Na flutuação dos preços, um minuto vale ouro.
Para a alegria dos dois sujeitos,
irmanados pela espera naquela noite fria de junho, o último ônibus daquela
linha veio passar cinco para meia-noite, dispensando táxis e desesperos.
Sábado, e numa linha dessas raras e pouco frequentadas: o ônibus andava com a
parte da frente no escuro, o cobrador cochilava, e bem no fundo se aninhava uma
senhorinha murcha e encasacada – o único passageiro antes que aqueles dois
subissem.
Um deles,
mais afobado, mal entrou e passou logo a catraca, cutucando polidamente o
cobrador para que, com efeito, cobrasse, indo em seguida para o canto oposto ao
da velha, onde capotou. Já o outro, de índole mais indecisa, hesitou alguns
minutos na falta de inspiração para lugares, antes que se decidisse pelo
exemplo do ex-companheiro de espera. Levantou-se do banco da frente, em que se
apoiara, por pouco não sai voando numa curva violenta, enfim se estabilizou e pôs-se
a escarafunchar as dobras e redobras da carteira, atrás do troco contado para a
passagem de volta – uma pilha de moedas em valores multiformes.
Mas ao
estender o dinheiro para o cobrador mal-humorado, acordando-o num “boa-noite”
quase mudo, o que recebeu quando ele terminou de contar cada moeda foi um dedo
apontando o relógio do passa-cartão.
- Já é três
e vinte.
- Como? É
meia-noite ainda...
- Então! – resmungou
o cobrador com impaciência, como se fosse óbvio.
- Então...?
Se é meia-noite, não pode ser três e vinte – o pobre do sujeito, não bastasse o
sono, de quebra ainda estava confuso.
- Sabe ler?
Ali, ó. – e apontou com negligência para o “Jornal da SPtrans”, onde se lia,
num informativo colorido, com tipografia simpática, que a partir da meia-noite
do 1 para o 2 já passava a valer o aumento da passagem.
O homem
mordeu o lábio com aflição, sentindo-se pequeno em sua ignorância dos movimentos
financeiros, do relógio e do transporte. Mas sabia que eram só vinte centavos, e
que ia conseguir dar um jeitinho...
- Vixe,
moço... eu nem sabia que era agora, não... quer ver só? – abriu a carteira,
revirou cada meandro de seus infinitos compartimentos, para somar por fim, tendo
quase arregaçado o couro velho e sujo, mais cinco centavos ao que já tinha
entregado.
– Moço, é tudo que eu tenho.
– Ih... daí embaça, ein? –
respondeu numa careta o velho da catraca, no claro e sádico intuito de alegrar
um pouco o seu sábado às custas daquele pobre coitado. – Tem câmera aqui no
busão, filho, se o fiscal me pega...
Semelhante
explicação, chamada em bom português de “migué”, fez com que o infeliz das
moedas perdesse a compostura.
- Porra
irmão, mas o cara ali acabou de pagar três reais, que eu vi! Por que é que
justo eu agora tenho que pagar essa merda de vinte centavos! Cê tá de
sacanagem!
- Calma lá,
calma lá, pode abaixar esse tom! Ele passou antes da meia-noite... se você tivesse
feito o mesmo, não tava aqui agora enchendo o meu saco. A cidade inteira
sabendo do aumento e só o trouxa aí chega à meia noite no meu busão pra ficar
criando caso. É mole? Tá achando que é fácil? Não dá pra andar de graça não,
mermão!
- Mas, caralho!,
são só vinte centavos! – desesperava-se o possível estelionatário ante as
proporções que a situação assumia.
- Porque
não vai sair do seu bolso, né, vagabundo!
E
prosseguiu a patética discussão por mais alguns pontos, avenidas e ruas. O
motorista ria sozinho, do seu canto, só esperando pelo desfecho daquela inédita
comédia; o outro homem, vendo que sobrava até pra ele, fingiu continuar
dormindo. Uma hora alguém acabou fatalmente pondo a mãe no meio, e a coisa
ameaçou ficar séria: os dois estavam quase se agarrando quando uma voz fininha
e trêmula se enfiou no meio, conciliatória.
- Toma, meu
filho, uma moedinha pra pagar o moço. Não precisa brigar. – sorriu a até então
amoitada velhinha, tirando um Deodoro amarelo de um moedeiro estampado com
flores.
- A senhora
é muito gentil – se apressou o cobrador, antes que o sujeito pudesse esfregar o
dinheiro na sua cara – mas esse cara aqui não fica no meu ônibus mais não, nem
pagando vinte reais! Vai ficar é na rua, vai descer agorinha mesmo! Ouviu?!
Milton, pode abrir pr’esse porra aí antes que eu perca a razão! Vai, vaza!
Pasmo com o
desfecho inesperado, o sujeito ainda ameaçou se indignar, mas um rápido olhar
pela janela fez com que abaixasse a cabeça, respirasse fundo e murmurasse um
“sim senhor” resignado. O tal do Milton, rindo feito o diabo, enfim encostou o
ônibus e abriu a porta da frente, por onde o sujeito, quieto, desceu a passos
lentos com as moedinhas na mão.
“Assim que
se viaja de graça!” sorriu, guardando o troco na carteira e pegando o caminho
de casa, a uns vinte minutos daquele ponto.
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