domingo, 29 de abril de 2012

Registro civil


A sala 928 aparentemente não existia, pelo menos no nono andar, o que o prefixo nove havia garantido num sistema mais ou menos lógico para a localização. “Nono andar – o primeiro número é sempre o andar”, tinha dito o senhor na saída do refeitório. Sem opções nem ressalvas, acreditei e fui para lá sem demora, onde girei por uns quinze minutos sem achar qualquer coisa que se assemelhasse ao 928. Quer dizer, somente um 927, sala obscura onde homens discutiam alto, e um 929, depósito trancado, sem qualquer indicação sobre auxílio ou emissão de documentos e registros para estrangeiros agora domiciliados na capital da Federação Russa, sob a responsabilidade legal e custódia da Universidade Estatal de Moscou. Sessão para Repúblicas Sul-Americanas.
         As outras salas eram ainda mais desnecessárias naquele momento. Apesar de que o passeio por todos aqueles corredores, num andar pouco frequentado pelos estudantes, não pudesse deixar de ser interessante, misterioso, solene: tapetes velhos e vermelhos forravam todo o piso de madeira sóbria, tendo por cima de si antigos móveis de igual madeira, telefones enormes, como que de filmes antigos, e também como de filmes os zeladores que neles se sentavam e copiavam com muita atenção algum pedaço de papel, vestidos de azul, vasta bigodeira. Por fim cansei-me, ao perceber, pelo mesmo quadro de uma paisagem verde com fios elétricos, que já tinha dado uma volta completa, e lembrando do caráter oficial e prático do assunto que tinha que resolver por lá, larguei o orgulho e o medo e perguntei a um zelador sobre a sala inexistente.
         O velho levantou os olhos para mim, e observou-me por alguns instantes. Depois apontou para uma saída estreita num canto escuro do corredor, sem dizer nada.
         Agradeci.
         O tal canto escuro, escondido, se abria para um outro saguão de tapetes vermelhos e quadros, representando a perfeita harmonia entre a terra russa e os progressos industriais soviéticos. Lá a luz já era um pouco melhor, entrando por três largas janelas que mostravam o pátio distante, coberto de neve, e uma vaga Moscou se sugerindo no horizonte e na bruma. É que quase não há grandes arranha-céus nessa cidade, logo, dos poucos, como a universidade, tudo se vê. À direita das janelas três salas silenciosas, sem identificação, insinuavam seu trabalho quieto e constante.
         Talvez uma delas fosse a 928.
         Bati na primeira... o ruído da madeira bateu surdo na extremidade da sala, e voltou num eco – foi minha única resposta. Ainda esperei um pouco, mas passei logo para a segunda porta. Mal foi eu bater que ela, mal fechada, cedeu com um rangido escandaloso, escancarando uma sala empoeirada com uma mesa larga ao fundo, e atrás um sujeito rabiscando alguns papéis, que ao me ver começou a avermelhar e levantou-se num instante. Perguntei nervoso e tímido se esse por acaso seria o departamento de auxílio ou emissão de documentos e registros para  estrangeiros agora domiciliados na capital da Federação Russa, sob a responsabilidade legal e custódia da Universidade Estatal de Moscou – Sessão de Repúblicas Sul-Americanas.
         - O quê?! Como?! Mais essa agora... É claro que não! ! Nem existe esse departamento! E mesmo se fosse, que despeito é esse todo de entrar sem bater?! Você devia era...
         Me desculpei e fechei a porta atrás de mim. Que lascada! Espero que não seja o reitor, ou qualquer pistolão da universidade. Apesar de ter dito que não existia tal departamento... não era possível, o zelador tinha indicado aquele lugar. E de fato ainda restava uma porta, em que, Deus que me ajude, bati. Dessa vez sem escândalo e sem silêncio:
         - Sim? Entre, por favor. – respondeu uma voz simpática de mulher.
         Esperava alguma grosseria súbita ou mesmo alguma armadilha fatal, mas a moça, de rosto claro e um sorriso leve, me olhava de trás da mesa do canto esquerdo com interesse e, assim entendi, disposição sincera para me ajudar.
         - Pois não?
         - Olá! Bem, eu...
         Expliquei o meu caso, com a língua eslava aos tropeços e encontrões. Aqui cabe resumi-lo de forma mais clara: são, via de regra, três os documentos básicos para tornar um estrangeiro, pela universidade, um indivíduo russo jurídico legal. Primeiro um cartão de estudante, emitido pela respectiva faculdade, sem o qual não se entra em lugar nenhum, nem no banheiro; depois vem a registração, documento federal de razão pública desconhecida, necessário uma e cada vez que o estrangeiro se encontra em uma cidade nova. É como uma prestação de contas ao governo sobre onde se vive e desde quando, e talvez por quê. Por fim vem a prescrição, segundo a qual se confirma e  oficializa  que o estudante tal a partir de tal e tal convênio com a universidade tal firmado no dia tantos de certo ano está oficialmente, de tal data àquel’outra, estudando aqui.
         E, quase me esquecia, ainda uma quarta e importantíssima documentação: no meu caso, já que moro no alojamento da  Universidade, há a autorização, dependente da total regularização dos outros três, mais um formulário, cópia da Registração e uma foto ¾ colorida não plastificada. E era justamente aí que a história  engrossava para o meu lado.
         Para adquirir esses documentos, bem... eis a epopeia do papel. Tudo se inicia com uma autorização provisória, por assim dizer a primeira fase, mas percorrendo cerca de dez ou vinte salas, falando com as pessoas certas, nos horários e dias de funcionamento adequados, com as devidas indicações, esse  papel pode se multiplicar em até outros sete, ou oito, se não me engano, de diversas cores e  tamanhos. Um espírito um pouco mais lúdico que o meu conseguiria fazer uma verdadeira coleção. Mas o objetivo final mesmo, para evitar problemas, é conseguir aqueles quatro que já descrevi. Digamos  que a fase em que eu me encontrava já era bem avançada, contando com metade dos documentos finais e engatilhado para os outros dois. Mas o terceiro, a Prescrição, estava tardando a chegar, e o provisório do quarto papel que me garantia a moradia estava prestes a expirar, me garantindo a incrível e real narrativa de um despejo de final de inverno no ex-país dos sovietes.
         - Você entende? – perguntei por fim à moça, que me ouvia com sincera atenção. – Este papel não chega de jeito nenhum, e já estão me cobrando no alojamento...
         -Ah, não se preocupe – sorriu ela, meigamente. – Olha só, pegue este papelzinho aqui – e me estendeu um formulário, que acabava de preencher e assinar -, e leve ele agora ao gabinete 177, no primeiro andar. Hoje é... quarta-feira, certo? Sim, ele funciona hoje. Mas corra, se não fecha! Leve esse papelzinho lá, fale que você passou por aqui. Seu documento vai ficar pronto até a semana que vem – disse, olhando um formulário enterrado numa das muitas gavetas do móvel. – Pode ficar tranquilo.
         Me desejou “tudo de bom”, e nos despedimos. Confesso que, apesar de não ser muito bonita, de sua profissão não ser das melhores e de eu não querer nem um pouco passar o resto de minha vida neste país, mesmo assim minha vontade sincera naquele momento era de pedi-la em casamento, ali mesmo, e confessar a história de meu amor delirante por ela, desde que havia me atendido com tanta meiguice e dedicação, no meio daquele pântano moral do funcionalismo da universidade etc. etc. Mas a obrigação me chamava, e era preciso correr.
         Dois elevadores – “Não, esse não para no primeiro andar”, “com licença”, tive de descer -, e o segundo finalmente me deixou no terreno conhecido do primeiro andar. Depois de atravessar os grandes saguões e esbarrar com estudantes desleixados e cidadãos respeitáveis já me encontrava novamente em terreno oficial. Mas pelo menos este não me era estranho – tinha passado por lá na minha chegada. Só não conseguia novamente achar o diabo da sala... da sala... qual sala mesmo?
- Ah, 177! - Olhei num papelzinho amassado que guardara no bolso da camisa. Passei por uma 175, é verdade, e também por uma 180, e mais adiante até uma 717, quer dizer, não, 117. Finalmente fui parar num saguãozinho, onde estudantes de diversas etnias se aglomeravam em filas mudas. O único ruído, para além do de máquinas e lápis, vinha de uma funcionária azeda, óculos grossos e batom carmim, que brigava com um chinês.
- O que é que você precisa, hein?! hein?! Só me aborrecer! Não vê quanta gente aqui esperando! Que diabo! Tá olhando o quê?!
Mas como o pobre do chinês não entendia quase ou absolutamente nada, e seguia com a mesma cara de súplica, com uma folha timbrada na mão feito caneca de esmola, a briga era tão injusta quanto estúpida. Por fim a mulher se deu conta  das dificuldades comunicativas, virou-lhe as costas e entrou numa sala no fundo, fechando a porta com barulho. Nesta, se lia “177”.
“Essa agora é boa...”, gelei, constatando no papelzinho amarrotado que o destino me reservara, junto à situação delicada, uma funcionária de mal-humor. Mas respirei fundo e me preparei para o ataque, dando só uns minutinhos para que, quem sabe, sua disposição se recompusesse ao menos para com os ocidentais, e para que eu mesmo tomasse alguma coragem e preparação linguística.
Me aproximei e bati na porta.
- Sim?! Pode entrar!
- Olá, com licença, eu, bem...
Ela já me olhava com impaciência. Mas não aquela impaciência brasileira, com as quais lidamos todos os dias, que faz questão de deixar muito claro àquele a quem se dirige o quão indesejável ele é, e o quão inúteis serão suas perguntas, gentilezas, esforços e invectivas, diante da rigidez soberana da má-vontade, praticamente uma maneira gentil de pedir para que suma dali o mais depressa possível. Aqui é uma impaciência cínica, que se diverte fleumaticamente a cada grosseria possível, que busca empecilhos a cada gesto de um interlocutor fragilizado, escravizado pela hierarquia do papel, e que faz da escrivaninha que nos separa praticamente um altar, e do burocrata, um sacerdote. Mas mesmo assim não me abalava: tinha respirado bem fundo.
- ... daí como não chega de jeito nenhum, eu, bem, me deram esse papelzinho aqui, e, hum, como eu preciso prolongar minha estadia, eu...
- Deixe-me ver.
Dei-lhe o papel e comecei uma prece.
- Hum... hum, hum. Hum? Ahã... – levantou os olhos para mim, e voltou para o papel – hum, ham. Coff, coff, ruff! – tossiu com força. - Huhum. Isso não está certo...
- Como não?
- Onde está a sua registração?
- Então, é o que eu tinha dito... não está pronta... mas na semana que vem com certeza já vai...
- Volte então na semana que vem – respondeu com aquele tom de presunção de uma resposta óbiva. Mas não desisti.
- Não tem como! Preciso renovar minha estadia pelo menos até sábado, entende?
Ela me lançou um olhar de impaciência, que respondi mantendo firmemente a minha cara de pobre coitado exigindo justiça. Até que ela finalmente cedeu, num suspiro de desgosto, e passou a organizar outros papéis. Esperei um pouco olhando para a mesa, onde uma quantidade inacreditável de formulários, aplicações, boletos, protocolos, petições, tabelas e outras criações do moderno estado-nação se distribuíam, entre carimbos, apontadores e grampeadores, num sentido obscuro ao visitante desavisado, mas necessário e diria até vital para o funcionamento do funcionalismo. “E depois na União Soviética faltava papel para fazer livros...!” pensei com amarga ironia.
Finalmente ela retirou  um formulário da quarta ou quinta gaveta, preencheu-o com uma caligrafia incompreensível e me entregou com outro suspiro de desgosto.
- Sala 179. Leve esse formulário lá.
- Ahã... isso fica onde?
- Aqui, em frente!
- E é só esse formulário mesmo?
Ela me olhou com ódio profundo, ao que agradeci e me levantei num dois. Felizmente dessa vez a coisa era simples: de fato a sala 179 ficava em frente. Lá fui até que bem recebido, mas levei um chá de cadeira, como as três funcionárias desse escritório conversassem acaloradamente sobre temas urgentes de suas vidas pessoais, e depois de me entregarem dois novos papéis me mandaram à sala 175, que ficava no fim do mesmo corredor. Embora não tão bem recebido, a sala 175 era agradável e não tive que esperar muito, já que a pobre da funcionária, seja porque trabalhasse sozinha ou porque não tivesse uma vida pessoal tão interessante, não tinha com quem ou sobre o quê falar, de modo que fui logo encaminhado para a sala 185. Mas dessa vez esqueci de perguntar onde ficava, e era do outro lado do prédio, o que me rendeu mais quinze minutos de perna batida até que resolvesse perguntar outra vez, achasse o lugar e trocasse todos os cinco ou seis formulários por um único papel, novo, de caligrafia compreensível e aspecto pomposo. E me encaminharam novamente para conhecida sala 177.
Entrei e cumprimentei a funcionária como se fôssemos amigos de infância.
- Quanto tempo! – arrisquei numa piada, tão bem recebida quanto uma cantada de pedreiro. Calei a boca e entreguei o papel, ao que ela logo se pôs a fuçar novamente nas pastas e gavetas atrás da minha ficha, até que, contrariando todas as expectativas, ao invés de outro formulário retirou um novo documento e se pôs a preenchê-lo.
- Não precisa mais trazer a registração. Você só tem que trazer depois uma fotografia, para que aí então eu possa... – murmurou num sorrisinho sádico.
- Eu já tenho – estraguei ingenuamente sua satisfação retirando de pronto uma fotinha amassada da carteira. Ela pegou, olhou com algum desprezo, mas logo colou no documento, retirou um carimbo da gaveta e, num gesto decidido e estrondoso de um finale, abençoou um papel até então prosaico com a marca divina do estado Russo, transmutando-o da água para o vinho em documento oficial.
- Aqui, pegue, por favor. Daqui a um mês você volta aqui para renová-lo.
Peguei o documento, agradeci com sinceridade e me retirei do gabinete, contendo a minha alegria até sair da zona dos escritórios. Quando finalmente me senti seguro tirei o documento do bolso, beijei-o e dei um pulo de alegria: não sei se por estupidez ou se por socialismo, mas o fato é que se esqueceram de me cobrar o aluguel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário