terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Suspeita


       Era uma tarde daquelas meio, bem, nem bonitas, nem feias, meio acinzentadas mas mesmo assim muito quentes, que costuma fazer em São Paulo no mês de janeiro quando o calor não é totalmente infernal. Mas mesmo assim, apesar desse climinha que sempre desanima muitos, eu seguia com cara de bacana pela Teodoro Sampaio, cantarolando um tema de Gershwin, olhando para os lados, atrás de flagrantes de esquina ou de garotas bonitas na frente das vitrines. Eu me sentia particularmente bem esse dia, estava vestido com uma camisa listrada, calças recém-lavadas, e levava minha bolsa a tiracolo, com cadernos e livros, como sempre. Estava de barba feita e cabelo cortado, um pouquinho mais descolado do que normalmente ando, com minhas roupas e gestos de senhor de idade.
         Talvez fosse isso o que me fizesse sentir um pouco mais bacana... mas que também pode ser motivo de cautela: a Teodoro Sampaio é hoje em dia uma das ruas mais policiadas de toda a capital, depois que houve uma história de arrastões e assaltos quase crônicos ao comércio da região. A Associação Comercial chiou – como é de lei – e poucos dias depois inúmeras duplas de homens da lei passaram a patrulhar, com passos calmos e olhar sério, esse nosso glorioso e triste bairro dos Pinheiros. Devem ficar por aqui pelo menos até o fim do ano eleitoral, quero crer, e depois os crimes que se resolvam com o novo prefeito. Há muito que já me acostumei a essas rondas, que de início me deixavam bem constrangido até quando não tinha nada de errado, mas mesmo assim nunca se sabe: sou jovem, cara de descolado... tenho amigos que simplesmente por estarem vestidos desse ou daquele jeito foram abordados com toda a delicadeza característica dessa nossa instituição civil, herdeira dos anos de chumbo, e por isso não me descuido: olhar baixo, cara séria, possíveis provas contra mim mesmo sempre ao alcance da mão... e depois que passam, volto a andar normalmente, à paisana.
         Mas estava um sábado tão agradável, pelo menos na minha cabeça, que até me esqueci destes procedimentos de segurança pública para se andar normalmente na Teodoro Sampaio. Estava quase sorrindo de bobo, olhando um grupo de meninas que passava do outro lado da rua, quando reparei num enorme vulto cinza, avançando lentamente na pista contrária, como uma onça... primeiro só tinha percebido a parte dianteira da blazer, enorme, possante, e achei que fosse um desses carros de bacana querendo fazer pose para as mesmas garotas que eu tinha reparado... mas depois, quando joguei discretamente um olhar mais atento ao veículo, pude ver a oficialidade da coisa, representada nas cores e no letreiro que se impunha na lateral:
         R...OTA
         Aos desavisados, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Confesso ignorar, apesar de ser graduando em História, quem foi o ilustre cidadão Tobias de Aguiar, quais as suas contribuições à nação brasileira ou, ao menos, ao estado de São Paulo. Mas não é preciso saber de Tobias de Aguiar nem de mais ninguém para perceber como e o quê fazem as tais Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Basta olhar um pouco acima do letreiro, em letras garrafais sobre o plano cinza da viatura, e ver homens de cara fechada e até mesmo um pouco assustadora, para fora, debaixo de uma boina ao estilo militar, como cães ou falcões a espreita da caça, intenção que as enormes e assassinas geringonças que seguram para fora do automóvel parecem confirmar sem titubeio. O titubeio aqui se confunde com o próprio instante fatal. De armas também eu entendo tanto quanto de Tobias de Aguiar, mas não é lá preciso um conhecimento enciclopédico para ver, ou ao menos imaginar, qual a potência assassina dessas pistolonas. Se a compararmos com a humilde pistolinha que portam os policiais militares, podemos chegar a tratar estes por “você” e confundi-los com um guarda de trânsito ou mesmo com um civil, um segurança, um tomador de conta de rua. Não que não seja um revólver, objeto destinado unicamente a cravar peças de chumbo na carcaça alheia, mas a impressão ao ver um carro da ROTA e suas quatro bazucas – inclusive a do motorista – para fora do carro pode gerar semelhantes disparates.
Eu pelo menos fiquei completamente besta, tremeliquei. Não sabia nem onde colocar os olhos, que, vagando nervosos entre a calçada e a rua, acabaram por esbarrar com as faíscas raivosas do olhar de um dos homens fardados. “É o meu fim!” pensei, enfiando as mãos no bolso, mas me acalmei ao perceber que ele nem tinha dado conta, e a viatura ainda avançava mansamente, implacável. E ai de quem buzinasse! O jeito era seguir com a mesma calma de antes, quer dizer, olhar reto, tentar recompor o sorriso, e o assobio... bem, não, assobiar com a ROTA ao lado é falta de respeito. Cantarolar, talvez, e olhar as meninas... isso. Tentei me recompor à caminhada habitual, mas logo tropecei em uma caixa e quase me espatifei no chão, trombando antes num casal. Boa, Pedro! Agora todo mundo já sabe que você é um assassino em série, quer dizer, não! Nunca matei ninguém! Eles precisam saber disso, sou inocente!
A viatura já até tinha passado, mas com essa minha sorte, claro, terminou por parar no próximo farol. Com a distância pude pensar um pouco melhor: será que houve algum crime hediondo aqui pelas redondezas? Olhei com suspeita envolta: um casal passeava, um velho levava o seu cachorro... hum, esse cachorro, bem que... não, não, é só um cachorro. Quem sabe na padaria não houve um arrastão, um esquartejamento compulsivo e sanguinolento? Mas ao olhar o balcão, dois tiozinhos discutiam apontando para a tv, e uns rapazes comiam seus x-saladas... ora, o que houve, então? Tudo muito suspeito nesse sábado...
Pude ver que a viatura agora se movia ainda mais lentamente, como se fosse encostar... e do meu lado da rua! E reparei que me olhavam, agora diretamente. Deus, não é possível, só pode ser comigo! Mas o que foi que eu fiz! E como eles souberam? Ah, meus amigos, meus falsos amigos! Algum é delator, algum certamente é delator, contou a eles que eu... mas cacete, eu não fiz nada! Só se... mas será? Não, não tem como, isso não... será isso? Justamente isso? Como, tão discretamente? Ora, eu fui tão delicado! Não, eu sou inocente! Inocente! Eu sou inocente? Ah! Já não sei mais de nada, vou me confessar, é melhor, é melhor!
A viatura como que por ironia ou justiça se aproximava de mim, que já suava frio e rezava as poucas orações que me foram ensinadas. Bem, o meu dia chegou! Não tinha como escapar: se corresse eles descobririam tudo, ficaria evidente, quem deve teme. E a viatura parou, com os seus quatro canhões postos para fora, minhas pernas  começaram a tremer, a vista escureceu... era isso, não havia saída. Pelo menos me manteria digno, impassível... e tentaria ligar para minha mãe, ela entenderia, me perdoaria... ai, minha mãezinha!
 As duas portas da viatura que davam para a calçada se abriram, e os homens saltaram de arma em punho, gritando: “Mão na cabeça vagabundo!”. O sujeito logo largou da carroça de papelão e das sacolas que carregava, e foi puxado por um dos oficiais até o canto, onde, com um chute na perna, começou o interrogatório. O abordado da vez era o Gervásio, morador há muitos anos do arco do portão do cemitério São Paulo, na Cônego Eugênio Leite. Aqueles que já foram abordados pela polícia, em geral, devem conhecer os procedimentos e o profundo respeito ao cidadão brasileiro que essa nossa instituição emprega ao velar pela justiça. Especialmente na abordagem daqueles que, por descaso ou por pobreza, esquecem a carteira de identidade junto à esteira. Eu, de minha parte, nunca passei por isso, e fiquei bastante impressionado... mas não parei para olhar: graças a Deus, não era comigo! Dessa vez eu passei, mas... não, não, eu não fiz nada!
Segui aliviado, contente, e aos poucos consegui recompor o sorriso de bacana com que passeava antes de passar por essa situação, talvez um sorriso até mais bonito e agradável. Estava uma tarde de sábado tão boa...!
Só não consigo entender qual foi o crime do Gervásio.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Abandono

         Depois de vários recados, encontros pretensiosamente ocasionais (sabia por onde andava, e quando), e alguma conversa mole, finalmente consegui marcar um encontro com a moça que, numa depressiva mesa de bar domingueira, tive a sorte de conhecer através de um amigo. É verdade que ele não ficou lá muito contente com meus galanteios, e com a bola que ela, supus, me deu no dia em que nos conhecemos. Também tinha lá suas pretensões, não a conhecia há muito tempo, e ela era linda: cabelos castanhos, claros, cuidadosamente embaraçados em cachos até um pouco abaixo dos ombros, expostos no vestido amarelo que contrastava com a escuridão quase negra dos olhos vivos, mas distantes, alheios... e como ficassem um pouco menos alheios ao ouvir as besteiras que eu contava (porque toda fala intencional de um homem é, no fundo, uma grande besteira), a noite de meu camarada ficou mais enfadonha conforme percebia ser passado para trás, embora se sentasse ao seu lado, contasse anedotas, enchesse seu copo. ..

         No fim da noite ele ficou com a conta, e eu com um sorriso de “até".
         Seu nome era... bem, há coisas que se esquecem de propósito. Talvez fosse Catarina, ou Carolina, Clara, algum nome com c... mas de que importa o nome, se tudo passou, e todavia seu rosto e figura ainda se formam com perfeição e detalhes na minha memória? Com mais perfeição e detalhes do que realmente tinha, na mesa imunda de bar, na fila da lotérica, no banco de ônibus. Nesse último em especial minha memória me traz a mulher mais extraordinária do mundo, ou pelo menos de minha curta vida. Se por efeito de idealizações ou se de fato, isso já não posso dizer. Mas é certeza de que a tarde, de um alaranjado manso e quente, muito contribuiu para todo esse efeito, conforme projetava da janela em que encostava a cabeça uma forte luminosidade sobre seus cabelos, que ardiam castanho claro, mexendo com o pouco de vento que soprava,  e principalmente sobre seus olhos baixos, distantes. Em certas curvas, quando o ônibus se mexia e a angulação do poente passava para outro lado, a luz laranja penetrava no seu olho esquerdo, clareando a íris do olhar ausente na paisagem com inúmeras cores, tons, formas...
         - Olá! – me sorriu levemente.
         - Ah, oi, tudo bem! Como, é... e ai?
         A fala era inesperada na minha estúpida contemplação. Não há necessidade do verbo em certos momentos, principalmente nos ônibus. Mas meu olhar de basbaque deve ter se tornado a um tal ponto invasivo e persistente que mais nada lhe restou senão começar uma típica conversa de condução pública. Mesmo que não soubesse quem eu era (não se lembrou do meu nome): supôs, pelo atrevimento, que devia me conhecer de algum lugar.
         - Do bar, no domingo, com o...
         - Ah, sim, pode crer...
         O senhor que se sentava ao seu lado se levantou, por sorte ou por sina, e continuamos juntos até o fim da Cardoso de Almeida. Entre conversas vazias, risos, silêncios prolongados, barulho. Meu nervosismo só se acalmava nas paradas, pois tinha aonde lançar meus olhos, fazer comentários sobre as pessoas que desciam, ou sobre os lugares em que o ônibus parava – e ela ouvia tudo com a mesma alegre indiferença, às vezes sorria, às vezes só murmurava, sem tirar os olhos da paisagem. Foi por um milagre que, à esquina com a Homem de Mello, olhou-me direto nos olhos, longamente, mas séria, atenta, completamente ali.
         Depois disso foi fácil conseguir um encontro.
         Tudo muito batido, como sempre: um bar nas imediações da Paulista, cinema, talvez, livrarias, gente bonita e esnobe passando e passando rente à mesa bamba na calçada larga. Pus um calço no pé menor com um maço velho de cigarros que tirei do bolso, e ela riu: tudo estava certo. Ia pedir cerveja, mas fui surpreendido com uma cara de aversão, que logo em seguida virou-se para o garçom e pediu uma dose de gim tônica, voz decidida e calma, forte. Humilhado, fiz uma cara séria e não quis ficar para trás: pedi uma dose de alguma cachaça, não tão barata, mas nem por isso boa.
         A escolha por destilados era a minha sorte grande. E nem digo isso por ela, mas por mim mesmo: o lirismo contemplativo, com que disfarço a minha completa inaptidão com as mulheres e outros enigmas, normalmente não aguenta nem a primeira dose de qualquer bebida um pouco mais forte, cede, e de repente me vejo como um homem normal, de meu tempo, sem usar palavras estranhas ou recitar poetas mortos no século passado. Isso quando não me torno um chato completo, mas não foi o caso: a conversa fluía, calma e de fato envolvente, e não só de minha parte, num qualquer monólogo pretensioso, mas principalmente dela.
Seu olhar já não era mais perdido ou ausente. Estava ali, entre o copo e meu  rosto, fixo, embora um pouco turvo e indeciso lá pela terceira dose de gim, e acompanhava expressivamente a conversa, falando sobre seus dias, sobre alguns filmes, pessoas... as que gostava, as que gostou, as que simplesmente não suportava. Era música, pianista, mas às vezes mesmo a música lhe aborrecia, e para isso tinha o cinema e umas tantas amigas, ou amantes.
Eu acompanhava a conversa, fazia ponderações. Ela ouvia atentamente, concordando ou protestando, sempre com algum interesse sincero e com respostas rápidas. Em suma, estava lá de corpo e alma, já não ria tanto aquele riso nervoso de quem não sabe o que fazer, e a conversa era realmente boa, íamos nos enredando, entretendo, envolvendo... até que num instante nossos olhos se fixaram por um tempo novo, denso, em que aquele efeito da luminosidade sobre seu olho se deu da forma mais extraordinária, talvez por efeito do gim. A respiração apertou, as mãos quase se tocavam, mas um ônibus passou barulhando pela rua e já nada mais disso existia. A mesa, só a mesa nos separava! Praguejei mentalmente, mas por fora ainda nos olhávamos, rindo, até que ela desviou o olhar para a rua. Já era a sua quinta dose, a minha terceira. Julguei ser a hora certa de ir ao banheiro.
“Agora já era!”, pensava, ébrio e vitorioso, enquanto abria a braguilha. “Depois dessa... só preciso dar um jeito de mudar de lugar, sair do outro lado da mesa... se ela levantasse! Bem, posso tentar fazer ela levantar, ou então puxar a cadeira para o lado... talvez até mudar de bar, e numa esquina... bem, veremos”. Saí ainda pensando nas estratégias possíveis, calculando distâncias, medindo palavras, margeando o balcão com passos calmos e bêbados. Estava muito alegre: quem sabe não estivesse amando? Não seria tão absurdo. Só de estar em sua companhia, de ter diante de mim sua voz e seus olhos, já me realizava. Com um beijo, então... só seria preciso armá-lo, propô-lo. Era um risco, de fato, mas é preciso arriscar. E estava decidido: arriscaria.
Mas o que nos cabe escolher nesse mundo! Nossos cálculos, intenções, desejos, é tudo esforço vão, coisa mesquinha ante os movimentos da terra: quando cheguei na rua, no canto em que estávamos sentados, vi a mesa vazia, e já limpa. Como assim? Parei, perplexo, pensando que talvez tivesse confundido o lugar, ido à mesa errada, não sei, devia ter algum engano, como a pessoa simplesmente parte sem mais nem menos? Olhei no outro lado do bar de esquina, e nada. Era isso mesmo. Ainda dei uma volta, perguntei ao garçom, mas não tinha outra saída: ela havia ido embora, e também tinha deixado a conta paga, é verdade, mas... se foi sem dizer nada! Sentei bêbado na sarjeta, tentando entender alguma coisa: teria me avisado? Tinha algum compromisso? Não me lembro, mesmo tendo estado com ela a tarde inteira, não sei se ela chegou a me contar. E, se contou, não sei se nos meus devaneios, consegui ouvir alguma coisa que já não fosse minha. Não sei nem se ela de fato estava lá, com aqueles estranhos olhos fixos, presentes. Nada disso era normal.
Não me lembro se cheguei a vê-la depois disso tudo, se chegou a dar explicações, e se eu cheguei a entender de fato o que se passou. Só sei que, agora, neste exato instante, ela me acompanha, olhos ausentes a mirar o nada ao meu lado.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Matutino, por ocasião de um retorno.


     Acordo às 8, 8 e meia da manhã, com o mesmo infernal e insistente barulho de serras, martelos e gritos da obra da rua de trás. E, como se verifica pela janela, devido ao tamanho ainda insipiente do edifício, que foi planejado para ter os seus 20 andares, é só a primeira de inúmeras manhãs de barulho que ainda virão por este mês de janeiro, tempo que me resta na capital paulista, na nação brasileira, no continente americano. O que há algumas semanas era um hábito corriqueiro, agora tornou-se objeto de reflexão e, vejam só, até de literatura de baixa qualidade, de reflexões elegíacas, enfim.
         Há dois dias atrás ainda acordava com o cacarejar de inúmeros e desajustados galos, que se sucediam em ondas esporádicas de cacarejos desde as 4 e meia da madrugada até as sete horas da noite. É fato conhecido a independência dos arrabaldes interioranos dos relógios das grandes capitais, fato este que se desdobra até em seus galos. Mas aqui, em Pinheiros, a obra da rua de trás é fatal em sua pontualidade, talvez maquinada pelo chefe de obras, por sua vez maquinado pelo engenheiro chefe, que também (é claro) é alvo de maquinações: do presidente da empreiteira. O último, embora seja o que aparentemente mais manda nessa terrível cadeia que coordena meu  despertar diário, talvez seja o mais maquinado de todos, pois obedece às grandes operações e transações do capital financeiro globalizado, à especulação imobiliária, às bolsas de valores de 5 continentes... pode ter seus gestos e decisões decididos por um chinês de Pequim, com a desvantagem de não sabê-lo e, portanto, não ter como pelo menos xingá-lo, como eu mesmo xingo o mestre de obras todo dia às oito e meia da manhã por me acordar com o barulho da serra e seus gritos.
         Galos ou serras, de que me importa? Quem sabe tudo não é coordenado em grandes esferas, num ritmo só descoberto pelo poeta russo Velimir Khliebnikov? Mas deixemos os galos para lá da Bahia: a cidade ruge suas metafóricas engrenagens além dos vidros de minha varanda, e vejo como cada ser humano se concatena com esse ritmo internacional das ruas de meu bairro, a começar pela obra já descrita, que me despertou e me obrigou a escrever. Ora, tanto melhor! Hoje não xingo o mestre de obras, antes o abençoo. São Paulo, ah, ponto de fumo na imensidão verde dos idealistas do Brasil! Verdadeira pátria dos elevadores, da internet sem fio generalizada, das pieguices natalinas da av. Paulista! Poderia dizer também da Cracolândia, mas parece que dissiparam a ocupação do Lgo. Sagrado Coração de Jesus, não sei, confesso ter mantido distância de todos os jornais nesta última semana. Mas no momento não quero saber de jornais, quero mais é saber de minha janela, por onde um vento frio (consideremos janeiro e os idealistas do Brasil) vem beijar minhas cobertas e um céu cinza, cinza de doer, salpicado aqui e ali de branco e de preto, se espraia por cada prédio e por cada alma passante, como um mar recortado para o plano celeste e urbano.
         Isso agora às 10 horas da manhã. E ao meio-dia, como será? Em São Paulo nunca existe a plena certeza de que, dentro de uma hora, ou mesmo dentro de dez ou quinze minutos, a cidade subsistirá da mesma forma, de que sua matéria ainda será concreta, de que seus carros e vias ainda circularão e de que  suas cores serão as mesmas. Falo das medidas do tempo, mas aqui ainda se pode falar com plena certeza (ao menos sobre isso) de que à esta medida soma-se outra, a medida do espaço. Pessoalmente gosto de computá-la em esquinas, por exemplo: dobre-se um número tal de esquinas da rua 13 de Maio, no Bixiga, bairro folcloricamente paulistano, e encontrar-se-á na av. São Luís, a avenida mais carioca de todo o Brasil. Eis a transformação!
         São Paulo, como entender suas transações econômico-espaciais neste crivo de afetividade matinal? O barulho da obra e o burbúrio dos carros prossegue indiferente às minhas elocubrações, como um rio ou uma pedra, que só obedece a si e àquele velho ritmo das esferas etc. etc. E sei que, dentro de tantos meses, quando eu já não estiver mais neste hemisfério ou mesmo neste planisfério, o prédio prosseguirá sua marcha lenta e constante, todo dia às oito e meia da manhã, até atingir a meta suprema de seus vinte andares... para depois morrer. Assim também são os automóveis, em relação aos seus compromissos inadiáveis: chegar, e morrer. Minha escuta é somente um momento, aliás nada indispensável, de sua existência urbana nas transações internacionais de meu bairro.
         Sinto que fico para trás... todos chegam, e eu? Eu escrevo como chegam, aonde chegam... é fácil escrever estirado numa cama, mesmo quando uma obra insiste em martelar sua consciência. Mas também preciso chegar a algum lugar, me conectar às esferas internacionais de Pequim, de Londres, de Moscou... ao menos da Teodoro Sampaio.
 É melhor que eu me vista rápido, e pegue um ônibus pra qualquer lugar.