maldizendo o sétimo dia da criação, vai-se embora, sentido centro, atrás da padaria do palmeirense que funciona aos feriados.