domingo, 15 de abril de 2012

Pelos canos

 
É claro que tinha de ser justo quando resolvi sair para fumar. Estava sentado nos degraus da escadaria, junto ao cinzeiro, pensando na vida, quando o fuzuê que se formava no corredor se fez ouvir e eu, com a alegria dos fumantes curiosos entediados, fui logo ver.
         Mas foi só bater o olho para que a alegria se desfizesse: o tal do fuzuê era bem na minha porta, e, ao me ver, o então guarda do sétimo andar, que já estava por lá, preocupado, junto a um outro guarda que eu não conhecia, acenou para que eu me aproximasse. Despedi-me do cigarro e dos outros fumantes e fui, reclamando. E de fato, no quarto, me esperava uma cena desagradável: meu vizinho, alemão digno do título, olhos claros, loiro, somente de cuecas, fazendo jus ao sábado, olhava perplexo para os dois guardas preocupados, que perguntavam com impaciência o quê se passava, ignorantes do fato de ele ignorar a língua russa, os três juntos formando uma admirável conversa entre um surdo e dois cegos. Não fosse a imensa poça d’água que ficava entre eles a incompreensão seria completa, mas a situação se explicava nos fatos: a água da pia escorria lenta e cruelmente, numa cascata que sem mais opções acabou desembocando na própria sala, formando uma espécie de Mar Cáspio nos territórios de Moscou, infiltrando pelo soalho e finalmente alcançando o sexto andar.
         - Reclamaram agora há pouco – me explicou, com calma, Sacha, o guarda do sétimo andar. - Sabe o que foi que ele fez? – e apontou para o perplexo alemão de cuecas.
         - O que houve? Por quê essa água toda?! Até lá embaixo está vazando! – disse o outro guarda, com bem menos paciência.
         - Eu vou ver, ah, bem, ele não entende russo. – expliquei na dita língua, e numa manobra mental me voltei em inglês para a figura. – Que porra é essa?
         - Eu não sei! – balbuciou com franqueza. – Esse negócio não fecha direito, eu coloquei o balde, mas parece... que não ajudou.
         O balde estava realmente lá, debaixo da pia, mas já cheio, transbordante e impotente, servindo só pra testemunhar a sinceridade da iniciativa de meu vizinho. Mas não ter conseguido fechar a torneira era pura incompetência: eu tinha pego o macete de apertar e puxar em três dias, enquanto essa criatura rosada do primeiro mundo não tinha nem... bem, não importa. A coisa está pingando.
         Arregacei a barra da calça e alcancei a pia, fechando  a torneira, e depois peguei  um pano que estava lá estendido no banheiro e comecei a tentar enxugar, mas a primeira passada de pano comprovou o ridículo da iniciativa, já que a água era muita e o pano um só. Nessas percebi o problema: o cano que levava a água da pia tinha soltado, e a pia agora dava direto para o chão do banheiro. Tentei reencaixar, o que funcionou um minuto, para minha alegria, para logo se soltar novamente, para meu desespero. Não tinha saída, era chamar o encanador.
         - Sacha – virei-me para o guarda, que ainda observava, ora a situação, ora o alemão de cueca -, tem alguém aqui que possa, hã, bem, ajudar? – desconhecia a palavra “encanador” na língua russa.
         - Ah, tem sim! Já chamamos o Vseslav, daqui a pouco ele chega. Só faça o favor enquanto isso de enxugar um pouco, pra vazar menos no sexto andar.
         Retomei a saga do pano, com o auxílio de uma pá e do alemão, agora já decentemente vestido, jogando de quando em quando a aguaceira imunda na banheira. Logo os dois guardas se despediram, Sacha dizendo que depois voltava, e ao outro pedi que se desculpasse por mim aos compatriotas do andar de baixo. Depois de umas dez passadas de pano, a poça reduzida a umidade, uma conversa ruidosa e escandalosa passou a vir do corredor, se aproximando cada vez mais. Uma voz grossa, rude e extremamente ligeira dominava a palestra, deixando a uma segunda, anasalada e seca, a humilde tarefa de algumas ponderações. Finalmente a conversa estava na minha porta: um sujeito loiríssimo e baixinho, zarolho como a própria Rússia, trazia uma pochete e atrás de si dois camaradas silenciosos, a puro título de companhia. Sem mais nem menos já foram entrando.
         - Que é que foi, é daqui que a água vem? Olá! É aqui, ein? Que é que foi?
         O olho esquerdo me encarava enquanto o direito se dirigia para o meu vizinho, a voz grossa expressando uma infinita impaciência e uma rudeza quase como se no dia anterior tivéssemos nos encontrado no boteco e eu, bêbado,  tivesse xingado a sua mãe. Assustado e sem vocabulário para sistemas de encanamento e sua necessária manutenção doméstica, resumi a resposta apontando para o cano solto, o que ele presto entendeu, entrou no banheiro num passo e se sentou na poça d’água, resmungando. Dos outros dois um se encostou à porta do banheiro, também presto a passar materiais necessários e a concordar com o monólogo incessante do encanador, e o outro por alguma razão nem sequer entrou no quarto, e ficou andando de um lado para o outro no corredor.
         - Você não sabe o  que o cachorro disse... nunca vi um canalha tão folgado... e ainda por cima ele... me passa a chave!.. ainda por cima ele disse que ia aparecer na quarta... se ele aparecer, ah, eu mostro como... me passa a fita!... deixa eu ver isso aqui...
         Confesso que, apesar de ter estudado quase quatro anos de língua russa, dois dos quais com muito afinco e frequência, a linguagem e a velocidade com as quais o encanador articulava suas pragas foi para mim o maior de todos os desafios que já encontrei desde que me decidi por esse tortuoso caminho.          Posso entender uma aula de história, um poema de Púchkin, até escrever uma carta ou cantar uma russa, mas aquele encanador desafiou todas as minhas capacidades linguísticas, não só pelo ritmo, mas pela riqueza em expressões, pelo volteio das palavras. Sem mais, impotente e alheio, desisti de tentar entendê-lo pus-me a observar humildemente o seu trabalho.
Arrancou a peça que ligava o fundo da pia ao sistema geral, examinou cuidadosamente com seu olho direito, e exclamou.
         - Lixo! Seu cano quebrou por  causa do lixo. Por lixo, tem que pagar.
         Lembrei das toneladas de chá preto esvaziadas na pia mesmo, me senti um jumento e um medo instantâneo.
         -  Quanto? – arrisquei.
         - 400 rublos.
         Bem, até que não era tão caro assim... fazer o quê? Não jogar mais chá preto na pia, claro. E também, claro, pedir metade do dinheiro ao alemão. Bati na sua porta, e lá estava ele novamente de cuecas, deitado na cama, assistindo algum seriado americano. Pedi o dinheiro, e ele, sem qualquer resistência, me deu no ato.
         - Esse cano aqui não engancha de jeito nenhum... – praguejava o encanador, compenetrado. - Vou precisar do... Aleksei!
         E o sujeito que andava no corredor entrou no quarto no mesmo instante, como se já estivesse esperando o momento de oferecer qualquer utilidade à causa. O encanador pediu a ele, no mesmo tom de impaciência e raiva, nada pessoal, uma série de coisas, para as quais infelizmente me falta vocabulário até mesmo em português, imaginem então os senhores em russo. “Coisas” já basta.
         E lá se foi o sujeito, correndo, atrás das coisas. Nesse ínterim, enquanto o encanador continuava conversando com o assistente, aproveitei para já lhe entregar o dinheiro – “que seja!” pensei -, e ir fumar outro cigarrinho. Quando voltei, lá estava o compenetrado encanador, com duas peças novas encostadas num canto e um imenso, gigantesco chumaço de cabelo, talvez crina de cavalo, juntado num rolo, que ele com muito esforço enrolava em torno das juntas dos canos. Realmente nojento, eu diria, mas também curioso. Talvez alguma tradição eslava, ou fruto dos duros períodos de escassez e guerra que esse país de quando em quando atravessa. Em pouco tempo, algumas tentativas e muitos xingamentos, o cano estava encaixado, o encanador exausto e o banheiro inundado, cheio daquele cabelo nojento, espalhado por tudo quanto é canto, servindo de liga para o encanamento. Por alguma razão, respeito, talvez, ou porque o trabalho realmente me parecesse bem feito, fucei atrás de cinquenta rublos na minha carteira e, quando o encanador se afastava, com seus dois assistentes atrás, chamei-lhe.
         - Aqui! Pegue, por favor. – ele me olhou perplexo. – Pelo serviço.
         Ele guardou o dinheiro, me olhou com o olho esquerdo como se eu fosse louco, e murmurou um “obrigado”. Depois foi embora.
         Voltei ao banheiro: já era tarde, e tinha que me ajeitar para dormir, escovar os dentes, essas coisas, e também lavar uma louça, coisa de dois pratos, que como não temos cozinha própria nos quartos acabamos usando a pia do banheiro mesmo. Logo que entrei percebi com grande desgosto que o rolo de cabelo havia ficado por lá, talvez como gentileza, em caso de outras eventualidades. Chutei a criatura para um canto e cuidei de meus afazeres: tudo certo durante a escovação de dentes, a lavagem das mãos, o primeiro prato, o segundo... mas quando chegou nos talheres, um barulho de bolha seguido do da água batendo no chão veio confirmar meus temores: o trabalho havia sido mal-feito. Foi em vão que tentei juntar o cano novamente, encaixá-lo, até mesmo repetir o grotesco processo de enrolar o cabelo em torno das juntas até que se fixassem; o máximo que consegui foi que o cano não caísse mais, apenas pingasse em volumosas correntes a água da pia.
         - Nós pagamos. Deveríamos realmente matar esse sujeito – disse o alemão, em tom de brincadeira, ao constatar a ineficiencia total do conserto.
         Pusemos o balde novamente embaixo da pia, e está lá até hoje.

Um comentário:

  1. me diverti imensamente porque pude rir da minha própria situação hoje pela manhã. canos são canos, não importa onde se esteja!

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