sábado, 20 de abril de 2013

O valsar do realejo


            Foi na feira da Benedito Calixto. Confesso que, como pinheirense inveterado, já faz algum tempo que parei de ir lá, de tão cara e tão lotada que foi ficando, perdendo sua identidade. Mas recentemente – acho que por causa dos discos de música clássica, pouco procurados e, portanto, de preço baixo – dei de passar lá de vez em quando. Andava eu pelo lado da Lisboa, desbravando as multidões bem vestidas com a ajuda dos cotovelos, ao passo em que os olhos se ocupavam, do outro lado da rua, de uma morena charmosa, quando dei de frente, quase na entrada da quadra do choro, com um curvo e cansado tocador de realejo.
            Verdadeiro pesadelo nostálgico: pele batida de sol, bigodes de escovão grisalho sujo, indeciso entre o branco natural e o preto desbotado de alguma tinta vagabunda, uma boina surrada na calvície e um par de olhos aquosos, transbordantes. Em meio àquela colmeia de jovens descolados, olhando os discos de samba e as bijuterias de coquinho, parecia um alienígena sem apelo, um perdido, uma verdadeira mercadoria sem graça.
            E ainda pior era o seu papagaio: tinha jeito de ter vivido o dobro ou o triplo do dono. Ainda que velho, este pelo menos conseguia girar a manivela com vigor e constância: já o papagaio nem se mexia, inútil e borocoxô, resumindo seus gestos num ou noutro passinho lateral, no poleiro gasto, enjaulado num amarelo torto e desbotado. Não tinha mais aquele verde exuberante, que enobrece os louros da terra: parecia um pombo doente, ou o bigode do dono, espetado e sujo, e não fosse ele guinchar, feito um alarme, volta-e-meia, poder-se-ia perguntar àquele senhor o que no mundo o teria levado a engaiolar um espanador pintado de verde.
            Desisti dos discos e da morena, engolida que foi subitamente na multidão, e fiquei parado, meio sem jeito, admirando o fantasma tristonho girar maquinalmente a manivela da valsa torta – uma representação fiel do passado que, dia após dia, sinto escapar dolorosamente entre os meus dedos. E enquanto isso o sábado seguia seu refluxo frenético, apontando objetos, regateando, desfrutando obstinada e obrigatoriamente o seu lazer de dia livre. Plantado como uma barraca, no meio do caminho, sem desgrudar os olhos, comecei a sentir que estava atrapalhando a valer, sendo gentil e progressivamente atropelado por uma dupla de casais, que me desviaram, olhando feio. Achei melhor ir para um canto, mas continuei por ali, enfeitiçado que estava por aquela valsa manca, por aquele inválido do tempo, por aquele papagaio deprimente. Passaram-se assim uns bons dez minutos, até a insistência do olhar se tornar invasiva, e o velho desconfiar. Ainda tentei disfarçar, jogando os olhos pelas mercadorias, mas mal ele mergulhou novamente no além, voltei a observá-lo: queria ver se alguém ia falar com ele; se alguém, de consciência ingênua e de ar fantasioso, ainda se dobrava ao som de uma valsinha – que “já vendeu tanta alegria”, na canção do Chico; e mais: queria ver se alguém, independentemente do interesse folclórico, realmente faria o voto de confiança de deixar aquele frango esverdeado ler, ou bicar, o seu suposto futuro.
            Mas não vinha ninguém: um ou outro ainda olhava, por mera curiosidade, fazia agrados ao papagaio. Mas, sentindo a antipatia da ave, logo se afastava. Por fim, resignado à minha própria curiosidade, somada a um asqueroso, incômodo e católico sentimento de pena, abri caminho do meu canto até o realejo, disposto a fazer uma pequena contribuição, puramente cristã, para a existência daqueles dois seres – ainda que custasse ler, sem a menor fé, a tal da minha sorte.
            - Boa tarde! – exclamei, meio sem jeito.
            - Boa! – respondeu, com educada simpatia.
            - Cróóóó! – resmungou o papagaio.
            - Eu queria... eu queria, meu amigo...
“Que o senhor fosse eterno”, gritava minha alma, mas tudo que saiu foi:
- Tirar a sorte....!
            - Pois não.
            Semiabriu rapidamente a gavetinha empenada sob a gaiola, e atacou a manivela com afinco – no que a valsinha, até então torta e monótona, cresceu frenética e diabólica, como num número de circo. Por fim o papagaio, entendendo o sinal, acordou da sua inerme apatia, inclinou o corpo para frente e bicou um papelzinho do compartimento esquerdo da gaveta – estendendo-o para mim, pescoço em sanfona num gesto de impaciência..
            - Pode pegar – sorriu o velho pelos bigodes.
            Delicadamente, arranquei o bilhetinho do bico da criatura, não sem medo de que me mordesse. Mas o pernóstico, mal viu seu dever cumprido, recuou o corpo num arrepio, e voltou ao seu estado de esnobe contemplação.
            Desdobrei, sem vontade, e li:
         
           Cuidado para não tropeçar
nas pedras que encontrar no caminho
           
Uma frase que, tirando o apelo drummoniano, transferido do passado para o horizonte de expectativas, pouco sugeria além do seu sentido trivial, de tão batida e esvaziada que é a pobre da metáfora. A não ser que pedras de fato passassem a aparecer no meu caminho, e eu, distraído que ando, corresse o risco de tropeçar em uma delas. Ou em várias... amassei novamente o augúrio, enfiando-o no bolso da camisa, por recordação e, também, por segurança – vai saber!...
Mas era o de menos: não tinha feito aquilo por simples carência ou por absurdo misticismo: foi pra travar algum contato com aquela figura ancestral, baluarte de um passado ameaçado, se arrastando na terra com um papagaio e um realejo, sempre na espera, quem sabe, do dia em que tudo finalmente irá para o inferno.
- Muito obrigado. Eu... fazia tempo que eu não via um realejo, sabe? Uma raridade... e moro aqui desde sempre... o senhor não vem aqui sempre, vem....?
- Sábado sim, sábado não...
- Uma raridade, uma verdadeira raridade – prossegui. – Não tem muitos realejos hoje em dia, não é?
- Só alguns...
- E... dá pra viver?
- Se dá?! É essa hora só, que é ruim... mais tarde chegam as crianças... em um dia faço um bom dinheiro.
- E é mesmo, é? – me espantei com a intromissão do dinheiro imundo na minha melancolia.
- Ah é! As pessoas querem ler a sorte delas... e tiram foto, mexem com o louro. É um bom negócio! Quer ver, ó – parou por um instante a musiquinha insistente, futucou no bolso do colete e tirou um chumaço de cartões, separando um. – Aqui, toma. Dá uma olhada pra você ver.
Peguei incrédulo o cartãozinho – desde quando tocador de realejo tem cartão de visitas! Aproximei-o da vista, contra o sol, e, ao lado de um papagaio feliz, porcamente desenhado, li:

Associação paulista dos tocadores de Realejo
Marco da Silva

E atrás telefone, endereço, e-mail e o escambau.
- Se você quiser procurar...! – continuou, retomando o lenga-lenga da manivela, conforme um respeitável casal se aproximava, com dois pimpolhos. – A gente organiza festa, casamento... debutante, e... como que é? aquele de judeu...
- Bar mitzvah? – perguntei, incrédulo
- É! Isso! Tudo isso aí a gente faz! E tem o programa de TV também, se interessar...
- Programa de TV?!
- É – confirmou, com orgulho e seriedade –, na Globo, todo dia de manhã. Tem um programa lá agora, eles tão acompanhando o trabalho da gente. Acho que é às nove. Dá uma olhada lá!
E passou a atender o casal dos pimpolhos, no mesmo ritual mecânico de acelerar a música do órgão, cutucar o papagaio e abrir a gavetinha. Sem nenhuma reação, tentando digerir aquilo tudo, fiquei observando o trabalho regulamentado do realejo, com associação paulista, horário na TV, talvez com CLT e participação no Programa do Jô. Como a multidão arrefecesse, e mais duas famílias se aproximassem do realejo, esbocei de ir embora. Mas lembrei que faltava pagar.
- Ô... seu Marco: muito obrigado, viu? Pela sorte... e quanto é que fica aí, o bilhetinho?
- Imagina... é dez reais – respondeu, distraído.
- Quanto?!
- Dez reais. – confirmou, com naturalidade.
- Pelo...
- É, ué, pela leitura da sorte. Tem que alimentar o bichinho.
E sorriu, apontando o papagaio esnobe, que acabava de tirar um papel para uma criança rosada. Sem ânimo para discutir, saquei uma arara do bolso, odiando a mim e às minhas convicções, e a estendi para o senhor dos bigodes.
- Não é pra mim não... É pra ele – debochou.
No que o presto papagaio, ligeiro para os negócios, mais uma vez se deslocou, arrancando num gesto bruto o último dinheiro que eu tinha e depositando-o na mesma gaveta, ao lado dos bilhetes da sorte.
            “É o preço da saudade”, murmurei amargamente, conforme me enfiava de novo na multidão, que acorria para o Chorinho da praça Benedito Calixto.

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