quarta-feira, 2 de maio de 2012

O verbo e o tempo


Como muitas outras partes ativas da cultura, e, talvez, como a sua parte mais fundamental, a palavra acompanha e encarna as transformações da sociedade que a carrega. Novas experiências exigem novas palavras, e as antiquadas envelhecem consigo os seus termos correspondentes.
         Não me demoro nessas especulações: não sou nenhum filólogo alemão do século XVIII; aliás, esquecendo o tempo: nem sequer filólogo, termo um pouquinho antiquado, mas ainda em uso por aqui, e muito menos alemão, apesar de meu convívio constante com essa gente muito boa, que vem às chusmas aqui para Moscou. Minha observação é inclusive pontual, sendo, já que falamos de forma e de tempo, até compatível com o estilo do anúncio

         “PROCURA-SE FORMA OU PRONOME PARA RELAÇÕES FORMAIS”

         Poder-se-ia colocá-lo n’”A Gazeta da língua russa”, se tal gazeta existisse, e até mesmo organizar um concurso, mostrando os finalistas em rede nacional, como em um programa de calouros, quem sabe até com algum correspondente linguístico à Aracy de Almeida, premiando a melhor ideia com uma viagem à Barcelona, Nova Iorque, Sidney ou até mesmo, hehe, Rio de Janeiro. Um verdadeiro fenômeno nacional, exaltando os ânimos, dividindo opiniões, criando apostas, polêmicas, ponderações. A final certamente pararia o país, aliás, os países em que essa língua é falada. Seria inclusive o jeito ideal de criação da expressão, já que na palavra anda o mundo e tudo isso iria a par e passo com o novo clima da Rússia pós-URSS: consumo massivo, capitalismo oriental, etc. etc.
         Mas ainda não expliquei de quê propriamente tudo isso se trata (o que também vai bem com o estilo dos anúncios), e me apresso a corrigir-me, enquanto há tempo: a língua russa se encontra atualmente sem o fundamental vocativo para estranhos, pessoas de respeito, e outras relações formais ou só não tão íntimas. À título de exemplo, nós no Brasil temos uma penca dessas: amigo, chefe, grande, mano, senhor, senhora, moça, gracinha, gostosa, hum, dependendo do nível da formalidade e da ousadia do falante, claro. O último caso, pondero, é específico ao caso dos “pedreiros”, de alma ou de profissão. E ainda pode ser que uma série de regionalismos ainda coloram os diversos estados do Brasil e mesmo os diversos países em que nossa língua caminha. Mas eu não sei. As formas que coloquei acima são razoavelmente neutras, claro, dependendo da situação. Quem se dirigisse ao chefe dizendo “ei grande, e aquela papelada lá, é pra hoje?” passaria por folgado, da mesma forma que quem perguntasse ao garçom se “não teria o senhor uma garrafa Brahma” passaria por excêntrico. No melhor dos sentidos, todavia, um excêntrico elegante.
         A despeito da informalidade no primeiro caso e do absurdo do segundo: ambos são só a título de introdução, só pra chamar educadamente a atenção do interlocutor. Depois é que vem o “você”, o universal “você” que cobre desde a presidente até o flanelinha da esquina, desde o Sílvio Santos até o manobrista do shopping. Só em Portugal, pelo pouco que sei, o “você” fica para formalidades e o “tu” para situações mais íntimas. No russo há um relativo às situações formais, que é o uso do “Vós”, por mais absurdo que a nós, lusófonos, isso pareça.
         Mas para dirigir-se, para chamar a atenção nesse primeiro momento, bem... aí a língua ficou desbancada. A única forma mais geral ruiu com a União Soviética: era o “camarada”, a forma sem erro, que trazia em si alguma beleza de irmandade ideal pregada pela ideologia. Camaradas eram todos, desde o motorista do ônibus, até o secretário geral do PCUS, desde o professor universitário até o sujeito sentado ao meu lado na parada do bonde, a quem me atrevo a dirigir uma pergunta sobre o itinerário.
         - Camarada, por favor...
         Ele não faz mais que olhar para minha cara com um misto de admiração e ofensa – deve ter lá seus rancores -, e nem se preocupa em ouvir o resto da pergunta; só se levanta e vai para o outro lado da parada. Perplexo, esperei outro sujeito chegar para saber do tal itinerário, dispensei apresentações, quase perdi o bonde e anotei a experiência no caderno. Não foi sem surpresa que depois, em outras ocasiões, vi pessoas usando o termo normalmente, em especial em pequenas frases penduradas nos restaurantes, pedindo para que se levasse a louça ao balcão, não se bebesse de terça-feira, e outras coisas do gênero. Também alguns empregavam o termo em conversas, mas, reparei, eram pessoas já bem mais velhas.
         Gosto da palavra “camarada”, em russo, továrisch. É forte, bonita e enfática. Mas ao mesmo tempo é datada. Agora uso-a somente com amigos, russos ou não, e mesmo assim o efeito é muitas vezes cômico, alguns me perguntam onde foi que aprendi a falar assim, como num comício do partido. Há também outras variantes, que alguns desesperados tentaram resgatar, ainda mais antigas, dos tempos do tzar, que os bolcheviques fizeram questão de abolir e que, hoje em dia, podem soar ainda mais cômicas.
Merece destaque a palavra “cavalheiro”, gospodín, encontrada direto na literatura do século XIX. E bem por isso dizia um jargão soviético, eternizado por Bulgákov, que “os cavalheiros estão todos em Paris”. Na URSS havia só camaradas. Me disseram que há quem voltou a usar o termo, agora que a liberdade, a igualdade e a fraternidade da moeda imperam novamente no país, apesar da evidente velharia da expressão. Quer dizer, evidente agora, porque no primeiro dia, arrastando a minha mala em torno da universidade sob a nevasca de       -30º, no auge do meu desespero me dirigi, atrás de informações, ao primeiro sujeito que vi, com o auxílio deste arquipomposo termo, contando com o resgate massivo ao baú do tzar. Felizmente dessa primeira vez, ao contrário da que narrei anteriormente, não houve nenhuma ofensa ou repulsa, talvez por pena da minha situação, mesmo revelando-se, através da nevasca, que não era cavalheiro coisíssima nenhuma, mas sim uma senhorinha muito bem agasalhada.  E santa, porque não levou a mal a dupla ofensa sobre o sexo e a idade.
         Também tem “senhor” e “senhora”, é verdade, palavras até que parecidas com o português, súdar e sudár’nha, mas carregam aquele gostinho rançoso de sistema feudal, contexto em que eram bem utilizados. E há quem goste, cabe dizer, muitos por aí por lambuza, princípio ou propaganda escrevem tabuletas e anúncios com requintes de grafia prerrevolucionária... já que o comunismo fez por bem reformar (e bastante) até a gramática e a ortografia, claro. Mas mesmo assim esses termos soam mais engraçados do que “camarada”, e não são lá muito difundidos hoje em dia. Até os bolcheviques dispensaram jargões a seu respeito.
Não há nesse caso nenhum relativo ao nosso “senhor” para pessoas mais velhas. São chamados idosos, mas não se deve em lugar nenhum chegar e dizer “ei, idoso”, me parece, nem no Brasil, nem aqui, e quiçá nem na China, não sei ao certo. Já eles, os idosos, aqui podem vir para cima da gente com um tal de “pessoa jovem”, que particularmente não gosto, ou “moça”, que como não sou mulher deixo o juízo para as outras.
         Essas talvez sejam expressões mais gerais, de fato, por relacionarem-se com aspectos mais genericamente humanos, como sexo e idade. Mas o fim do socialismo, assim como fizera antes o seu próprio advento, pôs os termos de fato mais usuais em cheque, o que dá dor de cabeça a todos aqueles que ainda pensam. É sinal de crise da sociedade, sem a menor dúvida, quando você já não sabe como considera o cidadão próximo de você. Compatriota? Só no estrangeiro, diante do outro ou do inimigo. Cidadão? Na província, talvez. Na cidade grande todos se odeiam. Agora pensando bem talvez mesmo em português tal expressão nos falte, apesar de ser bem difundido o termo “senhor” para situações formais, e muitos outros, dependendo do caso. Se voltássemos à proposta do concurso, talvez não só no russo, mas em todas as línguas, eu teria uma sugestão: consumidor. Consumidor Pedro Augusto Pinto, consumidor Fulano, consumidor Siclano, por exemplo. Por quê não? É onde nossos direitos nascem e morrem, é o que nos faz ser gente e indivíduo na sociedade moderna, pílulas, consumir. Sem consumo, ou com pouco, somos reduzidos a raia miuda, mendigos, serviçais, no trato dos quais formalidades se dispensam e muito se permite, às vezes ao extremo da folga e do desrespeito. Pois então deixemos para lá os eufemismos e oficializemos na linguagem a completa miséria da vida real! Em certo sentido a poesia agradece.

Um comentário:

  1. Consumidor!! Bem adequado. Eu ainda prefiro toda a utopia da palavra "továrisch". Beijo

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