sábado, 25 de maio de 2013

O verde e o vermelho


Tão difícil que é se entender, meu caro anjo, e tão incomunicável que é o pensamento, até mesmo entre pessoas que se amam!
C. Baudelaire, "Os olhos dos pobres"



Saímos do espetáculo de braços colados, mãos fundidas, respirando o mesmo ar nas exatas mesmas pulsações e ritmos. Se o espetáculo era bom, se a atuação convencia, se o enredo era digno – me perguntassem sobre qualquer desses assuntos, presumidamente nítidos na mente de quem sai de um teatro, e eu não teria sequer um palpite. Não tínhamos assistido nada: de olhos fechados, havíamos assistido, com as mãos, os meandros de nossos próprios corpos.
Mas num instante, surpresos com o acender de luzes e o explodir de palmas, ajeitamo-nos como pudemos e começamos a aplaudir, gritando “bravos” e rindo, de nós mesmos. Apesar de não termos visto absolutamente nada, nem por isso se poderia dizer que não tivéssemos gostado. Aliás, muito pelo contrário: estava pessoalmente bastante sentido com o fim do espetáculo, e foi só a contragosto que, derrotado, puxei a mão de minha amiga para sairmos, conforme o fluxo de verdadeiros, ou, talvez, supostos espectadores formava uma fila em direção à porta.
Lá fora tudo estava coberto por uma noite morna, quase sufocante, com apenas um vento bissexto que trazia, quando nos lambia, o aroma pesado de suor e fumaça, misturando-se ao hálito de fritura e álcool que dominava a entrada do teatro. Dos jardins junto à Igreja, até se esboçava um cheiro de mato, mas antes que nos alcançasse era reprimido pelo bodum das sacas de lixo, reviradas pelos cantos e postes.
- Vamos beber alguma coisa? – entressorriu, insinuante, num esplendor de olhos verdes. – A noite está tão boa...
Como fosse a exata ideia que eu maquinava, dispensei palavras: dei-lhe um beijo e meu braço, e seguimos a passos lentos, como que ensaiados, pela calçada estreita e iluminada dos teatros da praça Roosevelt, colhendo em nosso brilho e alegria a atenção de todos os artistas noitevagantes pelos bares.
Não podia esconder meu paraíso: meus olhos voavam alto, mais alto que o Itália ou o Copam, conforme as ideias passeavam pela paisagem da praça nova, bem frequentada, decorada com gosto e com a imponência do velho Colégio Caetano de Campos. Com suas árvores monstruosas e vitrais, parecia medir e conter em si todo o século atravessado pela praça, da República do Café até a gestão Kassab. Falassem os prédios e eu perguntaria “e que tal, a nossa cidade? Com quantas formas e nomes você já não viu este lugar, de cartola e sobrecasaca, com gravatas e andaimes e viadutos, depois indigentes, travestis... e atores, até chegar nesta praça plana, finalmente ocupada com o brilho de intelectuais e esqueitistas...? E mais: de todas essas versões do tempo e do espírito, qual seria a melhor entre todas?...”
Perguntas retóricas, típicas de uma mente estragada pelos livros. As janelas não falam, e eu tinha a resposta: aquela era, indubitavelmente, a melhor praça do mundo, em seu instante de glória. Afinal era por lá que eu e ela estávamos passeando, e, para qualquer efeito histórico ou cultural, isso mais do que bastava.
De fora: comparando com o parnasianismo aristocrático e o progressismo militar, não seriam de fato melhores dias?
Voltando do trajeto dos anos aos braços de quem me acompanhava, sugeri que parássemos no que parecia ser o melhor dos bares, com o melhor dos preços. Cadeiras justapostas, mãos emaranhadas: ainda murmuramos uma ou outra amenidade, mas já estávamos naquele lugar, tão fantástico quanto confuso, em que as palavras se tornam inúteis ou mesmo incômodas. Somente os olhos se entendem, e os nossos passeavam pela paisagem descortinada sobre a praça e a Viação Leste-Oeste, rolando preguiçosos pela cerca opressiva de prédios, careada aqui e ali por umas tantas avenidas.
 Da nossa mesa, sentíamo-nos pertencendo àquilo tudo... e transcendíamos. Respirávamos o mesmo ar dos carros, mas em nossa expiração destilávamos o desprezo; brindávamos e bebíamos como todos, mas em nossos brindes evocávamos a miséria generalizada da noite, ao que, talvez, só nós escaparíamos. Nós... a consciência da penúria paulistana. Daquele abraço e daqueles copos, numa simples conjugação carnal, espalharíamos a Luz pela cidade inteira, começando pelas outras mesas do bar, repletas de intelectuais decrépitos e artistas tão medíocres quanto embriagados.
Aquela praça, reformada e limpa, ainda havia de ser só nossa.
O bar se abarrotava progressiva e insuportavelmente, castrando o nosso espaço de contemplação. Tive um arroubo de cavalheirismo, incendiado por algumas cervejas e outras tantas fantasias bellépóquicas, e pretextei ir ao banheiro, para poder pagar a conta. Voltando à mesa, estendi o braço à minha companhia com uma leve inclinação de cabeça, indicando sem volteios o sentido do convite. Ainda me encarou com seus enormes olhos verdes, explodindo, por fim, na risada.
- Você é ridículo...
E se agarrou com força ao meu braço.
Subimos calmamente a pequena escadaria entre os canteiros – rasgou-se o panorama de concreto e verde à nossa frente. Formidável, essa praça reformada! Nem uma só lembrança daquele estacionamento pichado, mijado, hostil e avesso ao bom convívio urbano. Só a base da polícia, que ainda é a mesma: os canteiros são limpos, não faltam bancos nem árvores. O espaço, antes largado e inabitável, havia sido finalmente ocupado, por amantes, esqueitistas, famílias, músicos – um convívio harmonioso, e até encantador.
Mas, caindo de nosso deleite contemplativo, nossos olhares tropeçaram numa massa sólida e convulsa. Destoando do ambiente de sábado e gozo, atrapalhando a rota dos esqueites e o silêncio voraz dos abraços, um sujeito em trapos grunhia e se contorcia junto ao chão, no que os leigos costumam apontar certas apavorantes e irreproduzíveis alucinações deslanchadas pelo craque, ou pela sede. Falava desordenadamente sobre a mãe, em cima da árvore, um cachorro, o senhor delegado – “não, eu sou amigo dele! eu sou!” – expressando em cada gesto um sofrimento incalculável, e incompreensível para todos nós, esquerdistas sabatinos. Não é que estivesse incomodando alguém, propriamente, no sentido corpóreo e interindividual do termo incomodar. Mas sua simples existência ali já era ofensiva, pesada, como se podia ler em alguns olhares e gestos, e no afastamento assustado de alguns casais.
Quando finalmente se virou para nós, senti circular em cada veia e em cada nervo uma pena dolorosa: seus olhos, pretos e avermelhados, cavados em enormes olheiras, por pouco não se reviravam, e escancaravam um estado de total e confuso desespero. De seu rosto saltavam feridas e marcas – e estava solto no mundo. Minha alma se rachou entre o êxtase de antes e a angústia daquele agora: não seria o caso de ajudar? Ligar para um hospital, um abrigo, algum centro...? Impossível era não fazer nada, fingir alguma absurda indiferença, o que os grunhidos esporádicos descartavam de antemão. Aflito e pesado, esqueci que junto ao meu braço e ao meu peito havia outra pessoa, com suas próprias impressões e desejos. Mas ao ver que um rapaz já se dirigia a um policial, apontando para o alucinado, me fiei desesperadamente àquela que me acompanhava, e cuja compreensão de meus anseios já havia chegado ao ponto de dispensar as palavras, ou de até mesmo adivinhá-las.
Lancei-lhe um olhar angustiado – e com que alívio encontrei a mesma aflição naquele verde lacrimoso, que se adiantou à fala com um aperto histérico em minha mão!
- Que horror, coitado...! Vamos embora, querido?
Ainda meditei um pouco sobre sua pergunta, enquanto um policial finalmente arrastava aquele desvairado para longe da praça nova, e do sábado sagrado. Depois de muito pensar acabei sugerindo a Vila Madalena – lugar onde, pretextando doença, sono ou dor de cabeça, poderia ir para casa, para não me encontrar nunca mais nem com ela, nem com seus olhos, nem com a minha própria, estúpida e incompetente consciência.

domingo, 5 de maio de 2013

Saudoso José




            Peço a licença dos eventuais leitores – se é que eles existem – para tratar neste fim de semana de coisa diversa das que costumam ter lugar aqui, nesta página. É que, pelo efeito ambíguo do costume, pode ser que estejam esperando alguma anedota pretensamente engraçada, construtiva, ou com manias de sentimentalismo – e hoje esta coluna estará mais para um obituário tedioso, ou um afetado panegírico: as duas possibilidades humanamente disponíveis para a estupidez incontornável da morte. Peço, então, àqueles que esperavam saborear uma comédia de costumes, para fuçarem em outros blogues, como os que recomendo na coluninha da esquerda, para depois não culparem eventualmente o autor por terem gastado o seu precioso tempo de internet com uma coisa assim tão chata.
            Começo e termino num velho boteco da Cônego Eugênio Leite, rua onde morei e moro com a graça de Santa Luzia já há vinte anos, dois dos quais num sobrado bem em cima do tal do boteco. Ainda nesses tempos – aos quais, não se tratassem de apenas cinco anos atrás, eu me referiria de alma cheia pelo nome de “tempos de juventude” –, nos meus vai-e-vens pelas esquinas, nas escapulidas para fumar longe do olhar de meu pai, ou nas simples batidas de perna pelo bairro, sempre percebia, na ânsia de uma nova convivência na rua velha, o mesmo circunspecto e barbado cidadão, invariavelmente sentado atrás das folhas do Estado de São Paulo ou da Gazeta de Pinheiros, com um maço de Free Light e, depois do meio-dia, uma garrafa de cerveja. Não me lembro exatamente por que ou quando, mas num dia de dureza, mendigando cigarro, demos finalmente para conversar – pela gentil intervenção de Seu Medeiros, o dono do boteco, talvez. O tal sujeito se chamava José Ibrahim – e eu passaria a chamá-lo de Zé.
            - Eu já sou aposentado – murmurou num tom grave, limpando a espuma de Brahma da barba grisalha, ao redor dos lábios grandes e frouxos, que projetavam seu rosto sério para baixo. – Mas ainda trabalho... com sindicalismo, essas coisas....
            E não era de ontem: desde os tempos do ronca e de Dom Pedro Cipó Pau... principalmente do pau, e do chumbo. Se metera em algumas greves – na famosa de Osasco de 68 –, e até na luta armada contra o regime militar; conhecia o então presidente em pessoa, velhos companheiros de greve. E até do sequestro...
            - Aquele do embaixador...?! – perguntei, desacreditado.
            - É. Do embaixador americano... mas eu não participei – desviou os olhos opacos para a rua ensolarada –, na verdade eu... tem um documentário, que fizeram, acho que ia te interessar.
            Hércules 56 – o avião militar com que fui, certa feita, a Manaus, e que tinha sido, como descobri pelo documentário, o mesmo avião, comprado da sucata norte-americana, que levou os 15 trocados pelo embaixador Charles Burke até o México. E de lá para Cuba... no vídeo, em uma sala escura com os ex-presos espalhados por sofás, o mesmo rosto moreno a que me habituara ver envelhecido, sério e barbado aparecia extremamente jovem, olhos vivos, devorando grandes bolhas de fumo de um charuto, oferecido pelo próprio Fidel Castro, que se sentava ao seu lado...
            Mal terminado o filme, ainda atônito com a confluência de dois séculos tomando cerveja ali na rua, desci rapidamente a escadaria do sobrado para o boteco, doido para encontrar aquele herói sobrevivente.
            - Mas Zé! Você tem história, hein?
            Ele se riu, o seu riso largo e astucioso, e passou mais uma tarde me contando dos seus tempos de luta. Depois descobri que não o conhecia de agora – na verdade, quando pequeno, brincava com seu filho, estudávamos na mesma escola e morávamos na mesma rua... onde ainda moravam. Mas aquela nova afinidade, mais espontânea, que só poderia surgir entre um senhor vivido e um jovem curioso, era muito mais sólida do que qualquer recordação.
            Conversávamos algumas tardes inteiras. E já não mais só sobre os anos de chumbo, o cenário pré-golpe; mas sobre as mudanças do bairro, sobre cigarros, sobre a atualidade brasileira. Ia muito a Brasília, tinha um cargo importante, estava sempre por dentro. Ainda nas presidenciais de 2010, ponderava de maneira acertada:
            - Não... enquanto o PT tiver o PMDB, ele governa. E como governa! – exagerava eu, exaltado, e meio nervoso diante das proporções históricas de minha companhia de mesa.
            - É Pedro... governar ele governa, mas o PMDB pra eleger a Dilma vai querer aumentar o pedaço do bolo. Quem vai governar nos próximos anos é na verdade o PMDB.
            Me opunha, conforme as possibilidades, num impulso talvez inconsciente de aumentar meu próprio tempo, politicamente disforme e confuso, ante aqueles que na minha imaginação ainda pareciam os anos mais instigantes e importantes da história brasileira. Mas eu era, como ainda sou, ingênuo e inexperiente demais, e as conversas de um sujeito com 40 anos de política acabavam sendo, apesar da cerveja, mais do que diálogos: verdadeiras aulas de história e política.
            Um dia demos para discutir marxismo – tema espinhoso para quem quer que seja, mas ainda mais para quem lutou por ele, em seu modelo político, e o viu se desmanchar vergonhosamente em menos de dez anos. Já exaltado por algumas cervejas, nos primeiros anos de faculdade, me pus a defender novas ideias, a renovação do marxismo, seu tempo estrutural, o fim do dinheiro, e outras enrolações. No começo da conversa, ele e seu amigo – um senhor gordo e grisalho, bastante bonachão, que viva fazendo gracejos para que eu lhe desse um chapéu igual ao meu – ainda me ouviam interessados, discutiam, traziam informações. Mas com o passar do papo, pelas suas expressões entediadas, quase aborrecidas, percebi que tinha finalmente me tornado o tipo do moleque petulante. Quando percebi ainda tentei mudar de assunto, falar de amenidades, mas já era tarde: havia estragado o humor daquele almoço.
            Assim como o de alguns outros... conforme a relação se aprofundara, nossas ideias mais específicas se mostravam cada vez mais incompatíveis. E depois desse episódio – não sei se por causa dele, ou se ele mesmo tinha sido consequência de alguma transformação – começamos a nos ver cada vez menos. E não à toa: de meu lado, faculdade e trabalhos começavam a tomar cada vez mais o tempo e a dedicação que, no colégio, eu dispensava à vida do bairro e à conversa com seus moradores. Já do lado dele, sua atuação sindical aumentou; passava semanas inteiras em Brasília, articulava uniões, já não estava sempre na mesma cadeira, atrás dos jornais com seu maço de Free.
Nos últimos dois anos, se nos encontrávamos, era de maneira fortuita e apressada. Tinha até mudado de bar – brigou com o seu Medeiros, foi para a rua de trás, imaginem. Só recentemente, um sábado em que eu por milagre não tinha aula, e que ele esperava por alguém no velho boteco da Cônego, foi que deu para conversarmos direito, quase à maneira das primeiras vezes, quer dizer... com aquela mesma leveza, compreensão e interesse mútuos, ainda que por outros assuntos. Quando seu amigo chegou, conforme nos despedíamos, me abraçou e apresentou, rindo como ri um avô:
            - Esse rapaz aqui – virou-se para mim – me deve uma fortuna em cigarros! Lembro dele ainda moleque, vivia duro, e o pai dele dava umas coças por ele fumar. Era eu que salvava a pele dele! E agora virou essa coisa...
            E me deu alguns tapas nas costas, num afluxo de nostalgia e bem-querer.
Depois desse dia só fui vê-lo ontem, no mesmo bar, quase na mesma mesa, mas de maneira completamente outra. Quem me chamou a atenção foi o seu Medeiros, apontando para uma folha de jornal, com uma foto dele, pregada no orelhão em frente – onde deve ficar alguns dias, tão conhecido ele era pela freguesia do bar e do bairro. Depois de sobreviver à tortura e ao exílio, faleceu, aos 66 anos, de enfarto fulminante, nesta quinta-feira, dois de maio. O meu consolo de não poder se despedir – quem aliás tem tal privilégio? – foi justamente a data e o local: ele ainda conseguiu participar de um último Primeiro de Maio, no campo de Bagatelle; e eu fiquei sabendo de sua morte sentado na mesma mesa em que fiquei sabendo de sua vida.