quinta-feira, 19 de abril de 2012

Guerras patrióticas


Os dois museus se localizam, por clara e, pode-se dizer, justa insinuação, junto à estação de metrô Parque da Vitória, principal atrativo da região. E apesar do tempo bom ter permitido uma agradável caminhada, não foram as árvores, crescendo de novo, nem as crianças de patinete o sentido de meu  passeio.
         O primeiro se localiza justamente na praça 1812, e foi o único em que entrei, pelo tempo de que dispunha e por um interesse especial nestas primeiras décadas do séc. XIX. A construção é moderna, parece que data do período soviético, e leva o nome da batalha decisiva contra as tropas de Napoleão – Borodino. Há uns versos formidáveis de Lérmontov sobre a batalha, mas ainda não tive paciência para os traduzir. E eles propriamente não importam: o ponto é que um romântico como Lérmontov e o socialismo soviético julgaram indispensável a celebração dessa vitória, lembrada vagamente pelo Ocidente em geral.
         Em Lérmontov a coisa é mais clara: a busca do romantismo pelos fundamentos nacionais, o sentido narrativo da História e de seu herói, o povo, a glória dos tempos passados no marasmo pós Congresso de Viena, etc. A vitória da Rússia contra Napoleão, que tem como data decisiva o ano de 1812, foi fundamental para a afirmação desse então império junto ao concerto dos estados europeus. De estado distante, desconhecido e bárbaro, passou ao primeiro plano das potências ocidentais. E mais: determinou todo o futuro deste dito concerto de estados, já que a paúra contrarrevolucionária triunfante teve sua salvação justamente em Moscou. Se a Polônia desapareceu, se a Prússia ganhou influência sobre a Europa Central, se a Áustria se restabeleceu etc. etc. tudo isso foi em grande parte encabeçado daqui do Leste, inclusive a tal da Santa Aliança, arquirreacionária coalisão de forças.
         Por isso é até engraçado que os soviéticos tenham decidido homenagear essa vitória. Quer dizer, engraçado mas compreensível, tendo-se em vista as tendências claramente nacionalistas que o socialismo ironicamente tomou ao longo do século XX. Inclusive há certa anedota, de que nos anos 60, quando resolveu-se traduzir e editar as obras completas de Marx e Engels em russo (um verdadeiro fenômeno para o centro mundial do socialismo), e gastou-se uma fortuna na compra de arquivos e financiamento de pesquisas minuciosas, deixou-se intencionalmente uma obra de fora: “A política externa da Rússia tzarista”, não sei ao certo a data. E é compreensível: as ácidas tintas com que o velho Marx pintou a maior potência reacionária da Europa pós Napoleônica, com aquela sua capacidade notável de síntese e sarcasmo, poderiam ofender os ânimos de alguns patriotas, mesmo os menos exaltados.
         De fora, pouco se pode falar sobre o museu propriamente dito. Além do painel da fachada, muito bonito, em mosaico, com representações do incêndio de Moscou e da expulsão dos franceses, segue a mesma lamentável receita do empilhamento de tralhas sob o critério cronológico, mas com o ainda mais lamentável diferencial, a título de descontração, de um sujeito vestido de soldado-fofão (com uma gigantesca e assustadora cabeça) e uma enorme e tediosa reprodução de um panorama da batalha de Borodino, onde, de quebra, por ficar num ponto mais alto do museu, fazia um calor desagradável. Tinha umas panelas largadas pelos cantos, uma cabana desmoronando, com direito até a luzinhas vermelhas, fazendo-se convincentemente de brasas. Tudo bem, confesso já ser velho demais para essas coisas, e alguma criança pode ter se encantado com o soldado fofinho e sorridente que por um salário, creio, medíocre, equilibrava a cabeça enorme no salão principal. Mas não posso deixar de me frustrar com a falta de critério predominante nos museus históricos: um monte de retratos de figurões desconhecidos, armas e pistolas dos tempos de dom João Pamparra e dom Pedro Cipó-Pau, alguns mapas para localização dos fenômenos e essas lamentáveis reproduções de cenas “históricas”. Lá o que se salvava eram algumas caricaturas da época, que infelizmente eram poucas, e alguns quadros relevantes à história da representação da batalha. Mas mesmo assim... dar um museu a uma batalha já é duvidoso. E de fora: tenho a impressão que os museus históricos, em relação aos seus primos museus de arte, já são completamente antiquados e descompassados com os seus propósitos. A história, como narrativa e investigação, carece de critérios. E sem esses critérios o tempo não se explica, parece simplesmente o fruto dos relógios e das coincidências. Os museus históricos deveriam tentar acompanhar as pesquisas e tendências acadêmicas, através da curadoria, organizando materiais que se relacionassem num sentido maior, para além do pitoresco ou do anedótico: o narrativo. Mas fica valendo, pelo menos, a narrativa de um domingo turístico, de tempo bom, mas abafado.
         E 130 anos depois, quer dizer, uma hora depois, passeando já pelo Parque da Vitória, eis que me deparo com mais outros inúmeros monumentos e lembranças de uma outra guerra, em que mais outra vez a Rússia determinou a organização de toda a Europa. É curioso pensar como a Segunda Guerra Mundial, aqui chamada “Grande Guerra Patriótica”, teve sua origem fundamental na Primeira Grande Guerra, e desta destrinchar o aparente absurdo de que um único assassinato político na Bósnia tenha culminado em duas guerras monstruosas, que alguns historiadores mais ousados já denominam “A Guerra dos 30 anos do séc. XX”, a meu ver com muita razão. Mas o curioso: outra vez o Leste, o “Vespeiro Balcânico”, e quando tudo se desenvolveu na Segunda Grande Guerra, outra vez a cartada final foi lançada de Moscou. Não entrei no museu nesta ocasião e portanto não vou falar dele, nem dos grandiosos monumentos que o cercam, nem do obelisco, com inscrições dos nomes dos grandes cercos, e que tem um centímetro de altura para cada dia de guerra.
O que pretendo com essas observações? Não aquela amargura clássica das discussões da Guerra Fria, não crescer um comunismo defunto ante o tão abundante quanto enjoativo material norte-americano sobre os triunfos yankees contra o fascismo. Mas deixar no ar o papel do Leste na história do Ocidente, e mais, não só o Leste, mas tentar pensar o papel do mundo na história da Europa. Desde questões coloniais – a Revolução Americana, a partilha da África, etc. -, até a recente Guerra Fria – Revolução Cubana, guerra do Vietnã, etc. E também tentar pensar o papel da Rússia, essa Rússia que mais de uma vez determinou a política europeia, na confusa situação internacional nos dias de hoje, dias de aparente liberdade e democracia, de estados soberanos, de novas potências, de paz europeia. Dará as cartas mais uma vez? E que diabos de cartas são essas as de nossos tempos? Não tenho pretensões a uma resposta definitiva. Eu, de minha parte, acabei o domingo passeando no parque, tomando um sorvete, e depois voltei para casa e continuei lendo meu Hobsbawn.

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