quarta-feira, 30 de maio de 2012

Com fome e na rua


Olhei para os salgados dispostos na vitrine com um misto de desejo e, por isso, culpa. A verdade é que me apeteciam, menos por atração do que por mera fome, já que tinham aquele aspecto meio idoso, murcho, e até, quem sabe, nocivo à saúde. Mas o que mais pesava na minha indecisão era a lembrança cruel das palavras de conhecidos russos, quando pela primeira vez me apaixonei pelos preços desses quitutes subterrâneos. “Não valem a dor de barriga que você vai ter depois!” se riram, enquanto eu me envergonhava. Claro, tinham trazido comida de casa, que me ofereceram gentilmente, como compensação à destruição de minha inocência. Mas agora eu estava só, com fome, sem comida e com pouquíssimo dinheiro, naquela galeria subterrânea que ligava os dois lados da enorme e galante rua Tverskaia, atravancando a passagem dos moscovitas mal-humorados com a minha indecisão estomacal-monetária.
         Mais uns cinco minutos... o mais difícil era sempre entender o nome das comidas. Nos manuais sempre descrevem, com desenhinhos muito ilustrativos, as palavras básicas para “carne”, “frango” e “peixe”, além de “pão”, “queijo” etc. Mas se a realidade nos complica um pouco que seja a vida com os vocábulos para partes específicas, ou, pior ainda, para nomes já convencionais de certos alimentos, o estudante de russo educado com “Língua russa para todos” constatará melancolicamente a ineficiência de seus estudos, ou ao menos de seu nível, que não chegaram àquele ponto da fluência em que se pode pedir um enroladinho de presunto e queijo, um pão na chapa ou um bife mal passado.
         Acabei seguindo o conselho dos nativos, julgando saberem mais do que eu a esse respeito, continuei para o outro lado da rua, o estômago me cutucando. O jeito seria achar outro lugar para comer, na superfície, por si só marca de qualidade, pelo que entendi. Saí na rua abarrotada de gente, carros, panfletos, anúncios, telões, procurando entre essa massa desnecessária de informações algum indício de comida boa e, claro, barata, requisitos bastante exigentes, quando juntos. Se só um me detivesse, a escolha entre a superfície e o subterrâneo seria clara, mas não era o caso: seguia atento às lojas e vitrines da avenida, procurando alguma porta de restaurante onde se pudesse ler o cardápio. O primeiro que achei ficava entre uma joalheria e uma loja de roupas, e me aproximei, já sem grandes esperanças. A simples vista do preço de uma garrafa de coca-cola de 200ml bastou para me afastar imediatamente dali: coisa de cento e sessenta rublos, ou seja, um pouco mais que dez reais. Por sadismo, resolvi checar minha carteira: tinha exatos cento e cinquenta. Um perfumado casal que chegava pediu, aliás, mandou licença, num típico tom de desprezo moscovita, para entrar, e saí de lá praguejando. Já devia ter percebido a minha inadequação ao ambiente pelas pomposas figuras de gravata que tomavam vinho por detrás do vidro, com suas esposas-modelo, contrastando com minhas roupas amassadas e meu pouco dinheiro no bolso, mas alguma inocência tola me guiava junto à fome.
         Segui caminho, percebendo frustrado e faminto a enorme quantidade de joalherias e lojas de grife, ditando o preço da terra e assim por tabela o dos cardápios dos restaurantes vizinhos, junto com os carros possantes que se engarrafavam por toda a rua, diante das lojas de roupa, dos clubes, dos teatros. Até que avistei uma esquina um pouco mais humilde e quieta, e dobrei-a com pressa, esperançoso, me perdendo entre ruelas um pouco mais residenciais, arborizadas, sem muita pompa.
         A mudança foi tal que poderia até pensar que estava em outra cidade: uma paz tumular dominava as ruas por que passava, contrastando de uma forma quase que esquizofrênica com a histeria mercantil da rua Tverskaia. Pouquíssima gente andava pelas ruas, o movimento praticamente se reduzia a alguns escritórios e a famílias que passeavam com suas crianças ou cachorros. Mas de pequeno comércio, nem sombra. Às margens das avenidas, ainda alguns restaurantes, mas com a mesma faixa de preço. Por enquanto o jeito era fumar, para esquecer a fome e seguir caminho.
         Mais três quadras e acabei em uma rua mais movimentada, no velho Anel Sadóvoe, rua circular que determina o velho centro de Moscou. Lá pelo menos o público é misto, é uma rua geral, não só de roupas de grife, restaurantes de gala e joalherias, mas também comércio de rua, quinquilharias, mendigos, os soviéticos e velhos Ladas se misturam à paisagem caricatural e pós-moderna dos automóveis do ano. E, ao longe, uma estátua de Maiakóvski. Fiquei admirando o poeta, numa pose pomposa que talvez ele mesmo repudiasse, até que lembrei que aquilo não matava fome, era precisos seguir caminho. Do alto, os prédios inclinados sobre as calçadas largas contrastavam uma opressão berrante com a liberdade urbana, contradição que a fome que eu sentia reiterava a todo momento.
         Já tinha desistido dos restaurantes. De achar uma pequena casa de pasto, um botequim, então (ai, saudades), mais nada me iludia. A razão que achei foi que o fim do regime socialista, muito provavelmente, leiloou todas as terras em uma única sentada, impossibilitando o surgimento de um pequeno comércio, deixando tudo na mão de grandes franquias, restaurantes pomposos, redes lucrativas, e empurrando os pequenos vendedores para as passagens subterrâneas, ou para bancas improvisadas em terrenos baldios, trailers, o espaço que restou. Nos edifícios principais, de pedra e respeito, só nomes de proporção, no inglês cirilificado: MacDonalds, Kofekhauz, Chokoladnitsa, Stardogs, Subway...
         Detive-me por um instante no último nome: era a mais razoável das opções. Talvez lá conseguisse comer alguma coisa por 100 rublos, deixando 50 para o caminho de volta para casa. Entrei. A paisagem desses estabelecimentos de franquia, creio, é a mesma em qualquer nação, em qualquer cidade, em qualquer época ou regime, apesar de algumas diferenças linguísticas elementares, vez ou outra alfabéticas, de modo que não cabe me demorar na descrição as mesas quadradas cheias de migalhas, dos painéis luminosos com sanduíches brilhantes, nem mesmo dos casais de namorados comendo coisas com bacon e tomando coca-cola. Até porque não prestei atenção nisso: a fome implicava a imediata interpretação dos preços, que, como se sabe, são vários e multifacetados. Para um sanduíche grande, por exemplo, temos o preço de... não, não, é melhor logo descartar o sanduíche grande, não como discriminação ou repúdio à sua própria natureza – grande -, mas pela proporcionalidade entre essas suas características fundamentais e seu preço correspondente. Vamos à ala dos médios (não há pequenos), começando, claro, pela escolha do pão. Até que um pão integral de aveia não seria má ideia, mais gostoso, nutritivo e... qual! Com cem rublos nenhum homem são pode se dar ao luxo de desfrutar de uma comida saudável. Pão integral, tinha até graça... É preciso partir de premissas populares: pão branco, até sem miolo, se assim for. Ótimo. Agora o recheio, pepino, quem sabe. Uma porção só! Isso. E alface, duas folhas. Tomate? Não, muito obrigado, até gostaria, mas a conta não fecha, vai sem tomate. Pode pôr sal também, se for de graça. Um molho... de que importa o molho antes da carne? É melhor escolher uma logo, é o que dizem, escolha uma carne... como seu estivesse pra escolher carnes...
         Foi nesse momento em que a ilusão se desfez por completo: o recheio mais chinfrim, de bolognesa, ou rosbife, sei lá eu, sairia por cento e cinquenta rublos. De modo que até poderia comer ali, mas teria de voltar para casa a pé, do centro, já anoitecendo, coisa de três horas de caminhada, hipótese que a fome até me fez cogitar por dois ou três segundos, mas logo voltei ao juízo, me desculpei com a atendente e, fugindo da sua justificada raiva, saí tropeçando do restaurante, envergonhado. Sentia que me olhavam com o mesmo desprezo do restaurante grã-fino, apesar de ser uma simples sanduicheria.
         Desiludido e faminto, saí à rua outra vez, agora sem mais ideias que me movessem. Ainda me arrependi um pouco, quem sabe eu não pudesse simplesmente comer o sanduíche sem carne mesmo, e assim saísse mais barato... mas já era tarde. Não acharia nada mais barato do que aquilo, meu dinheiro não dava para nada. E meu cartão não funciona por essas bandas, e, mesmo se funcionasse, poucos são os lugares que aceitam cartão por aqui.
Inconscientemente, fui tomando o caminho da estação de metrô, comeria em casa, talvez, se em casa houvesse o que comer, ou faria compras, devorando um saco de batata chips antes mesmo de sair do mercado, para aí sim ter uma indigestão pouco depois. Mas avistei, do outro lado da rua, uma possível solução: um banco filiado. Foi como se o sol o iluminasse num instante miraculoso. E se... E por que não? Se tirasse dinheiro, imagine, poderia comer onde quisesse, até no mais patrão dos restaurantes de Moscou, comendo cordeiro e bebendo champanhe, se me faltasse juízo, apesar das roupas amassadas por falta de ferro, e do cabelo desgrenhado, por falta de banho. A nota de 1.000 seria o meu terno, e uma boa gorjeta, a gravata. Mais 1.000 e arranjaria uma esposa. Dinheiro não me faltava em conta, estava decidido: atravessar a rua, tirar dinheiro, e comer bem.
         Segui pela escadaria à passagem subterrânea, ainda deslumbrado com as possibilidades do caixa eletrônico. Mas no caminho avistei, novamente, uma barraquinha com salgados, daquele mesmo aspecto velho, surrado, murcho, mas mesmo assim agradável e de bom preço, e com variedade, pelo pouco que entendia dos nomes e das formas de massa folhada. O efeito em mim produzido foi três vezes mais forte do que anteriormente, a fome aumentara, e a epopeia jogava uma nova luz sobre a situação. Atrapalhando o fluxo atribulado do fim do dia, detive-me pensando longamente sobre aqueles salgados, sobre o meu trajeto, sobre a morte da bezerra, até que voltei à terra, ou melhor, ao seu subterrâneo, me dirigi à vendedora atrás da barraca e pedi uma sloika de queijo com cogumelos. A senhorinha redonda retirou o salgado murcho da vitrine, meteu-o no microondas, pegou meus quarenta rublos e depois guardou o requentado num saquinho plástico, desejando-me, num sorriso, bom apetite. Agradecendo, tomei o caminho do metrô, devorando o salgado em algumas poucas e ávidas dentadas.
         E estou vivo até hoje.

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