sexta-feira, 27 de abril de 2012

O homem socialista

“Moscou não é Rússia”, dizem quase todos os russos que conheci por aqui, numa espécie de consolo. É verdade que a inexistência do artigo na língua russa pode gerar tanto o sentido de “Moscou não é Rússia” quanto “Moscou não é A Rússia”, mas no caso não importa muito: o principal é que há alguma esperança à pessoa educada e mais ou menos gentil que queira se relacionar com a população desse país. Porque se depender de Moscou, bem... estará perdido. Eu mesmo, nas situações mais corriqueiras, como ao entregar um casaco, pegar uma condução, esperar numa fila, já passei por desgostos mortais, daqueles que a gente se questiona o que está fazendo aqui e o que foi exatamente o que fez para merecer tanta grosseria.
No fundo cada um tem lá seu pecado, mas mesmo assim Moscou é cruel demais. Coisa de capital, dizem alguns, se lembrando do senso comum sobre Paris e mesmo sobre os jeitos bruscos do fluminense regular. Mas aqui não é só a cara feia nas situações corriqueiras, em que é realmente difícil e quase beatífico manter o bom humor, mas também nas mais simples e tranquilas, que até mesmo em São Paulo nos acostumamos a contar, se não com a gentileza, pelo menos com a cordialidade do outro ser humano. Mas o moscovita dispensa cordialidades: ele sabe o que quer, quando quer e como quer, e se por alguma razão esse objetivo final é atrapalhado, é óbvio que o outro ser humano é digno de desprezo. Na entrada dos metrôs, nas filas dos supermercados, nos restaurantes: é preciso estar sempre pronto para a guerra. Você talvez ignore o seu crime, mas o moscovita estressado de trás sabe muito bem como você atrapalha a vida dele. O único lado bom dessa incrível falta de paciência, que já deve imperar aqui há muitos anos, é que como todo mundo já se acostumou a receber patadas dia e noite ninguém mais se incomoda com nada. Sob o véu da impaciência, a paciência do moscovita é infinita. A grosseria não significa que ele te odeia: é a única forma que ele tem de se relacionar.
Estamos, eu e minha companheira brasileira, no monastério de Novodevitche, não muito longe da universidade. O monastério é realmente lindo, construído no século XVIII, e a primavera fez com que se tornasse um dos lugares mais agradáveis por onde já andei aqui – relva fresca, flores nascendo, passarinhos voltando, popes barbudos filosofando antes da missa... infelizmente, boa parte dos edifícios é fechado para a visitação. Inclusive uma torre enorme, gigantesca, onde ficam os sinos, e de onde certamente pode-se ter uma vista fenomenal da parte sul de Moscou. Que era fechado à visitação, bem, não havia dúvidas. Mas... quem sabe uma conversinha com a pessoa certa não ajudasse?
- Meu senhor, com licença... será que a gente não pode entrar ali naquela torre grande ali?
O guardinha só olhou para nossa cara, com um misto de desprezo e indiferença, respirou fundo e respondeu:
- Ali é a torre do sino. O senhor é sineiro?
- Pelo que eu sei, não
- Então. Não.
Eis uma forma original de dizer não. E o passeio acabou ali mesmo.

Agora estamos na condução pública. É difícil, quase impossível, explicar num único texto todas as vicissitudes do transporte público terrestre dessa cidade, até porque eu mesmo quase não o uso, a não ser no pequeno trecho que separa a estação de metrô do alojamento em que moro. Cabe apenas dizer: confuso, como o próprio trânsito. E assim sendo é natural que se pergunte de vez em quando ao motorista qual o trajeto do ônibus, se passa no lugar tal, enfim. Mas essas coisas, a meu ver, exigem um mínimo de educação e respeito que o moscovita médio, aparentemente, desconhece.
Entra uma moça cheia de dengos no ônibus, salto alto, bolsa enorme, a típica boneca, e se dirige ao motorista, com a mais irritante das vozes.
- Por favor, esse ônibus passa no prédio central da universidade?
Cabe explicar que o motorista é separado do convívio público por uma grossa parede de vidro, na qual abre uma pequena janelinha somente para pegar dinheiro e dar bilhetes. O sonolento motorista, atrás de espessos bigodes, vendo que alguém se dirigia a sua pessoa não com dinheiro mas com perguntas, pôs-se a abrir a janelinha para tentar escutar. Mas a moça era implacável.
- Por favor, eu disse, esse ônibus passa ou não passa no prédio central da universidade?
- Ehn? – resmungou o motorista de lá de dentro
- Passa na universidade?! É já a terceira vez que eu pergunto, vou ter que perguntar mais outra? A pergunta é difícil?!
Na porta, estava tudo escrito até que com clareza, sem o que eu mesmo nem teria entrado naquele ônibus – eu ia para lá também. O motorista não perdeu a chance.
- Tenha a bondade, a senhorita sabe ler?
- Ehn?
- Está tudo escrito na porta. Não se dirija ao motorista.
E fechou a janelinha. Cutuquei a moça e expliquei que sim, passava. Com pena da gente dessa cidade, tentei contar quantos dias ainda tinha até minha passagem de volta.

Na fila do refeitório, cinco sujeitos se intrometem na minha frente sem dizer nada, e quando eu reclamo, me xingam. Depois uma moça me olha feio quando eu finalmente consigo sentar numa mesa suja de canto, porque aparentemente ela tinha visto primeiro. Quando tento ser gentil, claro, sem ceder nem um dedo o meu suado lugarzinho, ela vira as costas e ri com a amiga da minha cara. Ai no elevador, enfurnado entre mais dez pessoas, sufocado com a abundância de perfumes com que as russas se banham toda manhã e a abundância de suor que os russos emitem naturalmente, percebo com desespero o meu andar se aproximando. E eu no fundo do elevador.
- Com licença, posso passar?
- Pode tentar.
Armei meu cotovelo como um broquel, e abri caminho nas selvagens terras do elevador eslavo. Mas ainda assim fui pedindo desculpas, que eram recebidas com a maior das indiferenças.

“A solução é fazer como eles”, pensei certa tarde, depois de quase levar uma portada na entrada do metrô, num dia particularmente ruim. “Pelo menos enquanto eu tiver que sobreviver nesse lugar”.

Antes do teatro, passo na chapelaria para deixar meu casaco. Ninguém me perguntou se eu de fato quero deixá-lo lá – são as regras, é assim em todo canto, embora eu mesmo preferisse, talvez, carregá-lo comigo para o balcão. Já sabia de antemão que meu casaco não tem com que se pendurar, fonte de constantes aborrecimentos em teatros, já que os malacos das chapelarias sempre cobram vinte rublos pelo aluguel do cabide. Mas nesse dia, seja porque não tivesse vinte rublos, seja porque estivesse afim de confusão, fui de cara explicando.
- Não precisa de cabide.
- Como? – olhou uma velha enrugada feito uma meia, com uma voz roufenha e desagradável.
- Cabide, não precisa, ok?
- Sei, não precisa, e como é que eu penduro isso daqui, ein?
- Muito simples – respirei fundo -, é só pendurar. Você pega, faz assim e – pronto! Está pendurado. Quer que eu te mostre?
- Por favor – respondeu a velha com raiva, e abriu a cancela da chapelaria.
Entrei, peguei meu casaco, olhei pelo número onde devia pendurá-lo e pendurei-o, segundo as minhas próprias explicações. Depois agradeci e fui ao espetáculo, temendo somente encontrar um pote de graxa derramado no meu bolso quando voltasse para buscá-lo. Mas não só não achei graxa como, percebi, fui tratado com mil vezes mais amabilidade, respeito, até, diria, do que quando cheguei. “É assim que eles se entendem!” Fui pensando, no bonde. E depois pus-me a contar novamente os dias até minha partida, se não da Rússia, ao menos de Moscou, nem que fosse para ir à cidade ao lado, ou qualquer lugar de alma um pouco mais socialista, nessa pequena fraternidade das situações cotidianas, que se não abole a miséria, a fome e o trabalho mecânico, pelo menos colore com tons humanos o vazio das situações corriqueiras, das quais muitos já saem para o alcoolismo, o suicídio ou para a total indiferença.

Um comentário:

  1. Pedro, os moscovitas são realmente insuportáveis. Meus vinte dias em Moscou me fizeram concluir isso. São Petersburgo é melhorzinho. Fiquei pensando na imensa diferença entre a Rússia que eu vi e aquela que De Sica mostra em "Os girassóis da Rússia". Haja amor pela cultura dos caras para tolerar imensa falta de sociabilidade. Abração.

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