domingo, 13 de maio de 2012

De corvos e livros

Poema histórico

Sento-me às nove horas da noite no parapeito da janela, à título de puro tédio, para olhar o azul do céu e a aberrante claridade de tudo. Ainda resta pelo menos uma hora até que o sol se ponha, coisas do norte, que dão àquele angustiante começo de noite o ar filosófico e calmo das cinco ou seis horas da tarde, fim de um dia normal ao redor do Equador, em que o rápido movimento do sol rumo a outras terras impõe à cabeça inquieta o balanço das experiências do dia, ou da vida, junto com a massa humana que se dirige aos lares, com os comércios que fecham, na circular rota do mundo num tempo plano e aberto.
         Sou envolvido por essas abstrações, como pelo sol que me roça. Adiante meu horizonte se abre em pinça: no fundo da paisagem os poucos arranha-céus de Moscou se impõem discretamente, até que a noite revele as cores de um século fantasma, rosa, azul, berrantes, como um calendário lúdico e cifrado. O panorama monótono de um século XX ajuda-os nessa tarefa, destacando-os nitidamente entre os habituais prédios de seis ou sete andares. Mais perto, a floresta que engatinha ao mês de maio já povoa o azul de verde, o que me acalma. Mas não me esqueço de onde estou: o verde é típico, e a tal da pinça de meu horizonte é o próprio prédio em que moro, estrela vermelha de seu tempo, acinzentada, onde, da multidão uniforme de janelas foscas, se impõem emblemas e signos de um futuro defunto. A foice e o martelo, fantasmagóricos, surgem da pedra rígida como parte do horizonte, distantes, eternos, sólidos, e defuntos. Sós, todavia. Não há bandeira, jornal ou marcha que os acompanhe.
         Resolvo-me pela compaixão a estes emblemas vazios. Ainda hoje ganhei de um amigo, entusiasmado saudosista, um CD de músicas tipicamente soviéticas, e ponho-o para rodar em meu MacIntosh, o cirílico isolado entre colunas brancas, determinadas pelo inglês. Em dois únicos botões a música é capaz de colorir o mundo inteiro, como uma tinta translúcida, ou algum cheiro de tempo, impregnando-se em tudo sem tocar em nada, discreta mas possante como uma certeza clara.
         “A certeza da vitória internacional do socialismo”, vinda de um século que já se pôs, às dez horas da noite de duas décadas atrás. Do pátio se ouve uma conversa em inglês, estrangeiros, como eu, mas numa ânsia de comunicação que põe para trás qualquer objetivo anterior, a língua, a cultura, por exemplo. Se tudo se nivela num único plano, nada disso interessa – no inglês cabe o mundo. Neste MacIntosh, por exemplo, em que escrevo, se lhe junto um cabo, também cabe o mundo, nas mais diversas línguas que este teclado comporta. As canções, por exemplo, vão em russo, sem escândalo. E como elas também em russo vai a paisagem que me envolve, suponho, desde os prédios mais altos, que agora já assumem cores vermelhas e amarelas, para voltar ao rosa e ao azul, até os primeiros postes que se acendem, mesmo os estrangeiros que conversam em inglês, os parapeitos das janelas, os emblemas do regime, e também...
         Junto à parede em que me abrigo, mais para baixo, uma enorme caçamba de lixo acaba de ser reabastecida, multicolorida como os arranha-céus, embora mais polissêmica, na futurista combinação de vegetais e sutiãs, ferro, papelão, plástico, e outras matérias dificilmente identificáveis. Mal o lixeiro termina de esvaziar os sacos, e um enxame de pombos e corvos voa de todos os cantos para a tão esperada novidade, a título de almoço, ou, quem sabe, se entre eles existe tal conceito, pura sociabilidade aviária. Como os arranha-céus, e a bem da verdade como a maioria da população atual, estas aves ignoram o lixeiro que acabou de lhes fornecer alimento e distração, vão direto ao ponto, que o voo lhes permite, sem qualquer prelúdio.
         Mas com as aves outra figura se aproxima, esta humana: em passos lentos e arrastados, num chapeuzinho rosa, que vejo circundado por um longo e surrado sobretudo azul, uma velhinha se dirige humildemente ao lixeiro. Também leva uma enorme sacola, vazia, o que o vento constante confirma, ao balançá-la constantemente, querendo arrastá-la. Depois de pouca conversa o lixeiro se afasta, deixando a velhinha a sós com a caçamba, espantando as aves famintas, que vão para outra caçamba, do lado oposto.
         Daí se segue um preâmbulo: a figura humana, cansada e paciente, projeta um longo olhar pelo entulho a sua frente. Ao contrário das aves, não lhe interessam sacolas, não lhe satisfazem restos apodrecidos de carne ou de legumes, muito menos os trapos imundos e gavetas espalhadas... aliás, em uma destas gavetas seu olhar se demora. Mas está distante, rodeada de outros restos, bem no meio da enorme caçamba, e a velhinha não a alcança, e tampouco pode pela idade ou pela decência simplesmente subir ou voar na caçamba para pegá-la. o lixo com alguma dificuldade – as pernas não ajudam -, e, depois de certificar-se da inutilidade do movimento, busca com avidez algum instrumento que lhe auxilie. O mais próximo no caso era uma caixa de pizza, largada num canto da caçamba, por descaso do lixeiro, que a deixou cair para fora. Sua alegria se nota até mesmo desta janela do sexto andar, através de um pequeno salto, o que suas pernas permitem, e uma exclamação mais alta do que sua voz roufenha normalmente, suponho pelo conjunto, seria capaz. É como se acabasse de descobrir o fogo novamente: a caixa de papelão, segurada transversalmente, estende seu braço até o  incompreensível conteúdo da gaveta, a que remexe com insistência e ímpeto. Até que finalmente esta se vira e revela, esparramada, uma enorme quantidade de livros: vermelhos, verdes, de capa dura, páginas já roídas de traça, ou até em condição perfeita, mas muitos, que a velhinha com dificuldade atrai para si, através da caixa de papelão. O primeiro finalmente se encontra ao alcance das mãos: ela o limpa com a barra do casaco, assopra, folheia rapidamente, e logo guarda na sacola, que deixa de balançar com o vento insistente. Logo os outros livros vindos da gaveta também estão disponíveis, ao alcance das mãos, e, repetindo o mesmo processo com a barra do sobretudo, ela vai colocando um a um na enorme sacola, que agora certamente já pesa, talvez até mais do que ela consiga carregar por muito tempo, até sabe Deus onde ela mora, em que palácio, em que barraco. É inclusive obrigada a deixar mais uns três ou quatro, que ficam lá espalhados, entre um sutiã e muitos sacos coloridos de supermercado, que um pombo logo se apressa, ao perceber que a concorrência se afasta, a bicar com indiferente avidez. Mas logo é obrigado a se afastar novamente, pois a velha rival volta, como se tivesse se esquecido de algo fundamental, com certa pressa, quase angústia. Era a caixa de pizza: abre-a, olha com calma, solta outra exclamação de alegria e a guarda dentro da sacola. Só daí então se afasta de vez, rumo aos portões da pinça que me cerca, onde para por um instante, toma fôlego, observa mesma paisagem verde, e depois segue à esquerda, numa direção que meu panorama, embora grande, não alcança.
         Enquanto isso a marcha da Juventude Comunista trovoa de meu MacIntosh, fazendo companhia aos solitários e desesperados brasões, fundindo-se ao prédio, à caçamba rodeada de aves e ao horizonte. Como a própria música, vitoriosamente anacrônica, agora uma tristeza irônica banha o mundo num silêncio cínico e poliglota. “Na União Soviética, para se conseguir um livro, tinha que esperar um dia inteiro numa fila, isso se se chegasse cedo”, disse certa vez o guarda de meu andar, ao me ver lendo nos corredores. “Agora há tantos que até se jogam no lixo”, suspiro, desligando a música e me projetando tristemente para o horizonte que anoitece. Busco ainda, desesperado, o apoio dos mesmos brasões e símbolos de que tive pena. Mas o fim da música retoma a realidade das coisas, e a resposta à minha angústia vem em plena indiferença, seja dos pássaros, das árvores, dos arrogantes arranha-céus e até mesmo  dos brasões, agora rígidos e distantes, completamente frios, sem qualquer agradecimento à minha compaixão por sua inutilidade.

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