sexta-feira, 2 de março de 2012

Um caso de polícia


Sempre me aborreço quando, em manifestações estudantis, em discussões ou qualquer situação de debate sobre a situação de nosso país, ou mesmo do mundo, chega um sujeito metido a Malatesta e proclama, sem mais nem menos, da noite para o dia, o fim da polícia como entidade. Não cabe aqui entrar no mérito ou desmerecimento dessa questão, quer dizer, espero que esteja clara a inviabilidade da ideia nessa geringonça a que chamamos estado, e que Hobbes chamou de Leviatan. Se não for clara, também, tanto faz. Mas isso ainda quando há uma tentativa sincera de formulação e mesmo uma consciência geral do problema; por mais que mínima, mesmo assim é louvável: também há aqueles perturbados que se extravasam xingando o próprio policial de “grande ânus”, “pessoa com chifres”,  “massa frita com recheio de frango” ou mesmo, vejam vocês, “filho de uma profissional do sexo”.
         Também não cabe entrar no mérito de como a mãe do policial ganha a vida, o que faz na intimidade etc. etc. Eu não gostaria que se metessem a falar da minha mãe, e nem acho que isso contribuiria, hipoteticamente, com qualquer defeito ou abuso que eu possa fazer ou ter feito como profissional. Nem com a minha existência na terra. Muito menos com a minha morte, ou desaparecimento.
         Mas convenhamos que, como boa parte do Brasil de hoje em dia, a instituição da polícia é mais um pepino que os militares tiveram por bem deixar, junto com a carta de demissão e algumas instruções  junto à cafeteira, antes de saírem de bermudas e óculos escuros para sua aposentadoria em Fernando de Noronha, ou onde Deus fez por bem os mandar, deixando todas as mazelas de 20 anos de norteamericanização intensiva do país, feitas sob o peso de balas e porretes, em Brasília e em todas as outras capitais.
         Sabemos que a ditadura não acabou com uma revolução. Acabou porque não dava mais pé, como foi aqui com a União Soviética. E dessa forma o modelo de estado que serviu para a redemocratização era a mesma máquina viciada com departamentos de censura e de perseguição ostensiva. A polícia, embora, claro, não tenha mais licença oficial para as calamidades de outrora, pode ser listada entre os problemas herdados.
         Nessa semana, aqui na capital da Federação Russa, o ministério de assuntos internos (assim traduzindo) soltou uma nota oficial de encaminhamento à polícia, para que seja legalmente cobrada a prestar auxílio a pessoas em estado de embriaguez. E espero que a presença das palavras “russa” e “embriaguez” num único parágrafo já bastem para dimensionar o assunto. Bebedeira aqui é outra história, e não é moleza. Não só as bebidas aqui são facilitadas, e baratas como a nossa pinga, como o frio e, às vezes, a mais completa falta de perspectiva principalmente na província levam muitas pessoas a essa doença chamada alcoolismo. E os antecedentes históricos aqui também não faltam: é um problema de longuíssima data. Há lugares aqui em Moscou em que os bêbados de rua se encontram com mais regularidade, não como nas capitais brasileiras, onde é sempre no centro, mas como uma capital europeia que fez por bem leiloar o centro a todas as marcas de luxo ocidentais. Ali, no centro, não se encontrarão bêbados, não à luz do dia. Eles se reúnem nas estações de trem, nas grandes centrais de metrô, nos lugares públicos que restaram, onde possam se aquecer neste inverno de -20 e sei lá quantos graus Celsius.
         Imagine-se embriagado por duas ou três garrafas de vodca barata, trançando pernas atrás de casa (suponhamos que você tenha uma casa) às duas ou três da madrugada, termômetros marcando menos 22. O metrô já não passa mais, o seu dinheiro acabou, foi roubado, não sei, as luzes dançam e se engarrafam com a nevasca constante, na cabeça que gira, gira, gira... e para diante do farol, com sorte. O sono bate, os prédios aqui são distantes como nas Marginais, tudo é longe e nenhum caminho é claro o suficiente para tal estado. Talvez venha um cão e te ajude – as pessoas não se incomodam, é só mais um bêbado -, talvez só lhe reste um poste. E que poste! O lugar ideal para se encostar, neva demais... talvez um descanso, até que as coisas voltem, até que o sol decida nascer. Um pequeno descanso, e nada mais...
         Achar-te-ão, talvez, daqui há 4 ou 5 dias, quando a neve finalmente abaixar um pouco. Mas será tarde: serás congelada e anônima carcaça.
         Porque no fundo em qualquer cidade moderna ninguém se importa com ninguém, digamos, pelo menos 20h por dia. Alguns nas outras 4h se dedicam à filantropia ou à negócios da futura paz universal. Há também os santos e os mártires, que ainda dão sentido à humanidade, mas são exceção: via de regra, nessas 20 horas diárias, estamos sempre correndo atrás de parafusos, contas de banco, aulas, reuniões, bilhetes, cinemas, cafés, shoppings, bicicletas, irmãos, primos, mulheres... e claro, por que não? Também temos uma vida afetiva, sem a qual a vontade de morrer volta toda. Num encontro, um bêbado passa, rindo e chorando, e tenta puxar assunto com você, naquela voz enrolada, incompreensível, mas carente por qualquer ser humano com quem possa trocar a sua amarga experiência de vida. Quem lhe dará atenção...? Pode ser que esteja à beira da morte, pode ser que tenha ganho na loteria. Poucos se importam, e falo por mim.
         No Brasil, é claro, não há neve nem -20 e nem um alcoolismo tão arraigado quanto o daqui da Rússia, o que ameniza a situação, mesmo em março com as chuvas torrenciais. Mas se a polícia russa de fato cumprir essa nova determinação, que implica em responsabilidades reais pelo bêbado que seja encontrado perdido, largado ou, como não raro acontece, machucado por alguma besteira, dará a prova cabal de que a polícia ainda tem um papel a cumprir nessa putrefata sociedade, sem saída aparente, além de enquadrar maconheiros, perseguir suspeitos pela cor da pele, passear pela Teodoro Sampaio ou aparecer no Cidade Alerta. Isso, claro, além de ajudar quando algum trombadinha bate a nossa carteira, quando dois idiotas resolvem tirar um racha às três da madrugada, quando outros dois idiotas resolvem sair na faca ou na pistola, quando um parquinho para crianças se torna boca de farinha... e quando algum infeliz alcoolizado estiver realmente precisando de ajuda. E que isso não se resuma aos bêbados: que um dia a polícia também se preste a ajudar idosos a atravessar a rua, a cuidar da limpeza das praças, a evitar o crime antes mesmo que ele aconteça e que também, ao invés de como tivemos a infelicidade de presenciar, realmente se preste ao auxílio, não ao terror, dos viciados em crack, ajudando-os de fato, como doentes que são.

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