domingo, 20 de novembro de 2011

Desterro


   Entrei naquele bar, aliás, agora já restaurante ou lanchonete, na r. Fradique Coutinho, como sempre entrava nos tempos já idos de anos atrás. Mas desta vez com o coração na mão – não imaginava que já tinha passado tanto tempo, nem que justo ali pudesse ter o PF mais barato da paróquia. Mas tinha certeza de que ninguém mais ia se lembrar de mim.
   Tudo normal, para um horário de almoço numa terça fria de junho, com os habitués engravatados de sempre também encoletados, aproveitando como podiam o intervalo do trabalho, uns engolindo enormes pedaços de ovo de gema mole, outros só fazendo hora numa mesa de canto suja e vazia. Eu mesmo me sentei numa dessas, quase na rua, cinza e fria, e fiquei olhando praquele povo em horário de almoço enquanto não era atendido... “que conversa animada, a daquela gente ali... horário de almoço deve ser um alívio danado, sair com os amigos bem no meio do serviço, comer um bifão com fritas, ou um picadinho e depois, bem... ficar assim!” Pensei reparando nuns homens que jogavam palitinho, certamente à beira de pedir uma cerveja, não fosse terça.
    Dai lembrei que eu também estava em horário de almoço. Fiquei um tempo sem trabalhar, mas tinha voltado, e por ali, na mesma rua do bar da minha primeira mocidade, onde bebia Itaipava por três reais o casco, fumando L&M azul em ambiente fechado sem medo do governo... Seis da tarde, o dono abria um baralho – começava o truco, que ia até a 1 da matina, já que era um bar de família. O próprio Jair, moreno risonho, boa gente e ladrão inveterado no jogo,  até trazia a mulher e o filhinho, quando nasceu. Esses velhos fregueses não tinham nada com os de agora  - vinham no lazer, moravam perto, não era só pelo PF de $5,00. Nenhum engravatado... aliás, antigamente, onde estes daí estavam, ficava a mesa do bilhar – ué, cadê ela? Poxa, tiraram! Justo a mesa...
   E o dono, minha dupla de sempre, com certeza já nem se lembrava mais de mim... “Ehn, que sofrimento!” suspirei. Melhor era mesmo comer logo, mas não tinha achado o garçon ainda. Coitados! A casa estava cheinha, e pelo jeito tinha pouca gente trabalhando. Dei um sinal pro além, e funcionou: veio um rapaz. “Ah, é claro” entendi ao olhar o sujeito que se prestava a anotar meu pedido “é por isso, ele é novo aqui, nem conhecia, não é do meu tempo não...”
- Ô amigo, cê me traz um PF desses ai – apontei pra lousa na porta – uma coca com limão e... vem cá, esse prato aí, vem com batata?
   Não vinha, daí pedi pra que trouxesse uma porção por fora, que ele foi buscar na cozinha que se espremia no fundo, rente ao balcão. Lá era onde trabalhava a Jael, mulher dono, o velho Emil... que, aliás, nem tinha visto ainda, até que ouvi a voz familiar discutindo no balcão. Até acenei empolgado, na esperança que me reconhecesse, mas ele estava tão entretido com um problema que nem me deu atenção.
- É isso mesmo! Eu te devolvi vinte já, daí agora falta só cinco...
- Não não, seu Emil, não é assim não. Eu tinha te dado era cinquenta, foi cinquenta que eu te dei...
   E assim seguiram por um bom tempo, o Emil e o sujeito, enquanto eu de minha parte já tinha comido a salada e agora me atirava na porção de batatinha, junto com a carne acebolada. Foi só quando acabei de comer e me levantei pra pagar que a disputa foi resolvida, e o bom Emil já se ocupava de seus negócios no caixa. Já eu, de minha parte, não tinha qualquer esperança de que ele me reconhecesse, mas..
- Com licença, quanto é que fica o meu?
- O seu fica... ô seu Pedro, resolveu aparecer, foi?
   E me perguntou sobre a vida, o que eu andava fazendo – nada, como sempre – com muito interesse, até que falou que era treze reais, uma pechincha. Fiquei felicíssimo que me reconhecesse; poxa, jurava que tinha se esquecido, jurava! Paguei (com uma nota de vinte, e ele me deu o troco certo), e saí para a rua, não sem antes esbarrar com o velho bicheiro, esse sim, ali desde a primeira vez que entrei naquele bar e ainda por lá, na ativa. “Há coisas que realmente não mudam, nunca...” ri saindo pela rua. “E lugares também  - graças a Deus!” E quase dobrava a esquina quando ouvi gritarem meu nome. Era o Emil.
- Ô Pedro, pera aí! Tenho uma coisa pra falar com o senhor!
   Voltei curioso – era uma pendura de quatro anos atrás, $47,75.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Os males do tabaco


   Depois de alguns dias de constipação, nariz entupido e uma sofrida dor de garganta, que passei enfurnado debaixo das cobertas, saí para a rua com a alegria de quem descobre o mundo de novo. Por razões climáticas obscuras aquele era o novembro mais frio que jamais tinha visto – o jornal anunciava desde 1977, mas eu então ainda não era nascido e, portanto, estava absurdado. Não só eu mas também meu corpo, que padeceu com todo o meu ânimo primaveril e, pego de surpresa por uma friaca num modelito de verão, adoeceu demonstrando sua perplexidade.
    Apesar de trazerem certos benefícios (tinha ficado quatro dias sem trabalhar nem fazer nada de útil), essas doenças sempre implicam privações e sacrifício, pra se poder voltar a funcionar normalmente: não tomar coisas frias, não sair de casa, não beber, e, verdadeiro martírio para quem fuma, não fumar.  Não sou um fumante compulsivo, desses dos seus dois maços por dia, mas confesso que não passo muito bem sem ter pelo menos a possibilidade de fumar meu cigarrinho quando o nervosismo aperta, ou quando não tenho nada para fazer. Devo fumar no máximo uns cinco ou seis cigarros por dia, e de tão pouco já achei muitas vezes que poderia passar sem. Tentei aproveitar a doença para parar de fumar de uma vez, o que foi muito promissor enquanto me senti doente. Mas logo que me senti um pouco melhor, bem o suficiente para ir trabalhar, já fui futucar no maço pra ver se tinha sobrado algum cigarro. Não tinha.
    Assim, quando saí na rua para retomar meus compromissos, a primeira coisa que fiz antes de ir ao ponto de ônibus foi justamente passar na banca e comprar um maço de L&M e uma caixa de fósforos, e segurei a vontade para fumar melhor no ponto, esperando o ônibus. Puxei o fiozinho do plástico com verdadeira volúpia, apreciando cada volta em torno do maço azul e branco, rasgando o papel prateado com a unha e arrancando com dois dedos o cigarro que me realizaria. Antes de acender olhei em volta, pra ver para onde lançar a fumaça e se podia fumar sentado: não, não podia, já que no ponto esperavam também mais umas cinco ou seis pessoas, quase todas mulheres de certa idade, e que não tinham cara de fumantes. Parece que ninguém mais fuma nessa cidade! Se precisasse de fogo, estaria ferrado... Aliás senti que uma mulher, um pouco atrás de mim, me olhava com certa desconfiança, com aquele cigarro entre os dedos.
    Mas acendi, dei aquela esplêndida primeira tragada, tão aliviante depois de ficar saudável por tantos dias. E tomei todo o cuidado para não soltar a fumaça na cara de ninguém, virando a cabeça para cima e assoprando com força. Nesse instante bateu um vento, daqueles do contra, e jogou toda a fumaça justamente naquela mulher que me olhava estranho, que tossiu uma tosse significativa e enfática. Entendi a mensagem e, sem me virar para ela, senti a direção do vento e me desloquei para trás dela, de modo que o vento carregasse a fumaça para bem longe.
    Certifiquei-me de que o vento não tinha mudado de direção e, ainda um pouco receoso e envergonhado, arrisquei uma segunda tragada, que foi ainda mais relaxante que a primeira. Isso até o momento de soltar a fumaça, quando a tensão voltou – mas tive certeza do que fazia e soltei-a para o alto, de onde voou para bem longe do ponto. Mesmo assim, foi eu terminar de assoprar que a mulher começou a tossir outra vez. Como, se a fumaça tinha ido tão longe? Recebi aquilo como uma ofensa e resolvi encarar a desocupada. Mal nossos olhos se cruzaram, ela desviou rapidamente, com uma cara esnobe de desentendida, e pôs-se a olhar os ônibus, ainda tossindo baixinho.
    Como tem gente chata neste mundo! Estava incomodada simplesmente porque queria se incomodar. Eu encarei aquilo como birra, e continuei fumando, agora sem nem me preocupar pra onde a fumaça ia. Melhor se fosse na cara dela mesmo. Fazia um friozinho agradável, e eu fui fumando com gosto, e ela,foi tossindo cada vez mais alto, de um jeito cada vez mais forçado e desrespeitoso, até que finalmente o cigarro acabou. Ainda assim ela deu mais umas duas tossidas, antes de perceber que afinal já não tinha razão para isso. 
Passaram-se uns instantes em silêncio. Como o ônibus teimava em não chegar, fui me sentar no banco sob o coberto, do lado da tal da mulher. Sentei-me e me enrolei no casaco, afundando as mãos nos bolsos. Ainda tinha umas pastilhas, e pus-me a chupar uma, distraído. Mas a mulher, talvez porque, como qualquer fumante, eu estivesse cheirando a cigarro, resolveu voltar a tossir, agora baixinho, uma tosse abafada e com uma discrição irônica. Não sei por que, agora aquilo começava a me irritar de verdade, eu começava a me sentir ofendido, mais e mais a cada tosse. É difícil entender o que leva as pessoas a cometerem essas grosserias e indelicadezas. E eu nem estava fedendo tanto assim! Mas ela tossia como se eu tivesse fumado um charuto, como se eu fosse um cinzeiro ambulante ou um cigarro em forma de gente.
Mordi a pastilha com ódio e levantei para olhar os ônibus, seria o meu aquele? Não, não era... e ao voltar: coff, coff, coff, hum. Decidi encará-la, mas ela logo desviou o olhar, com aquela cara esnobe de desentendida, e mal eu virei o olho pra rua e ela voltou a tossir. Cassete, por que ela simplesmente não se levantava e se sentava em outro canto? Não, não levantaria. Já à beira de cometer uma calamidade em via pública, respirei fundo, acalmei-me e, enfiando as mãos no bolso, senti novamente o envelope de pastilhas. Desenterrei um sorriso das minhas melhores lembranças e, afetando a voz, resolvi me vingar.
- Senhora, com licença... sabe, eu, eu estive doente esses dias. Tempo louco esse, ein?
Ela nem respondeu, só me olhando sem entender.
- Tive febre, tosse, essas coisas... ruim né?
Ainda nada.
- Vi que a senhora está tossindo feito, feito... feito uma porca velha, sabe?, não me leve a mal. A senhora aceitaria uma pastilha valda? É de laranja.
E estendi o pacotinho com um sorriso enorme, talvez o maior sorriso que já fiz para alguém. Ela me olhou absurdada, levantou meio sem jeito e fez sinal a um ônibus que passava. Confesso ter minhas dúvidas se era de fato o ônibus de que precisava. Ainda murmurou alguma coisa, que talvez se referisse à minha mãe, e subiu, sem nem tossir. E eu, vendo que tinha ficado sozinho no banco, tirei com calmamente um cigarro do maço e fiquei fumando junto com a pastilha, enquanto o ônibus não chegava.