terça-feira, 30 de outubro de 2012

A lei de todos


“E o bonde que parece uma carroça:
Coisa nossa, muito nossa"
Noel Rosa

Entrei no ônibus e, por sorte ou malandragem, consegui me sentar: era um daqueles dias em que a gente sabe que merece sentar, e de um tal modo que, quando conseguimos, não ficamos com aquele típico remorso pelos que vão de pé e nos olham, invejosos. Mesmo sabendo que o ônibus está cheinho e que aquela moça ali, ares de cansada e cheia de sacolas, talvez sinta tanto quanto você que merece se sentar.
         O dia de fato tinha sido difícil: estava exausto e irritadiço. Já nem ligava tanto para o cheiro de suor, ou para as cotoveladas do sujeito ao meu lado, mas estava de um jeito que qualquer barulho me incomodava: conversa, porta se abrindo, celular. Até certo nível ainda relevava. Mas o destino conspira contra os que se irritam facilmente.
Aconteceu que aquela moça, de cujo lugar me apossei, sem mais opções, foi se escorar onde pôde, mais ou menos perto do cobrador que cochilava, distraído. E foi mal ela chegar lá que ele, sabe o diabo o que lhe deu!, de pronto acordou, viu a cabrocha e  abestalhou-se, tentando puxar assunto ou, ao menos, travar contato. Mas ela não estava nem aí pra nada. O doido ainda tentou milhares de artifícios, desdobrou-se: nenhum tirava ela daquele denso estado de contemplação, quase vegetal, que é costume sabido  das mulheres belas quando ao uso do transporte público.
A coisa parecia mesmo sem solução... até que ele tentou seu último recurso, do mais ousado romantismo: gritou bem alto ao motorista, acordando a mim e a meu vizinho, e, dentro em pouco, de cada canto daquela lata velha, começou a tocar um bolero-brega pavoroso, de um sentimentalismo de ano-novo na Globo. Aliás, antes fosse: aquilo era pior do que a velhice do Roberto Carlos. Mas foi tudo dedicado ao amor, imaginem. Houve a princípio certo estranhamento geral, mas ninguém sequer esboçou reação. No fundo no fundo o mais provável era que todos, principalmente a mulher, estivessem adorando. Todos menos eu, que, já vindo de um mau dia, pressentia os sinais de uma longa tortura, já que tinha que ir quase até o ponto final.
De início não quis acreditar, mas logo me convenci: era real, e não ia parar. E me levantei num impulso pra reclamar daquela folga. “Não sabe ler não, meu amigo?” Diria. O jornalzinho informativo da SPTrans, colado na frente de meu banco, trazia justamente esta lição, muito bem desenhada, entre desenhos de pintos feitos à caneta: não se deve ouvir música alta no busão, de modo a garantir a todos os passageiros um pouco menos de infelicidade. Ia dizer isso mesmo, ou quase isso, ele ia ver. Mas quando vi o cobrador de paquera séria com aquela moça, quase dançando, entendi e abrandei involuntariamente as sete pedras que tinha na mão. Não seria assim tão filho-da-puta: se fosse por causa da moça, ah, mulher!, tudo bem, vá lá, esperaria. Mas só até essa história se resolver.
Altruísmo que, como qualquer boa intenção, obviamente não seria recompensado ou sequer reconhecido. Deram uns dois pontos e, olhando pelo espelho da frente, vi que a moça descia, não sem antes deixar com o cobrador um papelzinho, supõe-se que com seu telefone, verdadeiro ou falso. Aliviado, com princípios de dor de cabeça, suspirei, alegre pelo êxito do cobrador e, ainda mais, pelo que supus ser o fim do suplício da música na lotação. Mas não passaria de vã esperança: o cobrador, parece, tinha achado a própria ideia muito boa (afinal, quem não gosta de música?), e resolveu no fim das contas deixar o coletivo assim mesmo, animado agora sabe o demo com que sertanejo dos infernos, entremeado por barulhentas propagandas de rádio. E até então ninguém tinha reclamado: pelo jeito eu era o único que não estava feliz. Mas não tinha como me constranger. Estava nos meus direitos, e aquilo estava realmente me incomodando. Por fim deixei a vergonha de lado e me levantei pra reclamar.
- Ô amigo – comecei, cordial, mas sério – você me desculpa, mas não dá pra ouvir a sua música o tempo todo não. Nem pode ouvir música alta assim no ônibus, você sabe disso.
O homem se virou  com certo desdém, talvez por ter acabado de se provar um gostosão, talvez pela alta incumbência dos trabalhos de cobrador. A autoridade suprema de que era dotado, pelo visto, tinha lhe subido à cabeça, e resolveu me tratar como eu fosse um trombadinha sujinho pedindo carona, ou um bóy pagando a passagem com uma nota de cem contos.
- Ué, não gosta não, é, doutor? – riu de canto, sem mal me olhar. - Dorme aí. Ou põe um fone, só não enche o saco.
Cachorro! E eu ainda tinha tentado ser gentil.
- Não tenho fone não, bróder. E quem tá enchendo o saco é você. Você está errado. Não sabe ler a placa ali em cima não? Vai, desliga aí, cara, numa boa, por favor.
E fiquei olhando pra ele com uma cara séria, fixa, sem nenhum signo de agressão mas também sem qualquer paciência. Ele até bancou por uns segundos, achei até que fosse mandar um “você sabe com quem está falando”, mas a saída foi ainda melhor:
- Aê gente! – gritou pra condução inteira. O som aí tá incomodando alguém? Porque o velho aqui  - e me apontou de maneira bem indiscreta – tá enchendo o saco pra desligar.
A princípio ninguém falou nada, naquele silêncio típico, em que todos fingem, de um jeito ensaiado, que a história não é com eles. Mas logo uma moça cheia de tralhas  tomou coragem e respondeu, num sotaque forte.
- Não, podexá! Tá muito bom, esse rapaz aí é que é chato.
E depois um senhor respeitável
- Não tira não, que tá bom!
E mais muitos se manifestaram em prol do trolha do cobrador. Até tentei redarguir com a legislação, mostrando a placa no alto do ônibus, junto com a de “proibido fumar”, argumentei. Mas quem queria me escutar? Podia até ser linchado. E antes que o cobrador pudesse olhar de novo na minha cara, selando sua aclamação democrática na minha mais completa humilhação, já tinha voltado de fininho para o  meu canto, profundamente aborrecido. Quanta injustiça num ônibus! Aquilo não podia passar assim... Agora era questão até de honra... não, não de honra, mas de justiça, sem dúvida. Ele estava errado, ninguém era obrigado a ficar ouvindo música nenhuma, isso é um direito! Nem que fosse Chico Buarque, vai saber quem ali não estava cansado, e sem vontade alguma de ouvir música, como eu mesmo estava, mas que não teve ânimo pra se manifestar? E ao mesmo tempo a plaquinha ali em cima, tão óbvia quanto ignorada, do lado do proibido fumar... miséria!
O ônibus parou em outro ponto. Mas ainda faltavam uns dez.... a música não só não parava como ia ficando cada vez pior. Agora eu reconhecia: era Ivete Sangalo. Cogitei a hipótese de pular pela janela, mas desisti: não ia me humilhar a esse ponto, e de qualquer forma o ônibus já tinha partido, levando um senhor que, antes de entrar, apagou o seu cigarro e soltou, por acaso ou de propósito, a última baforada já dentro do ônibus. As reações, claro, não poderiam ser mais previsíveis: mulheres tossiram, numa falsidade perfeita, alguns reclamaram, houve rebuliço. Mas me deu a ideia que faltava. Olhei pra a plaquinha no alto mais uma vez, certificando-me da coerência de meu absurdo, e, sem pensar mais para não desistir, saquei lesto do bolso um cigarro e um isqueiro.
- Com a sua licença – pedi, por mera polidez, e o acendi numa longa tragada, que fiz questão de arremessar, na expiração, para o lado mais próximo do cobrador e da concentração do seu partido. Meu vizinho na verdade estava dormindo e não percebia nada, só se lhe pusesse fogo. Mas as primeiras reações não tardaram a aparecer.
- Eita que cheiro é esse de cigarro?
- Nossa senhora que cinzeiro!
- É o rapaz ali ó! Ô meu jovem, não pode fumar aqui não, cê não sabe?!
- Ah é? Nem ouvir música alta, e vocês tão ouvindo – retruquei numa tragada hollywoodiana, realizando, no fundo, junto com a vingança, o sonho de fumar num ônibus. Mas as reações pioravam, as pessoas começavam a se irritar. Só o velho recém-chegado que, surpreso, julgou se tratar de uma condução liberal e resolveu também acender seu próprio cigarro, de palha, bastante fedido. Um outro, de um canto, também entrou na nossa e sacou até um cachimbo.
Estavam formados os partidos. E o antifumante já espumava.
- Moço apaga esse negócio! Não sou obrigada a ficar cheirando a fumaça dos outros. Isso mata!
- Também não sou obrigado a ouvir essa música aí não, que emburrece. Tá escrito lá em cima, ó! Proíbido fumar e ouvir música alta. Só que quando eu reclamei só faltaram me bater. Agora aguentem.
E dei outra baforada. No fundo estava me divertindo.
- Só que acontece que a música não incomoda ninguém. Nem faz mal! – virou-se uma outra mulher, se achando esperta.  – Cigarro mata e é nojento! – veio na intenção de tirar meu cigarro de mim.
- Nojento?! Nojenta é essa música aí de vocês, puta que o pariu, viu?! E tira a mão daí, dona! Me deixa! – Retruquei, e logo fui aplaudido pelo velho fumante, que assistia, entre tragadas, toda a cena, animadíssimo. Só que nisso a frágil brasa do seu palheiro acabou caindo, e justo no vestido da moça que se sentava ao seu lado. Depois de queimar o tecido, queimou foi a própria perna da moça, que fez um escândalo e começou a dar bolsadas no pobre do velho, que tentava se esquivar e ao mesmo tempo apagar o braseiro que se formava no pano. Nisso o cobrador, que se fazia de desentendido, teve finalmente de dar as caras na parte sublevada da condução: mas já não era só eu quem fumava, mas uns quatro ou cinco, e ele não sabia por quem começar. Até cheiro de maconha já rolava, e um casal pomposo gritava absurdado contra aquele vandalismo.
Em pouco a coisa se tornou uma festa, com direito à música alta, maconha livre e o diabo à quatro, e já ninguém conseguia se entender. A moça do vestido queimado agora batia até no cobrador, porque ele, tentando apagar o vestido em brasa, acabou passando a mão na sua coxa. Em volta do baseado já tinha se esboçado uma roda. Por fim o próprio motorista, um negão de dois metros de altura, acabou perdendo a paciência e encostou o ônibus na rua, logo levantando com um cabo de vassoura para acabar com aquela, nos seus termos, “putaria do caralho”. Sentindo o perigo, os adesistas do partido da fumaça rapidamente esconderam as provas do crime, mas eu e o velho, porque envolvidos cada um em uma pendenga e sentados ambos na parte da frente, não tivemos a mesma sorte. E sobrou pra gente.
- Que porra é essa aqui?! E essa cigarreira do caralho?! – gritou o motorista meia-noite.
- É esse moleque aí, ó! – se aproveitou o cobrador, me apontando, vingativo.
- E esse velho safado! – gritou a mulher do vestido.
Sem a menor vontade de ouvir explicações, incentivado pelo clamor popular das indignadas com o cigarro e pelo maldoso cobrador, o meia-noite tirou cada um de seu canto, pelos respectivos colarinhos, com toda a delicadeza que a situação exigia, e nos arremessou em dois tempos para fora do ônibus. Por pouco não dei com a cara no chão, não fosse ter esbarrado no velho, posto para fora antes. Depois tacaram minhas coisas pela janela, e o ônibus partiu, deixando xingamentos. Fiquei, no fundo, até bem feliz de terem devolvido minha bolsa e não terem tacado nenhum tijolo na gente. Mas que tinha sido uma injustiça tremenda...! Ah, isso não! No fundo, sabia, estava certo. Aliás, estávamos! Mas quem pra fazer a lei...
- Peço desculpas, senhor... não devia ter entrado na minha...
- Não tem nada não, meu filho. – respondeu o velho, fanho, limpando a roupa e se certificando da frágil integridade física. - No fundo foi até engraçado.
- Ah é...  mas que filhos da puta, ein? Eu até, nossa, devia era... ufa! Bem, deixa pra lá, paciência. – silêncio. Cada um acendeu um cigarro. – Só ficamos sem condução...
- Ah, mas se resolve. Aonde você vai?
Descíamos no mesmo ponto, e acabamos rachando um taxi. Transporte que, além de mais cômodo, no caso não tinha rádio. E o motorista, que era fumante, de quebra ainda  nos deu aquela brecha.

domingo, 28 de outubro de 2012

O velho e a urna


         Voltei da seção eleitoral para minha casa vendo estrelas, e não só pelo cansaço de ter acordado às seis da manhã de domingo para ser mesário. Ainda menos pelo prazer futebolístico de já saber, numa expectativa certeira, que seria o meu candidato quem levaria esta eleição, e que chegando em casa ia poder gritar horrores pela janela.
         A alegria mesmo era subir a Teodoro com o quente conforto de que, finalmente, a organização das coisas não estava mais na mão das pessoas e grupos que me acostumei a repudiar. E diga o que se disser, costume fundado na vida. Posso não saber de dados, mas basta o dia-a-dia numa cidade como São Paulo para desenvolver, ainda que de orelhada, uma consciência política mais ou menos articulada. E vendo a tarde cinza, se arrastando lenta como o próprio domingo por sobre uma Teodoro Sampaio vazia, tinha em meu peito entorpecido um sentimento, de que, das esquinas, dos lugares que frequento e do afeto que eu sinto por essa cidade, em que vivo e sempre vivi, não mais me espreitavam shoppings, preços de ônibus, abandono aos pobres e policiamento moral, coisas que tanto suportaram-se, como um assalto matinal previsto em lei.
         O que, na real, me espreitava? bem, coisa difícil. A rua, claro, estava bem vazia, e poucos pareciam se mobilizar de fato com aquilo que o Tribunal Eleitoral teve a infelicidade de chamar “festa democrática”. De festa, tem pouca coisa. Mas estamos no país do carnaval, e se releva. O que impressionava e chamava à terra era ver certa falta generalizada de ânimo: os casais andavam de braços dados nas mesmas cores e ritmos com que andariam qualquer domingo; alguns velhos fumavam nas portas comerciais, já fechando; o Nélson fazia a ronda, a chuva, já ida, escorria ao longo das padarias e do Pão de Açúcar. São Paulo rangia sem pressa os seus semanais mecanismos de folga.
         A alegria ali era só minha. Mas como se diz isso para uma pessoa? Via a alegria em tudo, via finalmente alguma chance de renovação, de cuidado, de poesia, até, imaginem. Poesia de entender esta cidade e suas sutilezas, e não querer agravar seu lado que tende ao infernal. Me parecia mesmo que as janelas dos prédios, de poucos andares, vibravam com a minha alma, jogavam confetes, refletiam a humana sensação de se salvar. E também os poucos carros, até os transeuntes, coitados, que nada tinham com a minha quase ingênua euforia: levavam a vida de sempre, como sempre.
         Mas quem disse que isso chegava até mim: meu estado era inabalável. Até que, olhando para os lados, dei com a vista em um senhor sentado ao chão, na parede do Pão de Açúcar, meio sujo e alucinado. Sem dramaticidades: roupas rotas, mas ainda boas; barba encardida, mas de bom corte; sentado, e não largado no chão, as mãos maquinalmente numa posição de cunha. O desespero mesmo vinha do olhar: aqueles eram olhos já incapazes de se ver no mundo, além dos espelhos. Não sei se por alguma droga, cansaço, loucura... e isso no caso nem importava. A sua simples existência lá, tão distante e funda, já contrastava desilusória com a imagem que, nas minhas patriotadas ideais, tinha para mim do espírito geral da nação naquele instante, naquela rua. Mas o velho não fazia nada além de murmurar,  no seu canto, e tenho certeza de que não eram jingles ou mesmo propostas políticas, embora ele em si já fosse uma.
         Sentado naquele canto, passasse o ônibus que passasse, sua feição permanecia a mesma, seu olhar seguia voltado para si, ou para o mundo que se confundia com ele. Nada de urnas, debates, campanhas, mobilização: possível que nem soubesse das eleições. Possível que estivesse lá naquele canto, sentado, a mão em cunha, já há muito tempo, e eu não tivesse reparado por simples negligência. A mesma negligência que me levava a acreditar, naquele momento, naquela caminhada rumo à minha casa, que eu me integrava ainda que só por intenções à uma cidade imaginária, a um povo, a uma história, onde cabiam todos os homens. Até possível em termos: um me escaparia sempre.
         Se por opção ou contingência, não tinha como descobrir. Quem sabe não queria aquilo mesmo? E se não quisesse? O querer haveria de ter um porquê, sempre tem. Mas o ignoro. Para mim, ele foi o urubu que, felizmente, veio pousar nos meus arroubos de vitória. O que ganhei, no fim das contas, bolas, além de um domingo trabalhando como mesário? O que é que, na verdade, se projeta por detrás de todos estes prédios cinzas, preguiçosos no domingo, em todo esse lixo amontoado pelas portas, no trânsito que acabou se formando, apesar do domingo? Perguntas difíceis, que transcendem qualquer escritor de ocasião, ou pessoa de sensibilidade arrebatada.
Sensibilidade que bem gostaria de chamar àquele  homem de irmão, de pai, de Outro, mas por dever de consciência não se contentou com essas fugas naquele instante. A vitória, repensei, calmo e mais atento, atravessando os viadutos da Teodoro, não saiu das urnas. E nem a esperança. São coisas de tempos indetermináveis... uma luz acena, a luzinha de hoje, mas ainda estamos longe de chegar ao fim de qualquer marcha, principalmente daquela, a para além dos domingos burgueses, das ruas sujas e dos homens sós por vontade ou por fome.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Fim dos tempos


         P oucas vezes, na história deste país, vi rebuliços como o fim dessa última novela. Talvez, quem sabe, o suicídio de Getúlio Vargas, a derrota na copa de 50... ou nada disso, já que só me vêm à cabeça tragédias nacionais e não sei ao certo se o último capítulo de “Av. Brasil” pode ser classificado como tal. Na verdade verdadeira, eu nem assisti. Carrego mais esta mácula em meu nacionalismo, junto com a de não entender abacate sobre futebol e nunca ter ido à Bahia. Mas no caso não é preciso saber muito: a mobilização foi tão grande que é como se tivesse assistido não só o último, mas todos os capítulos da novela.
         Começou nas bancas de jornais, nas capas de revistas, nas conversas corriqueiras. A Veja, entre dois Mensalões, lhe dedicou uma capa. Depois passei a reparar naquelas televisõezinhas de ônibus: lá também se passava um resuminho da novela, não vi de pirraça. Mas para meu desespero o cerco começou a se fechar por outros lados: amigos próximos, considerados pessoas cultas e ilustradas, chegavam nas mesas de bar animados com as aventuras de Carminha ou de Tufão, e não mais pela crise econômica ou pelas eleições municipais. Tenho de reconhecer: precisamos nos aproximar do povo. Também a semana passada já começou anunciando o abalo que seria o fim dessa novela: jornais comentavam, afoitos, o fenômeno, as reações. Brotaram rumores de um apagão nacional, à la Fernando Henrique Cardoso, frustrando a coletividade e prometendo, talvez, a revolução brasileira que Caio Prado morreu sem ver. Um ou outro jornal satírico previa uma ainda mais catastrófica “falta generalizada de assunto”, uma verdadeira crise moral. Fico me perguntando se tudo isso já não é alguma espécie de crise, desde que comecei a me sentir, também, sem assunto, quando meus amigos e próximos começavam a discutir a novela. Cheguei a achar que o problema fosse eu mesmo, consultei o analista, entrei em depressão, fiz avaliações. Mas mesmo assim não me comovi, e teria relevado esta como muitas outras novelas de sucesso não fossem suas repercussões na vida prática: o engarrafamento infernal que peguei na sexta à noite, por exemplo, num bairro até pacato da capital paulista, por conta da loucura generalizada que não podia porque não podia perder o tal do último capítulo da Avenida Brasil.
Mesmo sabendo que no dia seguinte tinha reprise.
         E não parou nisso. Desci no fim da Henrique Schaumann e saí com uns amigos para tomar uma cerveja, honrando a sexta-feira pelo que ela é e sempre foi. Mas até aí teve conspiração: o bar em que íamos sempre estava entupido de gente estranha, principalmente de mulheres de seus trinta, quarenta anos, que assistiam a tv com a fixação de um cachorro faminto. O silêncio imperava, perturbado somente por esporádicas exclamações generalizadas. Fenômeno sexualmente análogo ao do futebol, quem sabe.
         Foi só depois de rodar um tantinho que achamos um bar com espaço para lunáticos e alienados. O movimento era o mesmo: muitas mulheres lá dentro,  mesas de homens lá fora. E a conversa mesmo assim não podia se desviar do movimento geral, pretendendo torres de marfim: volta-e-meia uma frase era cortada por um grito generalizado, vindo de todos os lados da rua. Predominava a voz feminina, rendendo a uma amiga a piada de que tinham derrubado milho dentro do boteco. Já os homens, bem mais embriagados e bem menos organizados, gritavam a sua maneira, um deles se exaltando em algum momento mais do que os outros e falando: “Eu sou um Tufão mesmo, viu! Sou um puta de um Tufão!”, eliminando possíveis sexismos. De modo que o assunto se impôs: parece que a novela foi realmente envolvente, devido a enorme quantidade de desventuras e picuinhas que a compuseram, fazendo, de fato, com que todo mundo vidrasse, querendo saber o que aconteceria no próximo episódio. Por outro lado a coesão geral foi fraca, boicotando o desenlace e fazendo com que essa comoção logo se tornasse uma broxada nacional, o que pude constatar a partir de segunda-feira.
         Já ninguém comentava a novela nos pontos de ônibus, nas redes sociais, nos botecos, nos comércios. Os assuntos já eram outros... mormente a salvação do Palmeiras e a nova novela das nove. Não me perguntem qual é, sou ruim com nomes, e, enquanto ela passa, estou escrevendo. Fico pensando que estamos na reta final das eleições municipais... e como petista de ocasião, não posso deixar de ficar contente: ninguém dá muita corda para a outra novela federal que é o julgamento do mensalão, e mesmo a imprensa laranja já tocou a vida pra frente, esquecida como lhe sói ser, falando de amenidades depois do trauma novelístico de tão grandes proporções. Por ironia brasileira teve apagão só no Distrito Federal: a classe nessa sexta bebeu uísque sem gelo. E aproveitando, senhores governantes, faço um apelo: precisamos providenciar com urgência algum assunto nacional! A população já sofre: intermináveis silêncios ocupam os ônibus lotados, os botecos já não vibram com mais nada, os salões de cabeleireiro não têm mais a vida que tinham, nas bancas de jornais se lê em silêncio. Teria a crise chegado ao Brasil? Em sua forma moral, talvez? Pouco provável. Os brasileiros têm fôlego e ânimo para discutir qualquer assunto, contanto que seja interessante. Acontece que a política, como a novela e o futebol, sem barraco ou risco não tem lá muita graça... e a eleição por ser municipal também não consegue as proporções que a Globo alcança. Teria de dizer respeito a todos os estados: em Brasília, por exemplo. Se, suponhamos, pegasse fogo ou fosse abduzida, garanto que seria muitíssimo comentado.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A morte do barbeiro

A Artur Moraes
 
         Estranhei bastante quando, ao bater na porta uma, duas, cinco vezes, não tive resposta nenhuma. A luz acesa, iluminando a placa vermelha com o pente e a tesoura entre os dizeres “Ubaldo Barbeiro”, acenava na direção oposta da minha fracassada tentativa. Alguém estava por ali. Não fosse isso e também o fato de que a loja de discos, no térreo sob a barbearia, ainda estivesse funcionando naquele quente fim de tarde, teria certamente pensado em alguma tragédia como a venda do imóvel, o fim da barbearia, ou mesmo a morte do velho barbeiro, que já estava na idade em que se esticam as pernas: todos os piores pesadelos de um pinheirense bairrista, saudoso, sofrido, e que ainda, pela teimosia de ir sempre no mesmo barbeiro, ficaria alguns anos feito um bicho peludo, não suportando o dilema de achar um novo barbeiro, num bairro qualquer, ou fazer um luto capilar pelo resto da eternidade.

         Seria muito digno, no fundo: Ubaldo cortava cabelos em Pinheiros desde 1964, e com uma tal maestria que nunca vi em nenhum outro barbeiro. Mesmo o português de detrás do cemitério, mesmo os melhores e mais chiques cabeleireiros da Vila Madalena não cortariam um cabelo como ele corta. Todo o segredo se resume na simplicidade e na prática. Quase 50 anos de serviço! Desde que o descobri, naquele andar superior de um sobrado da rua Butantã, não corto meu cabelo com mais ninguém no mundo. Até porque cortar o cabelo, descobri em algumas visitas, é muito mais do que apenas receber tesouradas e navalhadas e sair com uma cara de gente civilizada: é todo um ritual, desde o momento em que o barbeiro te cobre com uma capa de tecido rijo, e desfere a primeira tesourada, passando pelos inevitáveis assuntos de barbearia, mormente política e futebol, até chegar no final, o pincel com talco, o espelho, o pagamento. Cada fase deveria ser devidamente bem feita e apreciada, como se se rezasse. Daí que, depois de descobrir o Ubaldo, passasse às vezes meses inteiros com o cabelo enorme e amarrotado, só esperando a oportunidade de passar com a devida calma no único barbeiro que, a meu ver, era verdadeiramente digno deste nome.
         Ainda esperei mais um pouco, bati outras vezes na porta, gritei pelo nome, mas me dei por vencido: não houve resposta, e a luz permanecia acesa, como um enigma. Sem mais nada a fazer, desci a escadaria estreita e, dobrando sentido centro, segui num enorme vazio interno a Teodoro Sampaio, a estas horas terrivelmente movimentada. As lojas de roupas, guarda-chuvas, bolsas, cedês e salgados ainda funcionavam com o mesmo afinco, entre centenas de compradores curiosos, suarentos pela soma do calor incomum do fim de tarde à faina banal de todo dia. Em frente, nas obras do triste largo, o maquinário descansava, atrás dos tapumes do velho quarteirão posto abaixo, feito uma manada de elefantes no calor. Um moleque passou vendendo balas, que por recusar quase derrubei uma barraca de muamba, na desatenção, naqueles meus passos tortos e melancólicos de saudosista. Não me conformava com tantas transformações. E se ainda o barbeiro tivesse sumido também, daí é que... já nem saberia mais. Ubaldo era a alegria do largo. Mesmo com tudo acabando, ele ainda estava lá, cortando cabelos, tomando umas pingas, falando de futebol. Se ele fosse embora, aí sim seria o fim do Largo dos Pinheiros, e deveria providenciar na mesmíssima semana a minha mudança para outro bairro, ou mesmo para outro estado. Pois não ia suportar viver num cemitério de lembranças.
Já atravessava a rua. Junto à igreja, além dos vagabundos de sempre, encostados nos altos pinheiros da praça Septímio Severo, dava pra ver no sentido da Paes Leme outro imenso e imundo canteiro de obras, do tal recapeamento que andaram fazendo por lá e também na do Sumidouro. Eu seguia num passo lento, distraído e sem grandes impressões, me acostumando com sadismo às mudanças corriqueiras que se passavam a cada esquina. No panorama que tive do Largo, fixei o olhar nas velhas casas da esquina junto ao posto, abandonadas já há muito,  até que percebi num susto que estavam sem teto. “Em breve, novo lançamento”, concluí, melancólico e meio basbaque.
Mas uma voz roufenha me chamou à terra.
         - Ô Pedrão, você voltou, foi, rapaz?
         Tirei os olhos do outro lado da rua e me virei para baixo: o baiano atarracado me olhava, alegre, com os olhos pretos e o espesso bigode grisalho, vestido no tradicional jaleco azul da barbearia. Vinha conversando com um sujeito narigudo, de boné, a cara gentil,  volta e meia cutucando o velho Ubaldo, que trazia numa mão uma tesoura e na outra uma gordurenta coxa de frango. Mal pude conter minha alegria em vê-lo ali, vivo, alegre e ainda na boa e velha praça pinheirense.
         - Hô seu Ubaldo! – e lhe dei um tapa no ombro – tava justamente atrás do senhor!
        
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         O velho baixinho destrancou a porta num gesto duro, e dentro em pouco eu já me sentava na velha cadeira de couro preto e de altura regulável. Na verdade ele já ia fechar, tinha ido comer alguma coisa e ia voltar só pra terminar de arrumar as tralhas, mas para mim, freguês fiel, ia fazer uma exceção. Mal me cobriu com a capa branca e foi por hábito ligar a tv, somando assim ao ambiente da barbearia e às buzinas da Teodoro aquela voz escandalosa e trágica do apresentador de “Cidade alerta”. Limpou a mão gordurenta, afiou a tesoura e, no primeiro corte, puxou um papo.
         - E aí, rapaz? Faz tempo que você voltou de lá do... do... Canadá, não é, que você estava?
         - Não... – respondi, pacientemente, - eu não fui pro Canadá não, seu Ubaldo, eu fui é pra Rússia!
         - Ah, é? Rússia é?  E como é que foi lá?
         - Foi frio pra porra!
         Ele se riu, perguntou das mulheres e de outras coisas típicas da Rússia, como o comunismo e a vodka. Da segunda ele gostava muito, mas detestava comunistas. E logo começou seus causos intermináveis... enquanto isso, no fundo da barbearia o Datena narrava com horror e bile como uma criança tinha sido esfaqueada pela mãe em algum bairro da zona Norte, seu corpo encontrado na rua e a facínora desnaturada refugiada na casa de algum parente. Parece que já tinha algum antecedente, e o apresentador clamava por justiça e maldizia a humanidade. Aos meus pés, o cabelo emaranhado havia muito caía aos chumaços, formando um tapete negro, cada vez mais fechado. O barbeiro interrompeu suas lembranças com indignação.
         - Rapaz, viu que absurdo essa vagabunda aí! Tinha que esfaquear era a buceta dela pr’ela aprender a fazer isso com a filha! Onde já se viu...
         Simplesmente escandalizado, sem nenhum ânimo para discordar ou sequer concordar, assenti num suspiro de “pois é”, enquanto a tesoura deslizava suave e ágil pela parte de trás do meu crânio. Tinha até me esquecido que, embora gostasse muito de ouvir as coisas que o Ubaldo contava sobre São Paulo antiga, suas histórias pessoais e a sua vinda da Bahia, ele tinha certas opiniões meio incisivas com as quais dificilmente poderia concordar, ou mesmo questionar.
         - É meu amigo, a coisa nessa cidade tá preta! A gente num tem mais sossego... nem andar na rua a gente pode mais! A própria mãe! Também, deixa tod’esses marginal aí solto pelas ruas, daí já viu! Só pena de morte mesmo, pra acabar com esses vagabundos.
         Numa manobra para mudar de assunto, perguntei uma coisa que me interessava mais e que não era tão passível destes tão nossos e tão populares reacionarismos.
         - E vem cá, seu Ubaldo, e esse quarteirão aí da Fernão Dias? Puseram tudo no chão assim da noite para o dia?! Que coisa...
         - É, rapaz, demoliram tudinho! Não sobrou nada! Ainda tinha a lotérica funcionando lá debaixo daquele prédio, mas botaram eles na rua também! Agora não tem mais nada... nem o juiz que não queria vender a casa pro governo eles pouparam, já destruíram também...
         - E agora vai ser o quê aí, um prédio, uma praça...?
         - Vai ser sabe o quê?! Sabe o quê?! Cracolândia! É isso que eu te digo, Cracolândia! Uma praça pr’os vagabundos dormirem e fumarem droga... imagina, tanto trabalhador honesto que ficava lá na Martim Carrasco, e agora essa sem-vergonhice aí, é de lascar.
         No fundo, com tristeza, eu concordava, e aproveitei:
         - É esse trolha desse prefeito! Vai enriquecer todos os amigos dele com essa história, esse Kassab.
         - Ah mas esse é uma bicha arrombada! Isso é que dá botar veado na prefeitura! Coisa boa é que não sai!
         - Ah, é... e vem cá, seu Ubaldo, pra prefeito, o senhor vai votar em quem?
         - Ah, tá difícil! É tudo bandido mesmo! Eu vou votar é no Russomanno! Esse Serra aí a gente já viu, e o outro lá do PT é outro vagabundo, quem nem o partido dele! O Russomanno pelo menos é um homem decente, trabalhador, rapaz jovem, tem que dar uma chance.
         Com essa eu já não podia concordar assim sem mais nem menos. O mínimo que eu tinha que fazer era tentar dissuadi-lo, mostrar bem, por mais difícil que seja conversar com um barbeiro de sessenta anos de idade. Expus alguns argumentos, mas não era nada que ele não soubesse, e se manteve firme e forte na intenção de voto no patrulheiro do consumidor. Acabei me cansando também e deixei a conversa morrer.
         Agora ele trocava a tesoura, por uma maior e dentada, para tirar volume. Pediu para que eu me levantasse, para ir lavar o cabelo na geringonça que ficava no fundo do salão. Ao lado, um armário repleto de utilidades e inutilidades se escorava junto ao espelho, com tesouras, copos, recortes de jornais, jogos do bicho já perdidos ou por conferir, e até mesmo, meio escondida num canto, uma garrafa de Pitu já pela metade. Acima do espelho, que tinha na bancada todos aqueles incompreensíveis apetrechos de barbeiro, um curioso conjunto de imagens se destacava, começando pela Nossa Senhora, depois o desenho de um porco de verde mijando nos brasões de outros times paulistanos e por fim uma foto, ampliada e bem cuidada, do que presumi ser o netinho do velho barbeiro. Ao lado se abria a janela, de onde se via, por detrás da estreita rua São Miguel, grande parte do Largo, totalmente despedaçado.
         Quando ele começou a lavar o meu cabelo, com água fria e um shampoo forte, me lembrei:
- Aliás, seu Ubaldo, queria te perguntar: você sabe o que é que vai ser dessas casas aí na frente, na rua Butantã? Já tá tudo até sem teto, uma semana e já põem tudo abaixo...
- Isso daí? Ah, vai ser mais um prédio alto desses aí que têm dado que nem banana aí por Pinheiros. Aqui também, vai ser a mesma coisa.
Por efeito da água fria, talvez, ou da hipótese que se afigurara em minha mente, tive um calafrio e quase um sobressalto.
- Aqui, você diz, aqui no Largo, né, com todas essas obras...
- É, em tudo quanto é canto esses sem-vergonha vão encher o cu de dinheiro... mas eu tô falando é daqui mesmo, Pedrão! Já compraram o imóvel e tudo, não teve conversa nem nada! Até o fim do ano nóis tem que sair daqui...
Uma indizível tristeza escorreu pela minha alma como o shampoo escorria pelos meus cabelos encharcados, que o barbeiro agora espalhava com seus dedos grossos. Fiquei ainda um tempo sem resposta, inerme, pensando: ia ficar sem barbeiro! E mais, toda aquela parte que ainda restava do velho largo, em frente ao posto, aquela margem direita intocada, com a loja de discos, o boteco, a falsificadora de atestados, o “compra-se ouro”, e, claro, o meu velho barbeiro, tudo aquilo estava prestes a desaparecer do mapa, defenestrados por uma jogada real de Banco Imobiliário. Me senti como que transposto a um funeral, como se eu mesmo, com aquela tosa e aquela lavagem, me transformasse lentamente em um defunto obsoleto.
- Poxa vida, Ubaldo... que coisa... não sei nem o que dizer... e você, vai fazer o quê? Já arranjou outro ponto?
- Eu, imagina! Eu já tô velho, seu Pedro... eu trabalho é mais pra passar o tempo, e ganhar um dinheirinho a mais. Até porque mesmo a barbearia não dá assim tanto dinheiro quanto dava há uns anos atrás não... eu vou agora é me aposentar mesmo, que eu já trabalhei demais. Eu tenho um terreninho lá na Bahia, eu vou acabar meus dias é por lá...
- É, a Bahia é uma boa... – suspirei, cogitando –. Você é de lá, não é não, Ubaldo?
E foi a deixa para que o velho contasse mais uma vez aquela sua infinidade de histórias, desde quando veio para São Paulo com uma mão na frente e outra atrás, até quando finalmente conseguiu a sua barbearia, antes na Benedito Calixto, mas como tudo era diferente! A Henrique Schaumann nem existia... depois foi parar lá no Largo, onde estava há não sei quantos anos. E também falou do netinho, tão querido! pena ser corinthiano, e da primeira esposa, de como quase matou o amante daquela vadia com uma peixeira, mas não ia fazer isso, ele tinha coração, só exigiu o que era seu.
E nessa infinidade de histórias, que o tempo trás como que compensando a quantidade cada vez menor de dias que a velhice nos reserva, o velho barbeiro terminou o meu corte – no fundo o clássico corte de macho que todo barbeiro faz –, espanando meu pescoço e meus ombros com um pincel cheio de talco e depois me mostrando num espelhinho. Não iria fazer objeções: o que se discute com um barbeiro? Depois largou logo o espelho em cima do balcão e se serviu uma dose de cachaça. Até perguntou se eu queria, mas recusei, polidamente, enquanto procurava o dinheiro na carteira e alguma alegria no peito, em vão. No fundo sentia vontade de beber com ele, compartilhar ainda que pela última vez daquela vida simples, quase rude, que o velho bigodudo levava há cinquenta anos na cidade de São Paulo, agora  demolida para abrir outra vez caminho ao dito progresso. Mas alguma coisa me impedia, para além de meu estômago. Não podia mais comungar com aquele homem, nem com a sua gente: aquele era um barbeiro morto, numa rua morta, num bairro morto. Não sou necrófilo, exijo distância, sentia nojo. Tudo que eu poderia fazer era acender-lhe uma vela, em alguma igreja escura de esquecimento.
Ou pagar, como acabei fazendo, em meio a devaneios e melancolias. Ainda trocamos meia-dúzia de ideias ao longo da escadaria, onde a comunicação era facilitada pela distância da televisão em que o Datena ainda berrava por alguma velha que tinha sido defenestrada no Morumbi. Mas o assunto acabou rápido, com a chegada daquele mesmo sujeito com quem havia encontrado o Ubaldo na rua. Golpe de sorte, pois o assunto começava a enveredar para o futebol e aí sim eu já não teria absolutamente nada a dizer. Talvez chorar, só, talvez, o que já seria o cúmulo do ridículo ou do absurdo. Adeus, Pinheiros! Adeus, meu bairro! Era o que eu queria dizer, mas só saiu um
- Adeus, Ubaldo. Espero que tudo corra bem. – e quis abraçá-lo, cheio de sentimentalismos.
- Ué, mas adeus por que, rapaz? Você vai viajar de novo?
- Não, mas o senhor é que tinha dito que...
- Ah, mas isso é só lá pra março, a gente ainda se vê. Ou você vai ficar mais seis meses sem cortar o cabelo?
Ri, um pouco mais aliviado. Apesar de que, no fundo, a morte seria até pior, mais lenta... mas mesmo assim mais humana. Não haveria nenhuma grande e dramática despedida. O barbeiro não seria morto pelas retroescavadeiras, quando pusessem o teto da barbearia abaixo com tudo dentro, os clientes, as imagens, a televisão. Mas ele sairia lentamente, pela porta da frente, depois de empacotar, com certa dor, coisa por coisa, retrato por retrato, desligar a tv, tirar as imagens e os recortes das paredes, embrulhá-los em uma caixa de sapatos, com todo o carinho que uma alma, a mais simples que seja, acumula ao longo de sua vivência, para transmutar-se em pesar e nostalgia no dia do fim de tudo. E depois de tudo pronto, após certificar-se de que só esqueceu o que queria esquecer, apagaria a luz com um suspiro e desceria as escadas num silêncio saudoso. Mas quanto ao bairro... cocei a barba, encafifado, e lembrei:
- Ah, Ubaldo! – o velho quase se afastava, mas voltou. Queria já faz tempo te perguntar uma coisa: aquela pedra branca que você costuma passar no rosto depois de fazer a barba, o que é que é? Queria ver se eu arrumava...
-Aquilo lá? É naftalina, em barra! É bom, não é? E tem mais – me puxou para perto de si, cochichando na minha orelha – tem um segredo também. Se a mulher passar isso na xoxota, vira virgem de novo!
E depois foi embora, sem nem dar tempo de eu expressar a minha dúvida ou pelo menos perplexidade diante de uma ideia tão esdrúxula. Naftalina... virgem de novo... atravessei o Largo despedaçado com essa ideia na cabeça. O que no fundo, concluí, sorrindo, é uma ideia interessante: se as mulheres puderem revirgenescer, os Largos se reconstruir e os barbeiros, depois de tanta vida e da morte, com uma pedra qualquer puderem ressuscitar de um bairro entre escombros, purgados de seus erros e pecados ante a visão do Infinito.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Pior do que está fica!


     Quando me meti nesta empreitada, ainda na Rússia, cabe dizer, confesso que fui movido pelo desespero e nada mais. A situação é cínica, como dizia o Adoniran. De quebra há um trocadilho ainda pior: tá ruço, mano. E está mesmo. Todas as previsões se mostraram pífias, e o tal do fenômeno Russomanno mostrou a língua a todos os analistas de jornais: não baixou, cresceu. E está aí na porta de nossas casas, nas esquinas, nas praças, na televisão, nos meus piores pesadelos.
         O Serra, creio, dispensa comentários. Espero que estes oito anos de administração falem por mim: todo o pouco que esta cidade tinha de bom, suas noites, seu despojamento cultural, sua vida fervilhante, seus tipos, suas ruas, tudo ameaça desaparecer em quatro anos de mandato. Se é que ainda não desapareceu, como o defunto que esqueceram de enterrar.
         Por essas e outras acabei me metendo em questões de campanha, na medida do possível, sem grandes sacrifícios já que a minha convicção não os permite. E digo, entre lágrimas, com decorado desespero: é 13, Fernando Haddad. O termo campanha, me parece, tem origens militares. Pois bem, entrei nessa história de campanha como um pracinha, um cabo, sei lá, daqueles que limpam a latrina e descascam batatas porque paciência, a vida aconteceu assim, e que um belo dia, ao tocar da corneta, se viu fardado lutando contra os alemães, na eminência da morte ou do fim dos pagamentos.
         Não morro de amores pelo PT, embora o admire, não pelas ideias mas pelo realismo, pelo balde de água fria que deu nas almas mais sensíveis, mostrando como é que se pode fazer política na atual conjuntura, sem rachar o país nem nos meter em crises de qualquer ordem. O meu lado mais lúcido encara tudo como paliativo, e os anos de lulismo assim não teriam trazido nada de novo, apenas uma atualização do progressismo de um Juscelino Kubitschek. Já o lado inocente ainda vê alguma luz, como, com Getúlio e Juscelino, vieram Goulart, Brizola e Arraes. Mas essa luz pode ser só mais outro farol de carro.
         Estamos a uma semana da eleição, e o cenário ainda é completamente incerto. Quer dizer, há a triste certeza da Patrulha do consumidor, a cidade na estupidez da ordem e na orgia do progresso. Nova lei de zoneamento, mais automóveis na rua, Nova Luz, ônibus a R$3,00, recordes de chacina pela polícia, educação e saúde nos estados mais ou menos calamitosos a que já nos acostumamos, quase como patrimônios culturais. E eu de minha parte não quero lavar as mãos, digitando, de qualquer forma, números confusos na minha seção eleitoral. Digo e repito: o que eu quero é me comprometer, sejam quais forem os riscos. No caso de Fernando Haddad, não vejo, com a devida lucidez dos cálculos, que sejam altos. É professor universitário, homem das esquerdas, e que bem ou mal trouxe propostas interessantes, como o bilhete único mensal e a descentralização dos polos de trabalho da cidade, colaborando (paliativamente! mas colaborando) para o fim do trânsito. Vindo depois do Kassab, certamente terá um prazer quase sádico em desfazer as burradas mais exemplares da última prefeitura, como o escandaloso caso da Controlar, a expulsão dos artistas das ruas, a caretificação da cidade em geral. Ao menos assim o espero, repito: ponho minha língua na mesa. Nada foi dito em relação ao surto imobiliário, e o receio de assustar o cidadão de bem pagador de impostos, o consumidor indefeso, é fonte de cautelas para abordar qualquer solução mais drástica.
         Se perguntarem do Maluf, respondo: o PP emplacou um ministério. O acordo já se cumpriu.
Quanto aos riscos de lavar as mãos com a pureza do “nulo”, numa verdadeira masturbação moral, são em parte conhecidos: José Serra terá também prazer imenso em continuar fazendo o que sempre fez. E mais: se sair, para o estado OU para a república, deixará no alto poleiro do edifício Matarazzo mais outro pessedista, que vai achar a cadeira quentinha e a carta branca pra passar seis anos no governo. O filme é velho e nem graça tem mais. Mas o filme novo pode ser de terror: espero que o hipotético leitor saiba alguma coisa sobre as propostas de Celso Russomanno, como as câmeras de vigilância ou o policiamento ostensivo. Mas também ele é autoexplicativo, tanto pela figura da Patrulha do consumidor, quanto pelo apoio de igrejas evangélicas ou pela tradição tão paulista de tipos como este, conservadores populistas. E desta vez não podemos nem mesmo ter o prazer de gritar “o jeito é Jânio”, ou ouvir o delicioso sotaque de “brimo” de Paulo Maluf. Repito: a piada e velha e já não tem mais graça. E os riscos são altos. Já não preciso lembrar que na atual conjuntura política paulista, dificilmente teríamos coisa melhor, como a Guanabara vem esboçando timidamente na figura brilhante de Marcelo Freixo.
E foram tantas as decepções com o PT... não, melhor não pensar, abdico por hora das minhas convicções. Até domingo, quando, mesário, acordarei às seis da manhã para ir à seção que foi-me por Deus e pelo Tribunal Eleitoral indicada, nesta última e desesperadora semana de campanha ponho a honra e os princípios de lado e compro a briga. Não há nada a perder. E depois de seis anos de Kassab, sob o risco de mais quatro de Russomanno ou Serra, vai ser necessário um esforço espetacular, sobre-humano, até, da parte de Fernando Haddad para afundar ainda mais esta cidade, tão boa, coitada, quanto estúpida. Se tudo der errado é porque no fundo merecemos.