domingo, 2 de junho de 2013

Meia-noite e vinte


Na flutuação dos preços, um minuto vale ouro.

           Para a alegria dos dois sujeitos, irmanados pela espera naquela noite fria de junho, o último ônibus daquela linha veio passar cinco para meia-noite, dispensando táxis e desesperos. Sábado, e numa linha dessas raras e pouco frequentadas: o ônibus andava com a parte da frente no escuro, o cobrador cochilava, e bem no fundo se aninhava uma senhorinha murcha e encasacada – o único passageiro antes que aqueles dois subissem.
            Um deles, mais afobado, mal entrou e passou logo a catraca, cutucando polidamente o cobrador para que, com efeito, cobrasse, indo em seguida para o canto oposto ao da velha, onde capotou. Já o outro, de índole mais indecisa, hesitou alguns minutos na falta de inspiração para lugares, antes que se decidisse pelo exemplo do ex-companheiro de espera. Levantou-se do banco da frente, em que se apoiara, por pouco não sai voando numa curva violenta, enfim se estabilizou e pôs-se a escarafunchar as dobras e redobras da carteira, atrás do troco contado para a passagem de volta – uma pilha de moedas em valores multiformes.
            Mas ao estender o dinheiro para o cobrador mal-humorado, acordando-o num “boa-noite” quase mudo, o que recebeu quando ele terminou de contar cada moeda foi um dedo apontando o relógio do passa-cartão.
            - Já é três e vinte.
            - Como? É meia-noite ainda...
            - Então! – resmungou o cobrador com impaciência, como se fosse óbvio.
            - Então...? Se é meia-noite, não pode ser três e vinte – o pobre do sujeito, não bastasse o sono, de quebra ainda estava confuso.
            - Sabe ler? Ali, ó. – e apontou com negligência para o “Jornal da SPtrans”, onde se lia, num informativo colorido, com tipografia simpática, que a partir da meia-noite do 1 para o 2 já passava a valer o aumento da passagem.
            O homem mordeu o lábio com aflição, sentindo-se pequeno em sua ignorância dos movimentos financeiros, do relógio e do transporte. Mas sabia que eram só vinte centavos, e que ia conseguir dar um jeitinho...
            - Vixe, moço... eu nem sabia que era agora, não... quer ver só? – abriu a carteira, revirou cada meandro de seus infinitos compartimentos, para somar por fim, tendo quase arregaçado o couro velho e sujo, mais cinco centavos ao que já tinha entregado.
– Moço, é tudo que eu tenho.
– Ih... daí embaça, ein? – respondeu numa careta o velho da catraca, no claro e sádico intuito de alegrar um pouco o seu sábado às custas daquele pobre coitado. – Tem câmera aqui no busão, filho, se o fiscal me pega...
            Semelhante explicação, chamada em bom português de “migué”, fez com que o infeliz das moedas perdesse a compostura.
            - Porra irmão, mas o cara ali acabou de pagar três reais, que eu vi! Por que é que justo eu agora tenho que pagar essa merda de vinte centavos! Cê tá de sacanagem!
            - Calma lá, calma lá, pode abaixar esse tom! Ele passou antes da meia-noite... se você tivesse feito o mesmo, não tava aqui agora enchendo o meu saco. A cidade inteira sabendo do aumento e só o trouxa aí chega à meia noite no meu busão pra ficar criando caso. É mole? Tá achando que é fácil? Não dá pra andar de graça não, mermão!
            - Mas, caralho!, são só vinte centavos! – desesperava-se o possível estelionatário ante as proporções que a situação assumia.
            - Porque não vai sair do seu bolso, né, vagabundo!
            E prosseguiu a patética discussão por mais alguns pontos, avenidas e ruas. O motorista ria sozinho, do seu canto, só esperando pelo desfecho daquela inédita comédia; o outro homem, vendo que sobrava até pra ele, fingiu continuar dormindo. Uma hora alguém acabou fatalmente pondo a mãe no meio, e a coisa ameaçou ficar séria: os dois estavam quase se agarrando quando uma voz fininha e trêmula se enfiou no meio, conciliatória.
            - Toma, meu filho, uma moedinha pra pagar o moço. Não precisa brigar. – sorriu a até então amoitada velhinha, tirando um Deodoro amarelo de um moedeiro estampado com flores.
            - A senhora é muito gentil – se apressou o cobrador, antes que o sujeito pudesse esfregar o dinheiro na sua cara – mas esse cara aqui não fica no meu ônibus mais não, nem pagando vinte reais! Vai ficar é na rua, vai descer agorinha mesmo! Ouviu?! Milton, pode abrir pr’esse porra aí antes que eu perca a razão! Vai, vaza!
            Pasmo com o desfecho inesperado, o sujeito ainda ameaçou se indignar, mas um rápido olhar pela janela fez com que abaixasse a cabeça, respirasse fundo e murmurasse um “sim senhor” resignado. O tal do Milton, rindo feito o diabo, enfim encostou o ônibus e abriu a porta da frente, por onde o sujeito, quieto, desceu a passos lentos com as moedinhas na mão.
            “Assim que se viaja de graça!” sorriu, guardando o troco na carteira e pegando o caminho de casa, a uns vinte minutos daquele ponto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário