segunda-feira, 21 de maio de 2012

O camarada Kóstia


- Konstantin Mikhailov, muito prazer – dirigiu-se a mim a figura séria, num sorriso manso no rosto enorme, os olhos claros, num gesto de sincera e normativa cordialidade. Vestia um terno simples, monocromático, desses que em São Paulo por muito pouco se compram na Teodoro Sampaio, e que na maioria dos serviços de escritório se exigem mundo afora.  De cara me levantei, num típico embaraço, para cumprimentá-lo também.
– Mas pode me chamar de Kóstia, todos me chamam assim.
E logo dispôs-se a me ajudar, depois das apresentações. Eu havia chegado demasiado tarde para aquele curso, embananado que estive com as complicações burocráticas do funcionamento regular da faculdade. O professor a princípio estranhou, mas depois que expliquei minha situação o estranhamento converteu-se em simpatia e até mesmo uma certa honra, por ter em seu curso optativo um estrangeiro, para além da miséria moral de dois únicos alunos. Em seguida recomendou-me ao tal Konstantin, que se sentava num canto, entre papéis e uma pasta de couro preta, uma figura não muito comum, não só pela expressão e jeitos mas principalmente pelo conjunto, o rosto enorme terminando em um cabelo, outrora cortado em escova, já quase hirsuto, mas com traços predominantemente quadrados. A benevolência e a seriedade profunda se destacavam.
Saímos lentamente da sala, ao fim da aula, e Kóstia ia me dando informações básicas sobre como correria o curso, o que já tinha sido passado, essas coisas mais fundamentais. Depois, seguindo-se um breve silêncio, em que seus olhos verdes aguados oscilavam entre o chão e mim mesmo, animou-se ante um tema um pouco menos maçante:
- E que tal, a nossa cidade?
- Bem, sabe... – juntei as ideias e palavras para uma pergunta habitual. – Tirando o frio, ehn, é uma cidade sem dúvida interessante, muito grande, de fato, maior do que eu imaginava. O centro é mesmo muito lindo, mas essa parte aqui já não me agrada muito... muitos carros, muitos anúncios, muito...
- Eu te entendo – cortou num calmo sorriso de lamentação -, tudo aqui agora vai muito mal – olhou para o canto, e logo voltou-se, com a mesma calma. - Se você tivesse vindo há vinte, ou há trinta anos atrás, sua impressão seria completamente outra. Aqui tinha muito verde, era um bairro calmo, meus pais têm algumas fotografias em casa. Mas agora... – suspirou -, tudo está muito confuso, o capitalismo é uma completa desordem, e a cidade nesse tempo cresceu demais... constroem essas coisas horríveis, como este Moskvá-City
- É, isso é verdade... – concordei, lembrando- me com tristeza da monstruosidade que se ergue diante da universidade, um condomínio residencial de fato escabroso, de vinte e tantos andares, daqueles que nós paulistas já nos acostumamos a olhar com indiferença, contrastando ufanamente com os predinhos residenciais à la Stalin. Mas logo emendei numa exclamação positiva:
 – Pelo menos tem esse fantástico sistema de metrô, que liga a cidade inteira!
- Pois então, herança soviética... – suspirou.
Seguiu-se um outro breve silêncio, em que seu olhar percorreu o mesmo trajeto entre mim e o chão. Nessas já tínhamos caminhado até a entrada da faculdade, onde logo acendi um cigarro, oferecendo-lhe, o que ele logo rejeitou. Ficamos ainda um pouco sem falar nada, enquanto eu fumava e olhava para o gigantesco prédio central, construído nos anos finais do stalinismo. E súbito outro tema de seu interesse apareceu.
- Mas então... por que a Rússia? Como nos veem lá no Brasil?
E pôs-se a falar que sua mãe já havia ido para lá, para o Rio, e que contava maravilhas, tinha fotos lindas, principalmente de Copacabana. Logo expliquei que, antes de mais nada, lá no Brasill se sabe que a Rússia é um país excessivamente gelado, algumas pessoas mais velhas associam diretamente com o comunismo e a coisa para mais ou menos por aí. E que eu, de minha parte, já estudava a língua há certo tempo, amava Dostoiévski (como qualquer estrangeiro, fascinado por “Crime e castigo”), e que em geral tinha uma admiração muito grande pela cultura russa, pela literatura em geral, pelo teatro, pela música...
E foi aí os seus olhos brilharam novamente, contrastando com a calma resignada, quase indiferente, com que tinha interagido até então: era sua paixão.
- Você conhece a nossa música? Do que você gosta, por exemplo?
- Bem... conheço muito pouco, na verdade, mas... conheço principalmente compositores anteriores à revolução... gosto muito de Tchaikóvski, de Korsakov, de Glazúnov... – comecei a lista de uma forma demasiado tzarista, ao que logo me emendei. – E também dos soviéticos, claro, embora eu conheça muito pouco, muito pouco mesmo, menos ainda... por exemplo, Chostakóvitch, Prokófiev... e acaba por aí.
- Eu simplesmente amo a música soviética... não só a clássica, mas principalmente a popular. – Disse num tom animado, quase triunfante. - Naquele tempo havia muitas gravações de músicas tradicionais, não só russas, mas de todas as antigas repúblicas socialistas... tenho um disco de músicas da Ásia central, que é maravilhoso... sem contar as músicas soviéticas propriamente ditas... – olhou para o chão novamente, num longo suspiro. - Grandes cantores! grandes gravações!... dependendo do período, claro. Devo confessar que, depois de 1960, há muito pouca coisa que preste. Tanto que na minha coleção só há gravações mais antigas...
- Você coleciona discos de... vinil? – surpreendi-me ante um hábito fantástico, mas um tanto quanto burguês. – Que legal!
- Sim, tenho de várias épocas, e de vários tipos. Uma coleção nada modesta, confesso. E todos em ótimo estado. – respondeu com um sorriso, inclinando levemente a cabeça, satisfeito. Nessas uma típica boneca russa, de salto-alto, óculos escuros, olhos claros, cabelos lisos e vestido hype, do tipo que povoa toda a universidade, veio me pedir um cigarro, sem mais. Depois de pegá-lo, foi se juntar a um grupo de semelhantes, dos muitos que começavam a se aglomerar na porta da faculdade para fumar e matar o tempo.
Daí voltei ao assunto.
- Muito legal... e você sabe bons lugares para se comprar?
- Sim... tem um aqui do lado, perto da Av. Lênin... tem muita coisa. Se quiser, posso te passar o endereço.
- Não acho que ajudaria muito... eu por aqui não conheço nada. Poderíamos ir juntos um dia desses, que tal?
- Eu agora não tenho muito tempo - embaraçou-se -, essa semana está complicada...
- Não, não precisa ser hoje! Nem essa semana... quando der. Eu tenho tempo de sobra. Quando for bom para você, combinamos.
Ele concordou com alegria. Já tínhamos trocado telefones, por conta da organização do curso, e combinamos de ir qualquer dia. A princípio era no próximo domingo, mas, quando nos vimos novamente, a figura grande e gentil veio explicar com pesar que, infelizmente, não poderia. Disse para que não se incomodasse, ficava para uma próxima. E nos encontrávamos com bastante frequência, para além da aula, na sala vazia, onde o velho professor, entre acessos de tosse e papéis amarelados batidos em máquina, contava sobre as crises diplomáticas do começo do século XIX, sobre como conheceu o homem que carregou a pistola de Gavrilo Prinzip, e ainda sobre como eu precisava arranjar uma garota russa, puramente a título de prática e melhoramento da língua – ao que respondia, sorrindo, que estava fazendo o meu melhor. Entre risos e explicações, Kóstia se sentava sempre no mesmo canto, com a mesma pasta, e no mesmo terno, anotando calmamente as informações relevantes, sorrindo de leve aos gracejos do professor. Depois sempre conversávamos, entre longos e típicos silêncios, sobre os temas habituais. Contava-me de algumas viagens, que fizera há muito tempo, sobre como seu pai nascera na Áustria, na zona de ocupação, e como não via os parentes da Sibéria já há muito tempo – “é mais fácil para um moscovita ir à Paris do que à Sibéria”, se lamentava. E perguntava sobre o que eu andava fazendo.
- Ontem fui ao teatro, como sempre... só que dessa vez infelizmente tinha duas garotas bestas que não paravam de falar...
- É por isso que eu não vou ao teatro. Além de caro, o público anda terrível... – sorriu, explicativo. E se pôs a falar sobre a música soviética.
Eu ria, concordando sem mais. Por quê discordar? Não tinha teorias nem contrapartidas ao seu saudosismo, e pelo que observava cotidianamente, nos anúncios abusivos, nos condomínios monstruosos, na juventude estupidificada, como as garotas do teatro, que mexericavam com o Facebook aberto no celular, e na música americanizada sem critérios, de qualidade lastimável, concluí ser preferível, entre os dois extremos, se escorar num passado idealizado a engolir a realidade na bazófia diária do liberalismo triunfante. E a música é sem dúvida a arte que mais se presta a idealizações.
As nossas conversas habituais seguiram esse mesmo ritmo. Às vezes me mandava mensagens, avisando que não haveria aula, devido às constantes crises da saúde do professor, ou que haveria reposição, necessidade de algum material, enfim. Tudo muito cortês, polido, respeitoso. Até que um dia, quando eu entrava  na faculdade para a nossa aula comum, dei com ele na entrada, como que me esperando.
- Olá! – sorri brasileiramente. – O que houve? Não temos aula hoje?
- Não, hoje não... eu te mandei uma mensagem, você não recebeu?
- Não...
E seguiu-se uma conversa habitual, sobre a fonografia soviética, o que de fato me interessa bastante. Depois de silêncios, tragos e comentários, decidimos ir embora, mas nesse dia íamos na mesma direção, como eu precisasse ir para o metrô e ele, para sua casa, que era para aquelas bandas. No meio do caminho a ideia lhe surgiu.
- Sabe do quê? Você... tem tempo agora? Podemos passar na loja de discos, se quiser... pelo menos posso mostrar onde fica, daí depois você pode...
- Sim, claro! – animei-me no ato, lembrando de súbito da proposta esquecida. -Tenho tempo sim, vamos lá!
E fomos, cruzando o mercadinho de frutas, livros e lanches improvisado junto aos prédios de quatro andares de Stálin, perto da estação de metrô, seguindo pela majestosa Av. Lomonóssov, onde a antiga habitação para professores resplandece em seus muitos andares e em sua completa ausência de enfeites, entre dezenas de outros prédios do socialismo real, que agora abrigam restaurantes de luxo, franquias de café de duvidosa qualidade e agências de turismo. A uma certa altura dobramos para dentro da quadra, atravessando um arco, e imediatamente o barulho dos carros e da confusão da rua se apaziguou: estávamos numa praça, no meio dos prédios com fachada para a rua, na típica unidade residencial soviética ainda remanescente, com a sua escola local (provavelmente já privatizada), seu parquinho, seus pequenos serviços, seus soldados e veteranos conversando, em uniforme de gala, em um banco, suas velhinhas resmungando cheias de sacolas, e sua clínica geral, ainda pública, mas Deus sabe com que qualidade de atendimento. No fundo do cenário, entupido de automóveis estacionados a torto e a direito, via-se a placa indicando a loja de discos, num subsolo.
Entramos em silêncio; logo de cara pilhas e pilhas de discos de diversas rotações, tamanhos e qualidades se amontoavam numa desordem desanimadora. Era a sessão de música soviética, que o camarada Kóstia, com meticulosidade e interesse frio, pôs-se a remexer. Já eu, com uma devastadora alergia à poeira e com uma preguiça física e alfabética, percorri levianamente com os olhos todo o amontoado de música, até chegar a uma pequena escadaria, que levava à outra parte da loja. Lá a ordem era completamente outra: os discos de rock eram dispostos com espaço, cuidado e destaque, assim como os de blues, de pop, de metal, etc. Nada disso, obviamente, me interessava, e aliás mesmo os discos soviéticos me eram de pouco proveito, já que estou com a mala abarrotada de livros e os LP’s, além de ocuparem um espaço enorme na bagagem, facilmente se danificariam na longa epopeia que ainda me aguarda no caminho de casa. Acabei me enfurnando num estreito corredor de clássicos, dispostos sem o mesmo esmero dos discos mais populares mas mesmo assim melhores do que o pós-guerra dos discos de música soviética. Chostakóvitch me espiava de um canto, na interpretação da filarmônica de Leningrado, agora São Petersburgo; a figura sóbria de Karajan, descrita em russo e em alemão, também se impunha, e até mesmo uma compilação de discursos de Hitler, temerária raridade, estava pendurada com um preço absurdo. Cheguei a uma sessão de literatura declamada, que me oferecia um interesse maior, e pus-me a procurar com ingenuidade algum disco barato de declamações de Maiakóvski, preferencialmente de seus poemas líricos, sem patéticas exaltações do regime, na sua voz poderosa, calada em 1930. Mas foi em vão: todos os que achei eram lidos por personalidades soviéticas aleatórias, e, claro, de seus poemas mais datados, destacando frases tristonhas como
 “Lênin – viveu; Lênin – vive; Lênin – viverá”
 junto ao selo oficial do partido. Acabei escolhendo um desses por puro interesse antropológico, desistindo da gravação dos clássicos pelo risco da compulsão, e me dirigi ao caixa, onde Kóstia já me esperava, com dois compactos e uma nota de cem rublos.
- Achou alguma coisa?
- Esses poemas do Maiakóvski...
- Ah...- sorriu satisfeito.
- E você?
- Sim, essa compilação de músicas da Moldávia... tenho poucas coisas de lá.
Pagou, e se dirigiu à saída, me esperando. Mas chegou minha vez, e quando descobri o preço de meu LP, quase tive um troço.
- 1.200 rublos?! – perguntei inconformado.
- Ora, é um disco duplo – resmungou a moça, de cabelo azul. – E além disso é uma raridade...
Conheço muito bem essas raridades. “Não, obrigado”, recusei, encostando o LP numa estante qualquer, e me voltando novamente às caixas de compactos soviéticos. Precisava pegar ao menos um, por lembrança e, claro, para não fazer desfeita com o companheiro. Uma olhada rápida e já me decidi: uma gravação de 50 e tantos de dois clássicos absolutos: Kalinka, e Noites de Moscou. Não havia erro: paguei razoáveis sessenta rublos e fui ao encontro de Kóstia.
- Nossa, meio cara essa loja, não?... me inconformei, na saída.
- Meio? – respondeu com espanto. - Meio não, muito! É por isso que eu quase nunca venho aqui. Não vale mais a pena colecionar discos, nem moedas, nem nada... – suspirou. – Tem alguma máfia que controla os preços, sobem a cada mês, virou artigo de luxo, coisa de ricos... felizmente tenho a minha coleção em casa, que herdei de meu avô.
E, voltando ao arco por onde entramos, nos despedimos amigavelmente, quase que para sempre. Ainda nos veríamos na última aula, em que, junto com uma cartinha com seu email e contato, me deu um cd gravado com músicas soviéticas. “De Kóstia – como lembrança”, estava escrito.
- Coloquei as minhas músicas favoritas – disse, explicando. – E tem também uma seleção especial de músicas da Grande Guerra Patriótica. Espero que goste.
Agradeci imensamente, explicando a dificuldade de se achar músicas dessa época sendo estrangeiro e desinformado. Foi nosso último encontro. Ainda consegui arrancar-lhe um abraço, meio rígido e desengonçado, e fui-me embora, pensando na vida. “Da juventude de hoje em dia”, disse uma amiga daqui, “metade bebe, e outra metade estuda. Infelizmente os que bebem não estudam, e a grande maioria dos que estudam não bebe”, apesar dela mesma ser a prova viva de que sim, graças a Deus, há exceções, nem que para confirmar a regra. Não conseguia mais esquecer a melancólica e saudosa sobriedade de Kóstia, nos seus hábitos simples e amarga resignação, e, às vezes, chego mesmo a experimentá-la, ao ouvir o disco que tão gentilmente me gravou, conforme pulo as grotescas marchas militares e observo a paisagem moscovita ao som de algumas canções profundas, meditativas e fortes, em que a tristeza do presente se intercala à esperança do futuro, ou à melancolia do passado, que sempre tortura os vivos como um fantasma, mas que na Rússia convive diariamente com eles, assumindo formas caoticamente banais.

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