segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Manhã de natal


            Acordo... Infelizmente acordo. E como se não bastasse tudo o de sempre, acordo com o som insistente de uma serra elétrica, de uma britadeira, não sei ao certo – o estado vegetal a que minha consciência se resume não permite ainda distinções de ordem substancial. Mas o barulho já é conhecido: a obra da rua de trás... ainda que alguma coisa me diga que hoje, especialmente hoje, religiosamente hoje, ela não devesse cantar, junto com as maritacas... enfim, estão trabalhando. Tateio um copo d’água, estico os ossos: inevitável o mergulho na “vida de fato”.
         Na sala um objeto incógnito vem me lembrar de certas razões: é vermelho, bem vermelho, tem dois olhos esbugalhados, usa um gorro, barbudo... é até bem fofinho, rechonchudinho, mas, por trás de aparente simpatia, me observa feito uma esfinge, esperando para me engolir antes que eu consiga engolir o meu café. Decifra-me, hô hô hô, ou... esfrego os olhos ainda perplexo, e coço instintivamente o saco: nada me vem à mente, nada de claro ou de lógico, pelo menos. Só um certo rebuliço estranho, antigo como que abandonado, tenta dar cambalhotas no meu peito e sair pulando. Como não encontra respaldo ou disposição na carapaça barbada que o carrega, se cala, e passa a procurar maquinalmente uma garrafa térmica e um calendário.
         Café servido, olhos na tábua geométrica dos dias: 24 de dezembro... e... diabo, o mundo ainda não acabou. Mas obviamente não é só isso. Isso, aliás, é o de menos. A explicação completa se esboça com a presença de um homem estranho dormindo no corredor, com a programação cacete da Rádio Cultura e com a azáfama nada costumeira de uma senhora de quase oitenta anos. Mais uma geladeira cheia de frutas multicores, carnes com molho, doces em calda, sucos e bebidas espumantes... é claro: é natal. Já sabia: me esqueci de propósito. Lembrar é razão pra crise.
         Mas não adianta: a contenção é rasgada pela rápida visão de uma senhora se esforçando, em cada ruga, músculo e cabelo branco, para enfeitar uma sala morta com quinquilharias que só lhe realçam a morbidez – ainda que o quadro completo, aos olhos de quem mal acordou, seja apenas mais outro império do absurdo. A visão contrasta com a de outros dias, e mais uma vez aquele mesmo rebuliço sai quicando por todos os lados do meu peito, com mais força, mesmo raiva, para logo se acalmar deixando, só, uma ardência como de soluço.
         Desisto. Dou um gole no café, tentando inutilmente pensar em outra coisa. É que não entendo nada... ou melhor, entendo, mas... tudo é estranho. Saber do natal, lógico que eu sabia, como todos... mas nem por isso sua chegada deixou de causar alguma surpresa. A surpresa do contraste. Há tantos anos e estaria eu mesmo cumprindo o papel de alma involuntária do evento, infernizando a minha avó, pendurando uma a uma cada bola vermelha e cintilante sobre os ramos das plantas, com os olhos ainda maiores e mais cintilantes, vidrados ao longo da noite em cadeias de luzinhas pisca-pisca e embrulhos lustrosos de presentes incógnitos. Na ceia, seria o primeiro a sentar, e, no que dependesse de mim, o último a sair.
         E isso sem taxar de cafonice, de consumismo, de capitalismo, de conformismo, etc.: era criança e ponto, bolas. Me lembro dos meus natais em Recife: até daquelas luzes horríveis, com que se tem o mal gosto de enfeitar o pobre do Capibaribe todo santo fim de ano, eu gostava doidamente. O que dizer do resto, então, que era a melhor parte? A família, ideia abstrata, reunida sob um único teto, com uma mesa cheia, numa unidade de espírito...
         - O sonho da propaganda de Panettone! – cuspo para o lado, quase engasgando com o café sem açúcar. Disso, hoje em dia, nada resta: em Recife, meu avô passa por maus bocados, minha mãe acordou e fugiu intencionalmente, minha tia mora no Rio, e com ela meu primo pequeno, meu tio ronca como um mamute, espremido no corredor, enquanto minha vó sustenta sozinha uma frágil ilusão natalina, espalhando pequenos enfeites pintados – trenozinhos, pequenas árvores, animais de pano – sobre móveis abarrotados de pastas, papéis e outros artefatos da vida útil e prosaica. E ela não só a sustenta como, por convicção ou desespero, dispõe dela para tiranizar: acabando de arrumar a sala, invade, sem mais nem menos, a cozinha, onde passa arbitrariamente a remanejar objetos e móveis sem sequer me consultar. Enquanto dava um gole do café, meu prato, com um sanduíche que nem consegui acabar de comer, foi subitamente rebocado para a pia, sendo o lanche despejado na lixeira. Foi eu querer reclamar para que também a xícara fosse dispensada, seguida do copo de suco, da toalha da mesa e enfim por mim mesmo, dispensado tirânica e gentilmente com um empurrãozinho e palavras de avó. Quis me revoltar, mas faltaram-me pretextos – aquele dia, suspirei, era dela. Humilhado e confuso, fugi para a sala.
         Mas lá agora quem ocupava era meu tio, lendo o jornal, no lugar em que costumo me sentar para ler. No fundo gostaria de ouvir alguma música, qualquer coisa de levemente alegre ou melancólico, que me desse forças para lidar com o tempo e com a passagem de outro ano. Mas foi eu me aproximar da vitrola para que o homem, por detrás dos óculos, soltasse politicamente um olhar de reprovação, aprendido nos departamentos da capital, um olhar daqueles que bastam para demitir um gabinete e cancelar páscoa e natal.
         Sem mais, retirei-me para o meu quarto – um depósito de figurinos onde estendo um colchão para dormir. Belo natal! Passaria o dia inteiro deitado, olhando para o teto e pensando na vida. Daquele colchão velho eu confraternizaria, só de raiva, com o universo todo. Cristo deve ter feito coisas desse tipo... mas acho que ele preferia dormir sem colchão. Cristo tinha o mundo inteiro, ou pelo menos todo o Oriente Próximo, e aposto que não diferenciava os dias. Aliás, Cristo talvez nem existisse... mas então o que estamos fazendo? Eu sei: nada. Comemos feito uns porcos e encontramos gente que já nem sabemos se nos amam mesmo, ou só acreditam nos amar. E nós também, é claro, fazemos o belo e hipócrita papel de familiares, pelo menos enquanto ganhamos presentes e não se metem na nossa vida. Mas não tenho a pretensão de dar lições a todo o mundo pretensamente cristão. Vou mais é cuidar da minha.
         E, sem paciência, vesti uma calça e saí sorrateiro pelos fundos, sem que minha vó percebesse a parte de seu natal que ia sendo frustrada, por uma alma rebelde à Santa Ceia. Saí de tão mau jeito e tão às pressas que esqueci de me calçar: no elevador reparei, tanto faz, é natal. Não é a primeira vez que ando descalço por aí. E só ia dar uma volta mesmo, aproveitar as ruas fantasmas, esvaziadas pela confraternização universal de particulares, e o tal do espírito natalino, que deixa a alma mais leve. Talvez, quem sabe, fizesse um irmão, fruto da ocasião de outra data quimérica.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Natal ideal


      "O cronista no telhado", coluna de Pedro Pinto 

      É
 com inexprimível alegria que anuncio, através desta crônica, o mais fantástico natal que esta cidade já viu e provavelmente verá. Chega de solarão no céu azul, em discrepância com o vermelho dos papais-noéis, chega de suadouro e de praia, frustrando as pistas de patinação e a neve sintética: tudo indica que neste fim de ano nosso natal será frio, senão gelado. Pelo menos em São Paulo – e é mais um motivo de orgulho para nos gabarmos para os outros estados, que, como nós, sempre sofreram da esquizofrenia entre os termômetros dos trópicos e o espírito natalino.
         Pode ser que seja arriscado cantar esta vitória agora: o tempo anda tão louco que tudo ainda é possível. Mas minha empolgação não tem limites: finalmente pude vestir pijama e pantufas em pleno dezembro, e o quadro se completa com um LP de George Gershwin – não à toa, a trilha sonora daquele filme do Woody Allen, “Manhattan”. É que sempre fomos a Manhattan subequatorial. Mas agora o clima ajuda. Neste natal, aqueles que têm o luxo de uma lareira poderão se esbaldar, até com aquelas meias vermelhas e felpudas, que vemos nos filmes, cheias de doces, enquanto crianças rosadas aguardam ansiosas o voo internacional do bom velhinho. Mas os que não têm, por escolha ou por fortuna, também têm privilégios:
         A av. Paulista.
         Ah, a Paulista! Meu coração se enche de caudalosa poesia ante a mais simples menção deste nome! Mas é indescritível! Mesmo infinitas resmas de papel branco e puro, ou mármore elevado, ou páginas num blogue da Folha, nada disto bastaria, nem sequer chegaria aos pés do verdadeiro ideal, se por acaso ou ousadia este que vos escreve se propusesse à homérica, à sacrossanta tarefa de descrever em todas as minúcias, em todos os ardis, em todos os mais vívidos e intensos detalhes esta avenida formosa, esta estrela d’alva da capital paulistana, ou melhor!, da nação brasileira! ainda não, do continente americano! Sem sequer mencionar a sua decoração de natal: as luzes borbulhantes do Conjunto Nacional; a teia iluminada nas altas árvores do Trianon; o visgo na pista do meio, do Paraíso à Consolação, com um simpático “Feliz natal” escrito em 58 idiomas diferentes; e, claro, aquele majestoso presépio pós-moderno, cheio de ursos, bonecos de neve, reis magos e outras coisas já tão tropicais quanto a anta e o tamanduá. A Paulista é, sem nenhuma dúvida, o passeio certo para namorados elegantes, para noivos apaixonados, para solteiros atrevidos, solteiras vicejantes, famílias dignas ou ainda mesmo, e falo por mim, para solitários e despretensiosos sonhadores natalinos. Em suas formas e luzes, é plena, e tudo abarca.
          E se sempre foi este monumento de urbanidade, esse charme excepcional, então o que não será este ano, com a temperatura na faixa dos 18 graus? Finalmente, um natal no inverno! Poderemos sair com nossos casacos mais finos, com os chapéus mais chamativos, com os sapatos mais rebuscados. E o melhor de tudo é que a Paulista dispensa pretextos: pode-se ir lá sem absolutamente qualquer razão, e não me refiro somente ao Masp ou à esquina da Al. Santos com a rua da Consolação. Pessoalmente, por rígido costume, vou lá todo fim de ano com bastante frequência, só para bater pernas, flanar, como se diz. Às vezes, lógico, acabo tomando um mate quente, indo ao cinema, empinando pipa, pescando paqueras, comprando um livro, comprando um lanche, comprando...
         Bem, é natural: na Paulista, comprar alguma coisa é tão simples e espontâneo quanto assobiar o “Hoje, é um novo dia, de um novo tempo...”. E é espantoso ver como, nessa época do ano, a avenida vai lentamente se enchendo de turistas de todos os cantos da cidade, do Brasil e do mundo, no mesmo ritmo em que se enche de parafernálias verde-vermelhas. Não é difícil distinguir suas origens: os gringos, lógico, estão sempre gringando, para cima e para baixo, como sempre. Os interioranos, normalmente em família, tiram fotos de tudo, do metrô ao prédio da Gazeta, da rua Augusta à praça Oswaldo Cruz, espantados, e com razão, pela grandeza ostensiva da artéria comercial-natalina. Já os da capital, como eu, passeiam esnobes e indiferentes, olhando com desdém para os caipiras que nunca viram um metrô e que parecem, mais do que nós, envolvidos por alguma aura mágica de natal. Mas no fundo nós também, naquelas calçadas largas, entre edifícios luminosos; entre casais de todos os tipos, numa licenciosidade que não se dão em outras ruas; entre pessoas normalmente bonitas, livrarias elegantes, cinemas cultos, shoppings diversificados, estações de metrô, bares, parques, artistas, enfim: nós também, em meio a tudo isso, estamos realizando alguma espécie de sonho de filme da Sessão da Tarde, e comungamos com todos os seres que passeiam naquelas calçadas.
         Comungamos. E comungamos pelo commércio, que, mais do que qualquer Jesus Cristo, nos une e sociabiliza nesta tão doce época do ano. Todos compram, levam sacolas grandes, das lojas de roupas, elegantes sacolinhas das livrarias, bolsas ecológicas com estampas descoladas. E vivemos, por algumas mágicas semanas, uma espécie aceita de delírio coletivo, que só peca por ainda não ser perfeito. Se dobramos uma rua errada, por exemplo, corremos o risco de cair em algum puteiro, de trombarmos com um mendigo fedido, de nos enfiarmos num bar sujo, com música de má qualidade e gente feia, suada e mal vestida. Nos shoppings, jovens bêbados e exalando hormônios perturbam a paz numa brutalidade abjeta.
          Às vezes nem precisa chegar a tanto: dezembro, normalmente, com o calor infernal que faz, fica difícil sustentar qualquer sonho elevado de plena sociabilidade moderna. Quem é que vive um sonho com 30 graus de inferno, numa avenida mal arborizada, concretada e cheia de carros! Acabamos bebendo cerveja e, quem pode, indo à praia. Mas esse ano, meus caríssimos, tudo indica que haverá a perfeição: a crise aqui não chega, a economia cresce e a temperatura é quase fria.
         Se tivermos sorte, neva.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A idade do cão


         A quem quer que se perguntasse na rua – ao dono do bar, ao sujeito da banca, até ao carroceiro – sobre o seu Borba, se receberia invariavelmente o mesmo sorriso de afeto. Seu Manuel Borba é figura querida, daquelas a quem se quer bem não porque tenha qualquer coisa de especial ou de excepcionalmente cativante, mas simplesmente por ser quem é, e por ser há tanto tempo. Com setenta anos, quarenta só daquela mesma freguesia, o senhor curvado, de olhos claros, elegante à moda antiga, tinha o dom da simpatia. Bastava passar em frente à alguma mesa ou algum comércio, e todos gritavam: “boa-tarde, seu Borba!” e “Boa-tarde, Totonho”
         É que quem não dissesse boa-tarde também ao Totonho caía logo no desafeto do bom velho. O que podia ser estranho para a gente nova na praça: não se via um sem o outro. Pena era que o segundo não fosse assim tão agradável. Totonho era o velho vira-lata do senhorzinho, pelo bom, outrora marrom e branco, mas já mais grisalhos do que o dono, focinho comprido e uns olhos desconfiados de todos que cumprimentavam aquele seu Deus e amigo único, que era o seu Borba. Se não falassem com ele, se punha a latir, ciumento. E mesmo se falassem: o cachorro tinha manias mineiras, nunca aceitava carinhos, ou aceitava só por condescendência, e isso quando tinha comida na jogada.
         Mas para o dono era mais meigo e engraçadinho que filhote, e ainda com toda a sabença e a elegância de um cachorro velho. Na cadeira cativa de seu Borba, quase todas as tardes, seu mútuo carinho e entendimento era de dar inveja aos irmãos e namorados. Quando se sentava, com um copo de café doce, o cachorro pouco a pouco se aninhava junto aos pés do dono, e este, entendendo o sinal, largava de cara os jornais para levantar o bichinho ao colo, e lhe falar mansamente, cheio de maneiras, expressões muito sérias, considerações. E o bicho reagia de tal forma que aquele monólogo com a criatura supostamente muda não poderia ser chamado de outra coisa senão de diálogo. De fato, era como se o cão respondesse. E era o único que tinha acesso às histórias e mirabolações do antigo funcionário do necrotério. Qualquer um que tentasse puxar assunto com o velho – como eu muitas vezes tentei, atrás das suas raras narrativas de velho servidor funerário – não levaria mais que alguns muxoxos, expressões cordiais e o mesmo e irresistível sorriso. Mas com o cachorro era tão falante, que às vezes, no mais profundo silêncio de rua paulistana, parecia partilhar cada intenso e remoto detalhe das suas vivências mais obscuras.
         Arranjara o bicho depois da morte da esposa, quarenta anos de casados. O filho ainda passou algum tempo em sua casa, para dar consolo e arranjar a vida nova, do seu fim de vida. Mas não se davam muito, nunca se deram, e logo seu Borba ficou reduzido à mais terrível das solidões. Como não quisesse sentar e esperar a morte, ele que passou a vida inteira trabalhando com cemitérios, tratou logo de adotar um bichinho. Filhote, Totonho ainda era simpático, mas foi amargando com o tempo, talvez pela vida de aposentado. Depois de quase quinze anos, sua rabugice acabou virando aquela manha penosa de cachorro velho, quase cego, meio manco, que embora tenha sempre sido um bruto com todo mundo acaba angariando simpatia pelo seu estado. Seu Borba não se dobrava: seguia levando o bicho aonde quer que fosse, e, quando até andar devagar se lhe tornou penoso, passou a carregá-lo no colo, como, aliás, já fazia de vez em quando.
         Mas ainda esses dias o encontrei, na banca, indo comprar cigarro, sem o cachorro. E me espantei.
         - Tarde, seu Borba! Mas... cadê o Totonho?
         O velho levantou os olhos tristes da gazeta e sorriu do mesmo jeito, feliz pelo cuidado geral pelo cachorro, e arrasado, certamente, pela ausência daquele seu filho e irmão.
         - Ô, Joaquim... o Totonho, hum, sabe, ficou lá em casa mesmo hoje... não está muito bonzinho, sabe? – e nisso torcia, aflito, a barra do paletó, como se afagasse o bicho ausente.  – Passou a noite inteirinha vomitando... ehn, tive de cuidar dele! Hoje ele vai ficar descansando. Amanhã já está bom. Chamei um veterinário, vai ficar bonzinho sim, bem rápido.
         Condoído na alma, por ver o que era um cão para um senhor de gravata verde e colete azul, tentei animá-lo, chamei para ir tomarmos um café, discutir os jornais. Mas ele, muito polido, recusou, sob o pretexto de ter de ir comprar alguns remédios. E nos despedimos.
         Alguns dias depois o encontrei mais uma vez, já ansioso por novas notícias sobre o sabujo Totonho, por quem passei a me preocupar. Mas a expressão do senhor, já longe do tradicional sorriso de inconteste cortesia, denunciava más notícias. Melhor era nem ter tocado no assunto, pensei, mas já era tarde: o veterinário tinha ido, e, bem, mesmo tendo medicado e feito alguns exames, agora o Totonho tinha dado para não comer.
         - Nem com a carninha que eu fazia pra ele quando ficava de manha – lamentou-se o velho, voz mais trêmula que nunca, marejando os olhos.
         Lembrei-me de passagem semelhante na morte de meu gato e me calei. Ainda fiz a mesma proposta de tomarmos um café, mas ele agradeceu e pretextou um compromisso.
         Quando deu uma semana que ninguém mais via o velho Borba, a rua inteira, ou pelo menos os habitués do bar começamos a suspeitar de uma tragédia. Que o cachorro ia expirar em pouco tempo, ninguém duvidava, mas o receio maior era o pobre do Borba, que podia não aguentar a violência desse tranco. Em caravana, eu, o Márcio, o Tobias e o Pelego resolvemos bater na sua casa pra pelo menos ver se precisava de alguma coisa. A luz – dava pra ver da janela – estava acesa, mas duas três batidas e ninguém respondeu .  Arriscamos a porta mesmo assim, e não estava trancada. Antes estivesse: a morbidez, que nos aguardava, seria assim guardada para Deus e pra si mesma.
         Num canto, sob a janela, no sofá, um Borba muito mais velho do que já era murmurava desacordado umas coisas desconexas, olhos vermelhos como brasas, de dar dó. E o pior: no centro da sala um altarzinho, muito caprichoso em se tratando de improviso, cercado de velinhas até de aniversário, abrigava um retrato do bichinho ainda filhote, junto de uma bola colorida. Ainda tinha uma coleira, um sininho, um tufo de pelos varridos, toda a dispersa reminiscência que o pobre Borba, desesperado e só, conseguira juntar de seu mais novo e falecido amigo.
         Quando nos viu, tentou desabrochar o velho sorriso cortês, murmurando.
         - Que bom que vocês... é a... é a missa... de sétimo-dia...
         E desmontou-se num choro angustiado. Meio perdidos, tentamos atinar o que se passava: no quintal, solene, se erguia agora um túmulo, feito em magistral improviso pelo próprio Borba, nesta semana de tortura. A cozinha abandonada, sem absolutamente nada, denunciava que a greve de fome do falecido cão tinha sido agora adotada pelo dono.
         - Márcio! – gritou o Tobias, se arrependendo depois por se lembrar de estar numa missa, falando baixinho – vai lá buscar um lanche pro seu Borba, vai! O velho está parece que não come!
         E lá fomos nós começar um mutirão de ajuda pro coitado. Só nessa noite, tivemos de alimentá-lo – contra a sua vontade  –, vesti-lo, niná-lo e arrumar a casa. O filho, um desnaturado, nem quis saber, quando conseguimos falar com ele, dizendo que cachorro não é motivo pra chororô, que o pai já era adulto, etc. Quem acabou cuidando dele fomos nós mesmos, revezando alguns serviços, fazendo turnos e rachando despesas. A coisa era tão grave que até tivemos medo de ele fazer uma besteira – era preciso estar de olho. Mas, depois do primeiro mês, de depressão profunda, a coisa foi parecendo ser solucionável. Admitindo a morte, foi se tornando racional, e até apático. Já não precisávamos estar lá o tempo todo, fazendo compras e dando comida, e com mais algum tempo o seu Borba, quarenta anos mais velho no andar e na aparência, voltou finalmente a seus passeios pela rua. Mas aquele sorriso, fonte de nosso afeto, tinha se perdido, junto ao cão, para a eternidade.

         Depois de um tempo, falando justamente sobre a solidão que ele devia viver, agora, sem o cachorro, já sem esposa e longe do filho, tivemos uma ideia brilhante, para coroar nossos esforços pra com aquele homem.
         - A gente devia era comprar um bicho novo pra ele... – sugeriu um Tobias já meio embriagado.
         A ideia foi imediatamente aplaudida. Mas que bicho? Uns queriam outro cachorro – rebati com veemência, alegando cinismo. Substituir o Totonho? O Márcio falou em gato, mas gato é bicho chato, que não liga pro dono. A conclusão unânime acabou sendo um papagaio, até porque o irmão do Pelego tinha um que a esposa queria porque queria que ele desse fim. Daí resolveu-se: é bicho bonito, parado, e que fala. Melhor que cachorro.
         Pouco tempo depois entrava o seu Borba, elegante como sempre, triste, passos lerdos. Cumprimentou a todos e se sentou no seu lugar, com seus jornais. Aproveitando a sua presença, fomos lá fazer consulta.
         - O seu Borba... bom você ter chegado...
         O velho levantou os olhos com melancólica simpatia.
         - Porque a gente aqui, seu Borba, é... a gente tava pensando, que desde que o... o Totonho morreu, sabe?, você não tem mais bicho...
         - Ai a gente queria te dar um outro!
         - Bicho, é? Hum... que bicho? - A simpatia do rosto se convertera em pura interrogação.
         - Um papagaio, seu Borba! – exclamei, triunfante. – É bonito, não tem que passear, e fala. O senhor gosta tanto de falar com bicho...
         Um segundo se passou de completo silêncio, como se o cadáver de Totonho se enroscasse por entre as pernas de seu Borba, lhe lembrando alguma coisa. Então, levantando novamente os olhos para nós, com muita calma, abriu como num milagre aquele mesmo sorriso, tão puro e cordial, que sempre nos cativara: mas, com o canto esquerdo levemente mais puxado, deformando a face inteira com galhofa, formava uma expressão de escancarado cinismo.
         - Bicho...? dá trabalho... e morre cedo. Só não é pior que gente.

         E foi a única história que arranquei de seu Borba sobre os seus tempos de funerária.

A mesa ao lado


Não se trata, de modo algum, de falar da vida alheia. Nem de especulação. Mas quantas vezes, sentados no canto de um bar, esperando um ônibus, na fila do banco, na biblioteca, em qualquer lugar em que não estamos sós, enfim, quantas vezes não nos chega quase por destino um rabo de conversa que no mesmo instante passa a integrar a nossa tarde e a nossa vida? E não porque seja uma novela, ou um barraco – que aliás também são ótimos de se ver –, mas mais por se tratar de um adendo indispensável à nossa própria existência, como a passagem que poderíamos ter vivido, gostaríamos de ter vivido, pelo menos para entender aquela outra pessoa que fala alto no telefone, o senhor baixo aflito com sua pasta de papéis, a criança morena fascinada com algum inseto: em suma, coisas simples que nos integram à humanidade, enquanto nos enfurnamos num livro, nos trancafiamos entre dois fones de ouvido ou simplesmente pensamos na morte da bezerra: o ônibus não vem? Vai chover amanhã? Será que ela vai responder?...
         E é bem nessas horas, por alguma ironia, que a vida na cidade acontece. Atentar para os detalhes, para as migalhas irrisórias de miséria ou de beleza que compõem os quadros mais banais da vida urbana: seria o trabalho ideal do cronista. O dia-a-dia é confuso, e só em alguma sociedade perfeita é que se poderia exigir de todos que atentassem para seus irmãos e irmãs no puro acaso. É preciso, mais do que nunca é preciso que alguém se disponha a coletar esse material disperso, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança: algo de seu conteúdo humano, que torna a vida mais digna de ser vivida, a cidade mais dócil de ser habitada.
         É nesse propósito que, ainda que temporalmente (ou seja, enquanto há tempo), oferecemos ao hipotético leitor deste pseudoperiódico este pequeno contributo, dessufoco  de algumas terças-feiras. E não é à toa: terça é aquele dia em que a semana se impõe – de segunda a semana ainda é vaga –, e a alma perturbada com tudo de prosaico que se compõe em pão, em banco ou em sono acaba procurando involuntariamente algum sentido neste correr de dias, nesta faina infindável e, não raro, vazia. Pois o pior é que é só terça: ainda faltam pelo menos três dias...
         Portanto, leitor hipotético, tome fôlego, pegue um ônibus, mas resista! Não ligue a música, não abra um livro, não se afobe: escute o que se passa a sua volta, qualquer que seja a cidade, a rua, ou a hora do dia. É um convite deste humilde cronista, que tanto já andou de ônibus, de metrô e de trem, que já filou cigarro em muitos pontos de ônibus, já pediu água da pia e já pediu informações, quase dormiu no relento, e que agora, que lhe sobra um tempo, acha digno compartilhar essas histórias, bem como o olhar que as entretece nestas linhas.

         Grato pela atenção
         Joaquim Terêncio

sábado, 17 de novembro de 2012

Fim de tarde

            Chego aos portões do meu prédio, depois de uma volta pelo bairro para fazer banco, comprar um doce, etc., volta que, verdade seja dita, não passa de pretexto para adiar os compromissos terríveis que me esperam, de hora marcada, na enfadonha escrivaninha. Fui tomar um ar, e, tomado, nada resta a fazer além de voltar para casa. Mas junto com o ritual “boa-tarde” que dou ao porteiro, acabo dando com os olhos em duas pequenas criaturinhas branquelas, de voz fininha e vestidas com panos leves e coloridos. Uma, a menininha, segurava com as duas mãos e muito esforço um enorme copo d’água. Depois de beber, quase se afogando, a parte que lhe cabia, passou para seu amigo, um pouco maiorzinho, que o terminou com um pouco menos de dificuldade e enorme prazer, expresso naqueles olhos enormes e translúcidos de criança, na delicada integração de alma e corpo. Logo os dois se puseram de novo a correr, sumindo entre gritos por detrás do prédio, deixando eu, o porteiro e o zelador, de cima da guarita, espiando meio bobos de longe, o sorriso acompanhando a carreira dos pimpolhos.
        E também com certa inveja no peito, cabe confessar. Ainda que velada, desconhecida, dispersa. O porteiro prontamente voltou aos seus afazeres, o zelador muniu-se das correspondências, em sua maioria contas ou malas-diretas, prontas para ferir o dourado da tarde primaveril em que as crianças havia pouco brincavam. Também não tardei em acertar meus ponteiros, tomando o elevador, não sem antes espiar, lamurioso, o dia lindo que fazia no pátio do prédio. Pátio em que eu, outrora, estaria brincando, compenetrado, com amigos que há muito se mudaram deste prédio – e, por consequência, da minha vida –, sem inquietações além da de, em algum momento, subir para lanchar e tomar banho. Infância boa, moderna, é verdade, de criança de apartamento mesmo... cuja consequência natural talvez fosse, inevitavelmente, elevador, barba mal-feita, os compromissos sobre a mesa.
        Morar mais de quinze anos no mesmo lugar – e quinze anos difusos como os que vão dos cinco aos vinte –, para além dos confortos tem também sua triste filosofia. A mudança do espaço se presta à percepção do tempo, e os grandes vendavais domiciliares funcionam como dose saudável de realidade, imprescindível para incorporar a vida adulta e suas novas formas. Sem isso, permanecendo no mesmo lugar enquanto o tempo permanece andando, corre-se o risco de que esta figura um tanto quanto cínica descubra de vez nosso endereço, fazendo visitas quando bem entende, surgindo nos velhos potes de biscoito, na paisagem mudada, nos novos vizinhos, nas crianças do pátio. Um dia, lembramos, eu estava brincando com estas crianças, numa mesma tarde de outubro, no mesmo desvairo de gritos, buzinas da rua e sabiás cantando do cemitério.
         Mas chega o elevador, e me esqueço desses devaneios. Na verdade estamos em novembro, e é segunda-feira. As atribuições se acumularam de uma tal forma que nem escrever eu deveria, tendo na fila só desta semana um projeto de pesquisa por entregar, um seminário por preparar, um dicionário russo-português por revisar, e mais um trabalho louco que inventei de aceitar porque, na boa, é fim de ano e essa vida não está sopa. Não sou mais criança e bem por isso não quero depender para sempre dos meus pais... mas até quando...? Todas as informações se amontoam em papéis avulsos numa escrivaninha empoeirada, num canto escuro de uma sala do nono andar, enquanto as crianças, lá de baixo, abençoadas pelo sol de fim de tarde, gritam frenéticas de alegria e de vida, correndo por todos os lados, chutando bolas, brincando de pegar... ignorando, inocentes, as formalidades que a vida ainda lhes há de enviar, como nas cartas entregues em cada apartamento pelo zelador.
        Depois de tomar um banho, passar um café, ler umas notícias e mandar um e-mail, decido: agora eu preciso me concentrar, são quase seis horas e constato com desânimo a completa improdutividade da tarde. Fui dar uma volta, fiquei olhando as crianças, fiz besteiras em casa, mas não saí do lugar, não fiz nada. Ainda dá tempo: movido pelo desespero, grudo a bunda na cadeira e movo os olhos pelo escaninho. Os livros e cadernos me respondem com desprezo, mas resisto, fuço, cogito. Acho que dá para começar pelo...
        Não concluo o raciocínio: explodem, do pátio, aqueles gritos estridentes de susto lúdico e prazeroso, tão próprio das crianças... e levam consigo as minhas conclusões. Mas tudo bem, respiro fundo e tento retomá-las. Talvez por um plano inicial, um esboço das ideias mais importantes que eu vou procurar no documento, eu consiga traçar um percurso de investigação dos conceitos em jogo, de modo a...
        De modo a nada: agora é um choro angustiante que começou de lá debaixo. Algum dos pimpolhos certamente levou um tombo. Se fosse meu filho, ou, ainda, se eu estivesse lá com eles, é provável que relevasse o incômodo causado num olhar amoroso e paternal. Mas não era o caso: eu começava a perder a paciência, angustiado, na verdade, pela minha própria e interna confusão, mas ansioso por projetá-la no que quer que fosse. Será que não entendiam, a quantidade de coisas que eu tinha p’ra fazer?
Bem, esperaria. E enfim o silêncio se fez de novo. Ainda deixei alguns minutos passarem, para conferir se seria duradouro. Parecia ser. Só daí então respirei fundo, meti meu nariz no meio dos papéis, segurei minha caneta com decidida firmeza e retomei minhas anotações. Tardias anotações! P’ra quê, meu deus, deixar tudo assim para a última hora... tinha que correr...  a vida definitivamente não dá tempo... mas enfim, olha só, aqui parece que posso aproveitar esse diálogo do documento com o...
        - Força lazer, transformar a pedra! Tchfuuuuuuuuuuu! Pá! Pum! Hiaaaaaaaa!
        Berrou a plenos e pequenos pulmões o pimpolho lá do térreo, esmigalhando não sei se a pedra, mas certamente a minha as minhas ideias. Agora já não dava mais, era incômodo e desrespeitoso! Essas crianças precisam de limite, não é todo mundo que pode passar a tarde de bobeira assim não, tenho muita coisa pra fazer. Levantei-me decidido rumo ao interfone, compensando a falta de concentração para o trabalho na determinação de descontar as frustrações nos outros. Mas quando cheguei na cozinha, comecei a ouvir um choro alto, de mais de uma criança, acompanhado agora por broncas de uma voz grossa de mulher, provavelmente a babá. Alguma eles deviam ter aprontado, e agora levavam um esporro. Fiquei atentando para o desfecho: dentro em pouco imperava o silêncio. Provavelmente tinham estragado a brincadeira de algum jeito, e receberam um castigo.
        Não tinha mais do que reclamar. Olhei com desprezo para a escrivaninha, no canto da sala, e suspirei, entre saudoso e arrependido. Aquela escrivaninha também vinha comigo desde a infância, tinha sido até do meu pai. E sempre estudei nela, nos mais vários tempos de minha curta vida. O problema era a tarde: aquela era uma tarde perdida, desencontrada.... e muito linda. O sol alaranjado deslizava manso pelas casas e árvores da rua Cônego Eugênio. Em algum lugar um sabiá cantava, alucinado, firme.
Não se deve fugir dos fatos: eu não tinha como trabalhar. O melhor mesmo, concluí, vencido e contente, era pôr uma bermuda e descer para tomar um sol, dar uma volta, descansar. Talvez até tomar um banho de piscina, compensando a infância passada, e o presente confuso, num daqueles momentos sintéticos, de fusão do corpo a água, quando se sabe que a vida não é nada além do que ela é, e nada se quer além de tudo o que temos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A lei de todos


“E o bonde que parece uma carroça:
Coisa nossa, muito nossa"
Noel Rosa

Entrei no ônibus e, por sorte ou malandragem, consegui me sentar: era um daqueles dias em que a gente sabe que merece sentar, e de um tal modo que, quando conseguimos, não ficamos com aquele típico remorso pelos que vão de pé e nos olham, invejosos. Mesmo sabendo que o ônibus está cheinho e que aquela moça ali, ares de cansada e cheia de sacolas, talvez sinta tanto quanto você que merece se sentar.
         O dia de fato tinha sido difícil: estava exausto e irritadiço. Já nem ligava tanto para o cheiro de suor, ou para as cotoveladas do sujeito ao meu lado, mas estava de um jeito que qualquer barulho me incomodava: conversa, porta se abrindo, celular. Até certo nível ainda relevava. Mas o destino conspira contra os que se irritam facilmente.
Aconteceu que aquela moça, de cujo lugar me apossei, sem mais opções, foi se escorar onde pôde, mais ou menos perto do cobrador que cochilava, distraído. E foi mal ela chegar lá que ele, sabe o diabo o que lhe deu!, de pronto acordou, viu a cabrocha e  abestalhou-se, tentando puxar assunto ou, ao menos, travar contato. Mas ela não estava nem aí pra nada. O doido ainda tentou milhares de artifícios, desdobrou-se: nenhum tirava ela daquele denso estado de contemplação, quase vegetal, que é costume sabido  das mulheres belas quando ao uso do transporte público.
A coisa parecia mesmo sem solução... até que ele tentou seu último recurso, do mais ousado romantismo: gritou bem alto ao motorista, acordando a mim e a meu vizinho, e, dentro em pouco, de cada canto daquela lata velha, começou a tocar um bolero-brega pavoroso, de um sentimentalismo de ano-novo na Globo. Aliás, antes fosse: aquilo era pior do que a velhice do Roberto Carlos. Mas foi tudo dedicado ao amor, imaginem. Houve a princípio certo estranhamento geral, mas ninguém sequer esboçou reação. No fundo no fundo o mais provável era que todos, principalmente a mulher, estivessem adorando. Todos menos eu, que, já vindo de um mau dia, pressentia os sinais de uma longa tortura, já que tinha que ir quase até o ponto final.
De início não quis acreditar, mas logo me convenci: era real, e não ia parar. E me levantei num impulso pra reclamar daquela folga. “Não sabe ler não, meu amigo?” Diria. O jornalzinho informativo da SPTrans, colado na frente de meu banco, trazia justamente esta lição, muito bem desenhada, entre desenhos de pintos feitos à caneta: não se deve ouvir música alta no busão, de modo a garantir a todos os passageiros um pouco menos de infelicidade. Ia dizer isso mesmo, ou quase isso, ele ia ver. Mas quando vi o cobrador de paquera séria com aquela moça, quase dançando, entendi e abrandei involuntariamente as sete pedras que tinha na mão. Não seria assim tão filho-da-puta: se fosse por causa da moça, ah, mulher!, tudo bem, vá lá, esperaria. Mas só até essa história se resolver.
Altruísmo que, como qualquer boa intenção, obviamente não seria recompensado ou sequer reconhecido. Deram uns dois pontos e, olhando pelo espelho da frente, vi que a moça descia, não sem antes deixar com o cobrador um papelzinho, supõe-se que com seu telefone, verdadeiro ou falso. Aliviado, com princípios de dor de cabeça, suspirei, alegre pelo êxito do cobrador e, ainda mais, pelo que supus ser o fim do suplício da música na lotação. Mas não passaria de vã esperança: o cobrador, parece, tinha achado a própria ideia muito boa (afinal, quem não gosta de música?), e resolveu no fim das contas deixar o coletivo assim mesmo, animado agora sabe o demo com que sertanejo dos infernos, entremeado por barulhentas propagandas de rádio. E até então ninguém tinha reclamado: pelo jeito eu era o único que não estava feliz. Mas não tinha como me constranger. Estava nos meus direitos, e aquilo estava realmente me incomodando. Por fim deixei a vergonha de lado e me levantei pra reclamar.
- Ô amigo – comecei, cordial, mas sério – você me desculpa, mas não dá pra ouvir a sua música o tempo todo não. Nem pode ouvir música alta assim no ônibus, você sabe disso.
O homem se virou  com certo desdém, talvez por ter acabado de se provar um gostosão, talvez pela alta incumbência dos trabalhos de cobrador. A autoridade suprema de que era dotado, pelo visto, tinha lhe subido à cabeça, e resolveu me tratar como eu fosse um trombadinha sujinho pedindo carona, ou um bóy pagando a passagem com uma nota de cem contos.
- Ué, não gosta não, é, doutor? – riu de canto, sem mal me olhar. - Dorme aí. Ou põe um fone, só não enche o saco.
Cachorro! E eu ainda tinha tentado ser gentil.
- Não tenho fone não, bróder. E quem tá enchendo o saco é você. Você está errado. Não sabe ler a placa ali em cima não? Vai, desliga aí, cara, numa boa, por favor.
E fiquei olhando pra ele com uma cara séria, fixa, sem nenhum signo de agressão mas também sem qualquer paciência. Ele até bancou por uns segundos, achei até que fosse mandar um “você sabe com quem está falando”, mas a saída foi ainda melhor:
- Aê gente! – gritou pra condução inteira. O som aí tá incomodando alguém? Porque o velho aqui  - e me apontou de maneira bem indiscreta – tá enchendo o saco pra desligar.
A princípio ninguém falou nada, naquele silêncio típico, em que todos fingem, de um jeito ensaiado, que a história não é com eles. Mas logo uma moça cheia de tralhas  tomou coragem e respondeu, num sotaque forte.
- Não, podexá! Tá muito bom, esse rapaz aí é que é chato.
E depois um senhor respeitável
- Não tira não, que tá bom!
E mais muitos se manifestaram em prol do trolha do cobrador. Até tentei redarguir com a legislação, mostrando a placa no alto do ônibus, junto com a de “proibido fumar”, argumentei. Mas quem queria me escutar? Podia até ser linchado. E antes que o cobrador pudesse olhar de novo na minha cara, selando sua aclamação democrática na minha mais completa humilhação, já tinha voltado de fininho para o  meu canto, profundamente aborrecido. Quanta injustiça num ônibus! Aquilo não podia passar assim... Agora era questão até de honra... não, não de honra, mas de justiça, sem dúvida. Ele estava errado, ninguém era obrigado a ficar ouvindo música nenhuma, isso é um direito! Nem que fosse Chico Buarque, vai saber quem ali não estava cansado, e sem vontade alguma de ouvir música, como eu mesmo estava, mas que não teve ânimo pra se manifestar? E ao mesmo tempo a plaquinha ali em cima, tão óbvia quanto ignorada, do lado do proibido fumar... miséria!
O ônibus parou em outro ponto. Mas ainda faltavam uns dez.... a música não só não parava como ia ficando cada vez pior. Agora eu reconhecia: era Ivete Sangalo. Cogitei a hipótese de pular pela janela, mas desisti: não ia me humilhar a esse ponto, e de qualquer forma o ônibus já tinha partido, levando um senhor que, antes de entrar, apagou o seu cigarro e soltou, por acaso ou de propósito, a última baforada já dentro do ônibus. As reações, claro, não poderiam ser mais previsíveis: mulheres tossiram, numa falsidade perfeita, alguns reclamaram, houve rebuliço. Mas me deu a ideia que faltava. Olhei pra a plaquinha no alto mais uma vez, certificando-me da coerência de meu absurdo, e, sem pensar mais para não desistir, saquei lesto do bolso um cigarro e um isqueiro.
- Com a sua licença – pedi, por mera polidez, e o acendi numa longa tragada, que fiz questão de arremessar, na expiração, para o lado mais próximo do cobrador e da concentração do seu partido. Meu vizinho na verdade estava dormindo e não percebia nada, só se lhe pusesse fogo. Mas as primeiras reações não tardaram a aparecer.
- Eita que cheiro é esse de cigarro?
- Nossa senhora que cinzeiro!
- É o rapaz ali ó! Ô meu jovem, não pode fumar aqui não, cê não sabe?!
- Ah é? Nem ouvir música alta, e vocês tão ouvindo – retruquei numa tragada hollywoodiana, realizando, no fundo, junto com a vingança, o sonho de fumar num ônibus. Mas as reações pioravam, as pessoas começavam a se irritar. Só o velho recém-chegado que, surpreso, julgou se tratar de uma condução liberal e resolveu também acender seu próprio cigarro, de palha, bastante fedido. Um outro, de um canto, também entrou na nossa e sacou até um cachimbo.
Estavam formados os partidos. E o antifumante já espumava.
- Moço apaga esse negócio! Não sou obrigada a ficar cheirando a fumaça dos outros. Isso mata!
- Também não sou obrigado a ouvir essa música aí não, que emburrece. Tá escrito lá em cima, ó! Proíbido fumar e ouvir música alta. Só que quando eu reclamei só faltaram me bater. Agora aguentem.
E dei outra baforada. No fundo estava me divertindo.
- Só que acontece que a música não incomoda ninguém. Nem faz mal! – virou-se uma outra mulher, se achando esperta.  – Cigarro mata e é nojento! – veio na intenção de tirar meu cigarro de mim.
- Nojento?! Nojenta é essa música aí de vocês, puta que o pariu, viu?! E tira a mão daí, dona! Me deixa! – Retruquei, e logo fui aplaudido pelo velho fumante, que assistia, entre tragadas, toda a cena, animadíssimo. Só que nisso a frágil brasa do seu palheiro acabou caindo, e justo no vestido da moça que se sentava ao seu lado. Depois de queimar o tecido, queimou foi a própria perna da moça, que fez um escândalo e começou a dar bolsadas no pobre do velho, que tentava se esquivar e ao mesmo tempo apagar o braseiro que se formava no pano. Nisso o cobrador, que se fazia de desentendido, teve finalmente de dar as caras na parte sublevada da condução: mas já não era só eu quem fumava, mas uns quatro ou cinco, e ele não sabia por quem começar. Até cheiro de maconha já rolava, e um casal pomposo gritava absurdado contra aquele vandalismo.
Em pouco a coisa se tornou uma festa, com direito à música alta, maconha livre e o diabo à quatro, e já ninguém conseguia se entender. A moça do vestido queimado agora batia até no cobrador, porque ele, tentando apagar o vestido em brasa, acabou passando a mão na sua coxa. Em volta do baseado já tinha se esboçado uma roda. Por fim o próprio motorista, um negão de dois metros de altura, acabou perdendo a paciência e encostou o ônibus na rua, logo levantando com um cabo de vassoura para acabar com aquela, nos seus termos, “putaria do caralho”. Sentindo o perigo, os adesistas do partido da fumaça rapidamente esconderam as provas do crime, mas eu e o velho, porque envolvidos cada um em uma pendenga e sentados ambos na parte da frente, não tivemos a mesma sorte. E sobrou pra gente.
- Que porra é essa aqui?! E essa cigarreira do caralho?! – gritou o motorista meia-noite.
- É esse moleque aí, ó! – se aproveitou o cobrador, me apontando, vingativo.
- E esse velho safado! – gritou a mulher do vestido.
Sem a menor vontade de ouvir explicações, incentivado pelo clamor popular das indignadas com o cigarro e pelo maldoso cobrador, o meia-noite tirou cada um de seu canto, pelos respectivos colarinhos, com toda a delicadeza que a situação exigia, e nos arremessou em dois tempos para fora do ônibus. Por pouco não dei com a cara no chão, não fosse ter esbarrado no velho, posto para fora antes. Depois tacaram minhas coisas pela janela, e o ônibus partiu, deixando xingamentos. Fiquei, no fundo, até bem feliz de terem devolvido minha bolsa e não terem tacado nenhum tijolo na gente. Mas que tinha sido uma injustiça tremenda...! Ah, isso não! No fundo, sabia, estava certo. Aliás, estávamos! Mas quem pra fazer a lei...
- Peço desculpas, senhor... não devia ter entrado na minha...
- Não tem nada não, meu filho. – respondeu o velho, fanho, limpando a roupa e se certificando da frágil integridade física. - No fundo foi até engraçado.
- Ah é...  mas que filhos da puta, ein? Eu até, nossa, devia era... ufa! Bem, deixa pra lá, paciência. – silêncio. Cada um acendeu um cigarro. – Só ficamos sem condução...
- Ah, mas se resolve. Aonde você vai?
Descíamos no mesmo ponto, e acabamos rachando um taxi. Transporte que, além de mais cômodo, no caso não tinha rádio. E o motorista, que era fumante, de quebra ainda  nos deu aquela brecha.

domingo, 28 de outubro de 2012

O velho e a urna


         Voltei da seção eleitoral para minha casa vendo estrelas, e não só pelo cansaço de ter acordado às seis da manhã de domingo para ser mesário. Ainda menos pelo prazer futebolístico de já saber, numa expectativa certeira, que seria o meu candidato quem levaria esta eleição, e que chegando em casa ia poder gritar horrores pela janela.
         A alegria mesmo era subir a Teodoro com o quente conforto de que, finalmente, a organização das coisas não estava mais na mão das pessoas e grupos que me acostumei a repudiar. E diga o que se disser, costume fundado na vida. Posso não saber de dados, mas basta o dia-a-dia numa cidade como São Paulo para desenvolver, ainda que de orelhada, uma consciência política mais ou menos articulada. E vendo a tarde cinza, se arrastando lenta como o próprio domingo por sobre uma Teodoro Sampaio vazia, tinha em meu peito entorpecido um sentimento, de que, das esquinas, dos lugares que frequento e do afeto que eu sinto por essa cidade, em que vivo e sempre vivi, não mais me espreitavam shoppings, preços de ônibus, abandono aos pobres e policiamento moral, coisas que tanto suportaram-se, como um assalto matinal previsto em lei.
         O que, na real, me espreitava? bem, coisa difícil. A rua, claro, estava bem vazia, e poucos pareciam se mobilizar de fato com aquilo que o Tribunal Eleitoral teve a infelicidade de chamar “festa democrática”. De festa, tem pouca coisa. Mas estamos no país do carnaval, e se releva. O que impressionava e chamava à terra era ver certa falta generalizada de ânimo: os casais andavam de braços dados nas mesmas cores e ritmos com que andariam qualquer domingo; alguns velhos fumavam nas portas comerciais, já fechando; o Nélson fazia a ronda, a chuva, já ida, escorria ao longo das padarias e do Pão de Açúcar. São Paulo rangia sem pressa os seus semanais mecanismos de folga.
         A alegria ali era só minha. Mas como se diz isso para uma pessoa? Via a alegria em tudo, via finalmente alguma chance de renovação, de cuidado, de poesia, até, imaginem. Poesia de entender esta cidade e suas sutilezas, e não querer agravar seu lado que tende ao infernal. Me parecia mesmo que as janelas dos prédios, de poucos andares, vibravam com a minha alma, jogavam confetes, refletiam a humana sensação de se salvar. E também os poucos carros, até os transeuntes, coitados, que nada tinham com a minha quase ingênua euforia: levavam a vida de sempre, como sempre.
         Mas quem disse que isso chegava até mim: meu estado era inabalável. Até que, olhando para os lados, dei com a vista em um senhor sentado ao chão, na parede do Pão de Açúcar, meio sujo e alucinado. Sem dramaticidades: roupas rotas, mas ainda boas; barba encardida, mas de bom corte; sentado, e não largado no chão, as mãos maquinalmente numa posição de cunha. O desespero mesmo vinha do olhar: aqueles eram olhos já incapazes de se ver no mundo, além dos espelhos. Não sei se por alguma droga, cansaço, loucura... e isso no caso nem importava. A sua simples existência lá, tão distante e funda, já contrastava desilusória com a imagem que, nas minhas patriotadas ideais, tinha para mim do espírito geral da nação naquele instante, naquela rua. Mas o velho não fazia nada além de murmurar,  no seu canto, e tenho certeza de que não eram jingles ou mesmo propostas políticas, embora ele em si já fosse uma.
         Sentado naquele canto, passasse o ônibus que passasse, sua feição permanecia a mesma, seu olhar seguia voltado para si, ou para o mundo que se confundia com ele. Nada de urnas, debates, campanhas, mobilização: possível que nem soubesse das eleições. Possível que estivesse lá naquele canto, sentado, a mão em cunha, já há muito tempo, e eu não tivesse reparado por simples negligência. A mesma negligência que me levava a acreditar, naquele momento, naquela caminhada rumo à minha casa, que eu me integrava ainda que só por intenções à uma cidade imaginária, a um povo, a uma história, onde cabiam todos os homens. Até possível em termos: um me escaparia sempre.
         Se por opção ou contingência, não tinha como descobrir. Quem sabe não queria aquilo mesmo? E se não quisesse? O querer haveria de ter um porquê, sempre tem. Mas o ignoro. Para mim, ele foi o urubu que, felizmente, veio pousar nos meus arroubos de vitória. O que ganhei, no fim das contas, bolas, além de um domingo trabalhando como mesário? O que é que, na verdade, se projeta por detrás de todos estes prédios cinzas, preguiçosos no domingo, em todo esse lixo amontoado pelas portas, no trânsito que acabou se formando, apesar do domingo? Perguntas difíceis, que transcendem qualquer escritor de ocasião, ou pessoa de sensibilidade arrebatada.
Sensibilidade que bem gostaria de chamar àquele  homem de irmão, de pai, de Outro, mas por dever de consciência não se contentou com essas fugas naquele instante. A vitória, repensei, calmo e mais atento, atravessando os viadutos da Teodoro, não saiu das urnas. E nem a esperança. São coisas de tempos indetermináveis... uma luz acena, a luzinha de hoje, mas ainda estamos longe de chegar ao fim de qualquer marcha, principalmente daquela, a para além dos domingos burgueses, das ruas sujas e dos homens sós por vontade ou por fome.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Fim dos tempos


         P oucas vezes, na história deste país, vi rebuliços como o fim dessa última novela. Talvez, quem sabe, o suicídio de Getúlio Vargas, a derrota na copa de 50... ou nada disso, já que só me vêm à cabeça tragédias nacionais e não sei ao certo se o último capítulo de “Av. Brasil” pode ser classificado como tal. Na verdade verdadeira, eu nem assisti. Carrego mais esta mácula em meu nacionalismo, junto com a de não entender abacate sobre futebol e nunca ter ido à Bahia. Mas no caso não é preciso saber muito: a mobilização foi tão grande que é como se tivesse assistido não só o último, mas todos os capítulos da novela.
         Começou nas bancas de jornais, nas capas de revistas, nas conversas corriqueiras. A Veja, entre dois Mensalões, lhe dedicou uma capa. Depois passei a reparar naquelas televisõezinhas de ônibus: lá também se passava um resuminho da novela, não vi de pirraça. Mas para meu desespero o cerco começou a se fechar por outros lados: amigos próximos, considerados pessoas cultas e ilustradas, chegavam nas mesas de bar animados com as aventuras de Carminha ou de Tufão, e não mais pela crise econômica ou pelas eleições municipais. Tenho de reconhecer: precisamos nos aproximar do povo. Também a semana passada já começou anunciando o abalo que seria o fim dessa novela: jornais comentavam, afoitos, o fenômeno, as reações. Brotaram rumores de um apagão nacional, à la Fernando Henrique Cardoso, frustrando a coletividade e prometendo, talvez, a revolução brasileira que Caio Prado morreu sem ver. Um ou outro jornal satírico previa uma ainda mais catastrófica “falta generalizada de assunto”, uma verdadeira crise moral. Fico me perguntando se tudo isso já não é alguma espécie de crise, desde que comecei a me sentir, também, sem assunto, quando meus amigos e próximos começavam a discutir a novela. Cheguei a achar que o problema fosse eu mesmo, consultei o analista, entrei em depressão, fiz avaliações. Mas mesmo assim não me comovi, e teria relevado esta como muitas outras novelas de sucesso não fossem suas repercussões na vida prática: o engarrafamento infernal que peguei na sexta à noite, por exemplo, num bairro até pacato da capital paulista, por conta da loucura generalizada que não podia porque não podia perder o tal do último capítulo da Avenida Brasil.
Mesmo sabendo que no dia seguinte tinha reprise.
         E não parou nisso. Desci no fim da Henrique Schaumann e saí com uns amigos para tomar uma cerveja, honrando a sexta-feira pelo que ela é e sempre foi. Mas até aí teve conspiração: o bar em que íamos sempre estava entupido de gente estranha, principalmente de mulheres de seus trinta, quarenta anos, que assistiam a tv com a fixação de um cachorro faminto. O silêncio imperava, perturbado somente por esporádicas exclamações generalizadas. Fenômeno sexualmente análogo ao do futebol, quem sabe.
         Foi só depois de rodar um tantinho que achamos um bar com espaço para lunáticos e alienados. O movimento era o mesmo: muitas mulheres lá dentro,  mesas de homens lá fora. E a conversa mesmo assim não podia se desviar do movimento geral, pretendendo torres de marfim: volta-e-meia uma frase era cortada por um grito generalizado, vindo de todos os lados da rua. Predominava a voz feminina, rendendo a uma amiga a piada de que tinham derrubado milho dentro do boteco. Já os homens, bem mais embriagados e bem menos organizados, gritavam a sua maneira, um deles se exaltando em algum momento mais do que os outros e falando: “Eu sou um Tufão mesmo, viu! Sou um puta de um Tufão!”, eliminando possíveis sexismos. De modo que o assunto se impôs: parece que a novela foi realmente envolvente, devido a enorme quantidade de desventuras e picuinhas que a compuseram, fazendo, de fato, com que todo mundo vidrasse, querendo saber o que aconteceria no próximo episódio. Por outro lado a coesão geral foi fraca, boicotando o desenlace e fazendo com que essa comoção logo se tornasse uma broxada nacional, o que pude constatar a partir de segunda-feira.
         Já ninguém comentava a novela nos pontos de ônibus, nas redes sociais, nos botecos, nos comércios. Os assuntos já eram outros... mormente a salvação do Palmeiras e a nova novela das nove. Não me perguntem qual é, sou ruim com nomes, e, enquanto ela passa, estou escrevendo. Fico pensando que estamos na reta final das eleições municipais... e como petista de ocasião, não posso deixar de ficar contente: ninguém dá muita corda para a outra novela federal que é o julgamento do mensalão, e mesmo a imprensa laranja já tocou a vida pra frente, esquecida como lhe sói ser, falando de amenidades depois do trauma novelístico de tão grandes proporções. Por ironia brasileira teve apagão só no Distrito Federal: a classe nessa sexta bebeu uísque sem gelo. E aproveitando, senhores governantes, faço um apelo: precisamos providenciar com urgência algum assunto nacional! A população já sofre: intermináveis silêncios ocupam os ônibus lotados, os botecos já não vibram com mais nada, os salões de cabeleireiro não têm mais a vida que tinham, nas bancas de jornais se lê em silêncio. Teria a crise chegado ao Brasil? Em sua forma moral, talvez? Pouco provável. Os brasileiros têm fôlego e ânimo para discutir qualquer assunto, contanto que seja interessante. Acontece que a política, como a novela e o futebol, sem barraco ou risco não tem lá muita graça... e a eleição por ser municipal também não consegue as proporções que a Globo alcança. Teria de dizer respeito a todos os estados: em Brasília, por exemplo. Se, suponhamos, pegasse fogo ou fosse abduzida, garanto que seria muitíssimo comentado.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A morte do barbeiro

A Artur Moraes
 
         Estranhei bastante quando, ao bater na porta uma, duas, cinco vezes, não tive resposta nenhuma. A luz acesa, iluminando a placa vermelha com o pente e a tesoura entre os dizeres “Ubaldo Barbeiro”, acenava na direção oposta da minha fracassada tentativa. Alguém estava por ali. Não fosse isso e também o fato de que a loja de discos, no térreo sob a barbearia, ainda estivesse funcionando naquele quente fim de tarde, teria certamente pensado em alguma tragédia como a venda do imóvel, o fim da barbearia, ou mesmo a morte do velho barbeiro, que já estava na idade em que se esticam as pernas: todos os piores pesadelos de um pinheirense bairrista, saudoso, sofrido, e que ainda, pela teimosia de ir sempre no mesmo barbeiro, ficaria alguns anos feito um bicho peludo, não suportando o dilema de achar um novo barbeiro, num bairro qualquer, ou fazer um luto capilar pelo resto da eternidade.

         Seria muito digno, no fundo: Ubaldo cortava cabelos em Pinheiros desde 1964, e com uma tal maestria que nunca vi em nenhum outro barbeiro. Mesmo o português de detrás do cemitério, mesmo os melhores e mais chiques cabeleireiros da Vila Madalena não cortariam um cabelo como ele corta. Todo o segredo se resume na simplicidade e na prática. Quase 50 anos de serviço! Desde que o descobri, naquele andar superior de um sobrado da rua Butantã, não corto meu cabelo com mais ninguém no mundo. Até porque cortar o cabelo, descobri em algumas visitas, é muito mais do que apenas receber tesouradas e navalhadas e sair com uma cara de gente civilizada: é todo um ritual, desde o momento em que o barbeiro te cobre com uma capa de tecido rijo, e desfere a primeira tesourada, passando pelos inevitáveis assuntos de barbearia, mormente política e futebol, até chegar no final, o pincel com talco, o espelho, o pagamento. Cada fase deveria ser devidamente bem feita e apreciada, como se se rezasse. Daí que, depois de descobrir o Ubaldo, passasse às vezes meses inteiros com o cabelo enorme e amarrotado, só esperando a oportunidade de passar com a devida calma no único barbeiro que, a meu ver, era verdadeiramente digno deste nome.
         Ainda esperei mais um pouco, bati outras vezes na porta, gritei pelo nome, mas me dei por vencido: não houve resposta, e a luz permanecia acesa, como um enigma. Sem mais nada a fazer, desci a escadaria estreita e, dobrando sentido centro, segui num enorme vazio interno a Teodoro Sampaio, a estas horas terrivelmente movimentada. As lojas de roupas, guarda-chuvas, bolsas, cedês e salgados ainda funcionavam com o mesmo afinco, entre centenas de compradores curiosos, suarentos pela soma do calor incomum do fim de tarde à faina banal de todo dia. Em frente, nas obras do triste largo, o maquinário descansava, atrás dos tapumes do velho quarteirão posto abaixo, feito uma manada de elefantes no calor. Um moleque passou vendendo balas, que por recusar quase derrubei uma barraca de muamba, na desatenção, naqueles meus passos tortos e melancólicos de saudosista. Não me conformava com tantas transformações. E se ainda o barbeiro tivesse sumido também, daí é que... já nem saberia mais. Ubaldo era a alegria do largo. Mesmo com tudo acabando, ele ainda estava lá, cortando cabelos, tomando umas pingas, falando de futebol. Se ele fosse embora, aí sim seria o fim do Largo dos Pinheiros, e deveria providenciar na mesmíssima semana a minha mudança para outro bairro, ou mesmo para outro estado. Pois não ia suportar viver num cemitério de lembranças.
Já atravessava a rua. Junto à igreja, além dos vagabundos de sempre, encostados nos altos pinheiros da praça Septímio Severo, dava pra ver no sentido da Paes Leme outro imenso e imundo canteiro de obras, do tal recapeamento que andaram fazendo por lá e também na do Sumidouro. Eu seguia num passo lento, distraído e sem grandes impressões, me acostumando com sadismo às mudanças corriqueiras que se passavam a cada esquina. No panorama que tive do Largo, fixei o olhar nas velhas casas da esquina junto ao posto, abandonadas já há muito,  até que percebi num susto que estavam sem teto. “Em breve, novo lançamento”, concluí, melancólico e meio basbaque.
Mas uma voz roufenha me chamou à terra.
         - Ô Pedrão, você voltou, foi, rapaz?
         Tirei os olhos do outro lado da rua e me virei para baixo: o baiano atarracado me olhava, alegre, com os olhos pretos e o espesso bigode grisalho, vestido no tradicional jaleco azul da barbearia. Vinha conversando com um sujeito narigudo, de boné, a cara gentil,  volta e meia cutucando o velho Ubaldo, que trazia numa mão uma tesoura e na outra uma gordurenta coxa de frango. Mal pude conter minha alegria em vê-lo ali, vivo, alegre e ainda na boa e velha praça pinheirense.
         - Hô seu Ubaldo! – e lhe dei um tapa no ombro – tava justamente atrás do senhor!
        
........................................................................................................................................

         O velho baixinho destrancou a porta num gesto duro, e dentro em pouco eu já me sentava na velha cadeira de couro preto e de altura regulável. Na verdade ele já ia fechar, tinha ido comer alguma coisa e ia voltar só pra terminar de arrumar as tralhas, mas para mim, freguês fiel, ia fazer uma exceção. Mal me cobriu com a capa branca e foi por hábito ligar a tv, somando assim ao ambiente da barbearia e às buzinas da Teodoro aquela voz escandalosa e trágica do apresentador de “Cidade alerta”. Limpou a mão gordurenta, afiou a tesoura e, no primeiro corte, puxou um papo.
         - E aí, rapaz? Faz tempo que você voltou de lá do... do... Canadá, não é, que você estava?
         - Não... – respondi, pacientemente, - eu não fui pro Canadá não, seu Ubaldo, eu fui é pra Rússia!
         - Ah, é? Rússia é?  E como é que foi lá?
         - Foi frio pra porra!
         Ele se riu, perguntou das mulheres e de outras coisas típicas da Rússia, como o comunismo e a vodka. Da segunda ele gostava muito, mas detestava comunistas. E logo começou seus causos intermináveis... enquanto isso, no fundo da barbearia o Datena narrava com horror e bile como uma criança tinha sido esfaqueada pela mãe em algum bairro da zona Norte, seu corpo encontrado na rua e a facínora desnaturada refugiada na casa de algum parente. Parece que já tinha algum antecedente, e o apresentador clamava por justiça e maldizia a humanidade. Aos meus pés, o cabelo emaranhado havia muito caía aos chumaços, formando um tapete negro, cada vez mais fechado. O barbeiro interrompeu suas lembranças com indignação.
         - Rapaz, viu que absurdo essa vagabunda aí! Tinha que esfaquear era a buceta dela pr’ela aprender a fazer isso com a filha! Onde já se viu...
         Simplesmente escandalizado, sem nenhum ânimo para discordar ou sequer concordar, assenti num suspiro de “pois é”, enquanto a tesoura deslizava suave e ágil pela parte de trás do meu crânio. Tinha até me esquecido que, embora gostasse muito de ouvir as coisas que o Ubaldo contava sobre São Paulo antiga, suas histórias pessoais e a sua vinda da Bahia, ele tinha certas opiniões meio incisivas com as quais dificilmente poderia concordar, ou mesmo questionar.
         - É meu amigo, a coisa nessa cidade tá preta! A gente num tem mais sossego... nem andar na rua a gente pode mais! A própria mãe! Também, deixa tod’esses marginal aí solto pelas ruas, daí já viu! Só pena de morte mesmo, pra acabar com esses vagabundos.
         Numa manobra para mudar de assunto, perguntei uma coisa que me interessava mais e que não era tão passível destes tão nossos e tão populares reacionarismos.
         - E vem cá, seu Ubaldo, e esse quarteirão aí da Fernão Dias? Puseram tudo no chão assim da noite para o dia?! Que coisa...
         - É, rapaz, demoliram tudinho! Não sobrou nada! Ainda tinha a lotérica funcionando lá debaixo daquele prédio, mas botaram eles na rua também! Agora não tem mais nada... nem o juiz que não queria vender a casa pro governo eles pouparam, já destruíram também...
         - E agora vai ser o quê aí, um prédio, uma praça...?
         - Vai ser sabe o quê?! Sabe o quê?! Cracolândia! É isso que eu te digo, Cracolândia! Uma praça pr’os vagabundos dormirem e fumarem droga... imagina, tanto trabalhador honesto que ficava lá na Martim Carrasco, e agora essa sem-vergonhice aí, é de lascar.
         No fundo, com tristeza, eu concordava, e aproveitei:
         - É esse trolha desse prefeito! Vai enriquecer todos os amigos dele com essa história, esse Kassab.
         - Ah mas esse é uma bicha arrombada! Isso é que dá botar veado na prefeitura! Coisa boa é que não sai!
         - Ah, é... e vem cá, seu Ubaldo, pra prefeito, o senhor vai votar em quem?
         - Ah, tá difícil! É tudo bandido mesmo! Eu vou votar é no Russomanno! Esse Serra aí a gente já viu, e o outro lá do PT é outro vagabundo, quem nem o partido dele! O Russomanno pelo menos é um homem decente, trabalhador, rapaz jovem, tem que dar uma chance.
         Com essa eu já não podia concordar assim sem mais nem menos. O mínimo que eu tinha que fazer era tentar dissuadi-lo, mostrar bem, por mais difícil que seja conversar com um barbeiro de sessenta anos de idade. Expus alguns argumentos, mas não era nada que ele não soubesse, e se manteve firme e forte na intenção de voto no patrulheiro do consumidor. Acabei me cansando também e deixei a conversa morrer.
         Agora ele trocava a tesoura, por uma maior e dentada, para tirar volume. Pediu para que eu me levantasse, para ir lavar o cabelo na geringonça que ficava no fundo do salão. Ao lado, um armário repleto de utilidades e inutilidades se escorava junto ao espelho, com tesouras, copos, recortes de jornais, jogos do bicho já perdidos ou por conferir, e até mesmo, meio escondida num canto, uma garrafa de Pitu já pela metade. Acima do espelho, que tinha na bancada todos aqueles incompreensíveis apetrechos de barbeiro, um curioso conjunto de imagens se destacava, começando pela Nossa Senhora, depois o desenho de um porco de verde mijando nos brasões de outros times paulistanos e por fim uma foto, ampliada e bem cuidada, do que presumi ser o netinho do velho barbeiro. Ao lado se abria a janela, de onde se via, por detrás da estreita rua São Miguel, grande parte do Largo, totalmente despedaçado.
         Quando ele começou a lavar o meu cabelo, com água fria e um shampoo forte, me lembrei:
- Aliás, seu Ubaldo, queria te perguntar: você sabe o que é que vai ser dessas casas aí na frente, na rua Butantã? Já tá tudo até sem teto, uma semana e já põem tudo abaixo...
- Isso daí? Ah, vai ser mais um prédio alto desses aí que têm dado que nem banana aí por Pinheiros. Aqui também, vai ser a mesma coisa.
Por efeito da água fria, talvez, ou da hipótese que se afigurara em minha mente, tive um calafrio e quase um sobressalto.
- Aqui, você diz, aqui no Largo, né, com todas essas obras...
- É, em tudo quanto é canto esses sem-vergonha vão encher o cu de dinheiro... mas eu tô falando é daqui mesmo, Pedrão! Já compraram o imóvel e tudo, não teve conversa nem nada! Até o fim do ano nóis tem que sair daqui...
Uma indizível tristeza escorreu pela minha alma como o shampoo escorria pelos meus cabelos encharcados, que o barbeiro agora espalhava com seus dedos grossos. Fiquei ainda um tempo sem resposta, inerme, pensando: ia ficar sem barbeiro! E mais, toda aquela parte que ainda restava do velho largo, em frente ao posto, aquela margem direita intocada, com a loja de discos, o boteco, a falsificadora de atestados, o “compra-se ouro”, e, claro, o meu velho barbeiro, tudo aquilo estava prestes a desaparecer do mapa, defenestrados por uma jogada real de Banco Imobiliário. Me senti como que transposto a um funeral, como se eu mesmo, com aquela tosa e aquela lavagem, me transformasse lentamente em um defunto obsoleto.
- Poxa vida, Ubaldo... que coisa... não sei nem o que dizer... e você, vai fazer o quê? Já arranjou outro ponto?
- Eu, imagina! Eu já tô velho, seu Pedro... eu trabalho é mais pra passar o tempo, e ganhar um dinheirinho a mais. Até porque mesmo a barbearia não dá assim tanto dinheiro quanto dava há uns anos atrás não... eu vou agora é me aposentar mesmo, que eu já trabalhei demais. Eu tenho um terreninho lá na Bahia, eu vou acabar meus dias é por lá...
- É, a Bahia é uma boa... – suspirei, cogitando –. Você é de lá, não é não, Ubaldo?
E foi a deixa para que o velho contasse mais uma vez aquela sua infinidade de histórias, desde quando veio para São Paulo com uma mão na frente e outra atrás, até quando finalmente conseguiu a sua barbearia, antes na Benedito Calixto, mas como tudo era diferente! A Henrique Schaumann nem existia... depois foi parar lá no Largo, onde estava há não sei quantos anos. E também falou do netinho, tão querido! pena ser corinthiano, e da primeira esposa, de como quase matou o amante daquela vadia com uma peixeira, mas não ia fazer isso, ele tinha coração, só exigiu o que era seu.
E nessa infinidade de histórias, que o tempo trás como que compensando a quantidade cada vez menor de dias que a velhice nos reserva, o velho barbeiro terminou o meu corte – no fundo o clássico corte de macho que todo barbeiro faz –, espanando meu pescoço e meus ombros com um pincel cheio de talco e depois me mostrando num espelhinho. Não iria fazer objeções: o que se discute com um barbeiro? Depois largou logo o espelho em cima do balcão e se serviu uma dose de cachaça. Até perguntou se eu queria, mas recusei, polidamente, enquanto procurava o dinheiro na carteira e alguma alegria no peito, em vão. No fundo sentia vontade de beber com ele, compartilhar ainda que pela última vez daquela vida simples, quase rude, que o velho bigodudo levava há cinquenta anos na cidade de São Paulo, agora  demolida para abrir outra vez caminho ao dito progresso. Mas alguma coisa me impedia, para além de meu estômago. Não podia mais comungar com aquele homem, nem com a sua gente: aquele era um barbeiro morto, numa rua morta, num bairro morto. Não sou necrófilo, exijo distância, sentia nojo. Tudo que eu poderia fazer era acender-lhe uma vela, em alguma igreja escura de esquecimento.
Ou pagar, como acabei fazendo, em meio a devaneios e melancolias. Ainda trocamos meia-dúzia de ideias ao longo da escadaria, onde a comunicação era facilitada pela distância da televisão em que o Datena ainda berrava por alguma velha que tinha sido defenestrada no Morumbi. Mas o assunto acabou rápido, com a chegada daquele mesmo sujeito com quem havia encontrado o Ubaldo na rua. Golpe de sorte, pois o assunto começava a enveredar para o futebol e aí sim eu já não teria absolutamente nada a dizer. Talvez chorar, só, talvez, o que já seria o cúmulo do ridículo ou do absurdo. Adeus, Pinheiros! Adeus, meu bairro! Era o que eu queria dizer, mas só saiu um
- Adeus, Ubaldo. Espero que tudo corra bem. – e quis abraçá-lo, cheio de sentimentalismos.
- Ué, mas adeus por que, rapaz? Você vai viajar de novo?
- Não, mas o senhor é que tinha dito que...
- Ah, mas isso é só lá pra março, a gente ainda se vê. Ou você vai ficar mais seis meses sem cortar o cabelo?
Ri, um pouco mais aliviado. Apesar de que, no fundo, a morte seria até pior, mais lenta... mas mesmo assim mais humana. Não haveria nenhuma grande e dramática despedida. O barbeiro não seria morto pelas retroescavadeiras, quando pusessem o teto da barbearia abaixo com tudo dentro, os clientes, as imagens, a televisão. Mas ele sairia lentamente, pela porta da frente, depois de empacotar, com certa dor, coisa por coisa, retrato por retrato, desligar a tv, tirar as imagens e os recortes das paredes, embrulhá-los em uma caixa de sapatos, com todo o carinho que uma alma, a mais simples que seja, acumula ao longo de sua vivência, para transmutar-se em pesar e nostalgia no dia do fim de tudo. E depois de tudo pronto, após certificar-se de que só esqueceu o que queria esquecer, apagaria a luz com um suspiro e desceria as escadas num silêncio saudoso. Mas quanto ao bairro... cocei a barba, encafifado, e lembrei:
- Ah, Ubaldo! – o velho quase se afastava, mas voltou. Queria já faz tempo te perguntar uma coisa: aquela pedra branca que você costuma passar no rosto depois de fazer a barba, o que é que é? Queria ver se eu arrumava...
-Aquilo lá? É naftalina, em barra! É bom, não é? E tem mais – me puxou para perto de si, cochichando na minha orelha – tem um segredo também. Se a mulher passar isso na xoxota, vira virgem de novo!
E depois foi embora, sem nem dar tempo de eu expressar a minha dúvida ou pelo menos perplexidade diante de uma ideia tão esdrúxula. Naftalina... virgem de novo... atravessei o Largo despedaçado com essa ideia na cabeça. O que no fundo, concluí, sorrindo, é uma ideia interessante: se as mulheres puderem revirgenescer, os Largos se reconstruir e os barbeiros, depois de tanta vida e da morte, com uma pedra qualquer puderem ressuscitar de um bairro entre escombros, purgados de seus erros e pecados ante a visão do Infinito.