segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ode à temperatura positiva


         O ideal mesmo seria escrever em alguma forma grandiloquente, majestosa, forte, que pudesse exprimir em todos os seus aspectos a divindade da temperatura positiva. Talvez um soneto, pensei, mas o pobre do soneto anda tão antiquado, que talvez soasse irônico. E meu sentimento é sincero. De fora, é tão difícil escrever um soneto... uma ode! Já que o título saiu desse jeito, não seria mal se esforçar para... não, impossível, eu mesmo nem sei como se faz uma ode. O título fica a título de pura alegoria e homenagem. E colocar “homenagem” como título seria formal demais, acabaria saindo uma nota, facilmente compreendida e, portanto, sem as proporções e a seriedade que o tema realmente exige. Já sei: uma epopeia, uma verdadeira epopeia, solene, grandiosa e simples, com todos os mais fundamentais aspectos dessa aventura climática que... ora pílulas, de onde tirar versos para uma epopeia? E um herói, então? Certamente não será o termômetro. E muito menos eu mesmo, que ainda estou aqui atravancado nessa guerra de Troia, sem parceiros aparentes e pior, sem histórias para contar. A única solução que me restou foi o bom e velho verso branco, sem grandes compromissos formais ou melódicos, simples, expressivo, e que cá entre nós me agrada bastante. Mas mesmo o verso branco... ah, não, não vou fazer a poesia de capacho para as minhas impressões mesquinhas. A poesia é grande demais para qualquer impressão efêmera, leviana, e se os ditos poetas conseguem fazer dos botões de uma calça alexandrinos perfeitos, é porque há realmente qualquer coisa de infinito e, vá lá, de alexandrino nos botões das calças.
 Não sou poeta e estou de cueca. O tempo finalmente melhora, é preciso escrever sobre ele. Vá lá, uma crônica talvez dê conta do recado.
Não se trata simplesmente do sol; às vezes, quando esse aparecia sobre a desagradável temperatura de menos 7 graus para baixo, apesar de melhorar o humor igualmente desagradável dessa população do norte, e claro, o meu próprio e desesperado humor, conseguia por incrível que pareça apenas piorar a situação: o vento engrossava, o frio soava cínico sob a luminosidade gentil, e algum ingênuo latino-americano como eu poderia se enganar (como de fato me enganei) e, pela fórmula tradicional dos trópicos, julgar a palavra sol algum sinônimo da expressão bom tempo. E daí as suas consequências, como sair de bom humor e levar uma patada na rua, ou sair de roupas leves e ganhar um resfriado. Nem todo sol é aquele em que se pode “rever-te sob o sol de tropical”. Aqui o próprio sol se agasalhava decentemente quando resolvia sair na rua.
Mas agora não tem erro: é chegada a primavera. Quer dizer, espero que assim fique, e que também esse texto não se torne amanhã fruto de uma leviandade desesperada, pronta para se abrir em alegria ao menor sinal de um tempo amistoso - 16 graus positivos! Diz um provérbio russo, que poderia se encaixar ao nosso outono: a primavera engana.  Mas se amanhã isso se revelar uma estupidez, caro leitor, saiba que, por puro orgulho, não vou desmentir essas esperançosas palavras, e que pelo menos do outro lado do globo passem a pensar que aqui tudo vai bem, pelo menos no tocante a questões climáticas.
Mas mal, muito mal, notícias de jornal, etc. Não basta que pensem, preciso sentir o tal do calor e andar na rua sem medo ou capote, sem as tradicionais três camadas de vestimenta que até agora me obrigaram a acordar uma hora mais cedo para conseguir me vestir decentemente. Pois que valha a impressão do dia de hoje: roupas leves, rostos mais leves. A neve já desapareceu de todos os cantos da universidade, e, ao que me parece, também de todas as ruas. Se isso foi serviço do tempo, ou dos caucasianos que ganham uma merreca pra varrer a neve da rua, são questões que agora não me preocupam. A minha atual impressão é ótima: de lá de baixo, apesar de serem já quase onze horas da noite de uma arquetípica segunda-feira, alguns russos jogam alegremente futebol. Gostaria de estar inspirado por algum espírito da raça e descer, jogar bola com eles, dar uma lição na nossa arte, como se esta fosse embutida nos meus pés pelo simples fato de ter nascido na América do Sul. Mas não sou boleiro e estou com preguiça. O mais provável seria que eles mesmos me dessem uma sova e de quebra eu ainda colaborasse ao vil desmerecimento de nosso país no estrangeiro, estragando nossa majestosa fama no futebol e afastando possíveis turistas na próxima copa. Portanto aqui fico, escrevendo sobre o tempo e suas implicações culturais.
O nosso verão em relação ao norte é eterno. Realmente desconhecemos o sentido da palavra inverno, e de seu correlato inferno. Cá entre nós, graças a Deus, ou a Dom Manuel, é preciso pensar. Mas ao menos aqui semelhante desgraça climática permite ao observador estrangeiro o espetáculo da transformação diária da realidade, em virtude dos termômetros. Mais gente, muito mais gente agora se aventura a sair de casa, ocupar as ruas, os parques, as praças, até porque agora há efetivamente um espaço a ser ocupado, aquele que antes se resumia a gigantescos montes de neve suja. E pode ser que seja somente a minha impressão pessoal, de quem hoje pela primeira vez na sua vida em Moscou ouviu um “obrigado” por dar licença ao carrinho de alguém no supermecado. Tudo bem que foi um “obrigado” baixinho, quase imperceptível, discreto, mas minha alegria foi tamanha que sinto certa pena em desmerecê-lo. Já nem me lembro direito como funcionam essas coisas em São Paulo, cidade, cá entre nós, também das mais mal-educadas, junto com a gloriosa cidade do Rio. Mas como lá en los trópicos muy queridos faz sol o ano inteiro, nunca pude observar como o passar dos meses influencia esses costumes. Quer dizer, sei que ao sábado à noite a educação não é das melhores, e de terça ao fim da tarde alguém na rua é bem capaz de te assassinar se você não der passagem na hora. Se a temperatura influencia nessas coisas, bem, daqui não posso afirmar.
Mas que a vida é melhor nas nossas condições, por Deus, como é! Sair na rua sem medo ou preguiça, poder ficar parado, esperando, ou simplesmente andar sem rumo até que o próximo compromisso se faça sentir, ficar estirado ao sol feito uma lagartixa... e outras bênçãos da vida ao sul do Equador. Se isso só depende da temperatura, repito, é questão difícil que não me compete. Pelo menos por aqui a relação pode ser determinada quase que diretamente. Mais do que a Revolução Socialista, mais do que a vitória contra os nazistas, mais do que a abertura da cortina de ferro, essa mudança anual de todas as condições de vida merece ser comemorada. Infelizmente, o povo daqui não percebe, pra eles é normal. Um ou outro escreveu alguma coisa sobre a primavera, Maiakóvski, Stravinski, enfim... a cidade trabalha indiferente, os compromissos são os mesmos, os trens passam nos mesmos intervalos, o fuso-horário marcha lento e firme na estrada da produtividade. Mas eu não pude passar batido: pois viva a temperatura positiva!

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