domingo, 25 de março de 2012

Biblioteca de nome Lênin


Às oito horas da noite, me vejo novamente parado diante dos trilhos de um trem subterrâneo, à espera daquele que me levará para casa. Felizmente o horário já nos permite respirar e nos mover na Estação Biblioteca Lênin – acesso a outras três estações importantes, num centro estratégico da cidade, comparável, talvez, à praça da Sé, se a praça da Sé não fosse absolutamente incomparável. Estivesse eu aqui às seis horas da tarde, seria impossível escrever estas linhas: estaria lutando pela sobrevivência. Mas o dia já se foi, todos já estão em suas casas, e eu de meu lado dou-me ao luxo de observações levianas.
         Observo, por exemplo, fixamente, a parede diante de mim. Ao fundo da estação um relógio conta os minutos para o próximo trem, russas formosas passam aos enxames pelas minhas costas, um policial me observa, mas não penso em outra coisa além dessa parede suja, gasta, inacessível pela distância de dois trilhos tão úteis quanto fatais. Assim como o intervalo entre os trens forma um bolsão de eternidade, essa parede forma um aspecto de minha existência: marrom, rajada, mais escura deste lado e... clara, muito clara na exata área de um retângulo.
         Aperto meus olhos para decifrá-la: dentro do que de fato revelou-se um retângulo, percebo ainda uma série de divisões internas, também claras – são retângulos menores, dentro dos quais, num tom mais claro de superfície empoeirada, vão surgindo buracos e mais buracos redondos, fundos, estreitos, regularmente distribuídos pelas recém-descobertas subdivisões. Fato este que me assusta – será que o trem demora? Miro o relógio com importância, apenas dezoito segundos se passaram, e percorro o caminho oposto ao do trem de volta à minha amiga parede, mas agora com novidades: meus olhos esbarraram no trajeto com outra face de sua superfície, onde se lê        
         «БИБЛИОТЕКА ИМЕНИ ЛЕНИНА»
            «BIBLIOTECA DE NOME LÊNIN»
e a minha relação com a parede se transmuda em torturante curiosidade. A primeira ideia é a comparação: caminho, meço, calculo, marco com os olhos tamanho e forma de cada letra, e também os espaços entre cada letra. Mas quando volto – meu trem, não chega? – percebo com desâmino a total incompatibilidade entre o meu espaço em branco na parede marrom e as letras óbvias a nomear a estação, para os desavisados. Até porque repetem o nome das estações sempre que o trem se aproxima, como em qualquer lugar.
         Quais as outras possibilidades? Calculo a distância para
«СОЮЗ СОВЕТСКИХ СОЦИАЛИСТИЧЕСКИХ РЕСПУБЛИК»
e também me frustro, ainda mais. É mil vezes maior! O espaço que me encara não suporta tantas letras, tanto território espalhado entre Ásia e Europa. Buscar outras frases, sim, mas quais? O primeiro trecho do hino? Tampouco, pior ainda... algum jargão, como a frase de Marx? Ou alguma de Lênin? Como se soubesse... e de quebra qualquer frase que ali se colocasse sobraria, o imperceptível retângulo oculto entre os trilhos – o trem já se ouve, aproxima-se -, não comporta tudo que pensei. Guarda em silêncio triste o seu mistério, talvez vergonhoso. Mas o que há de vergonhoso ou datado, porque remover os letreiros? E fico pensando se alguém dissesse àquele que os colocou que dentro de quarenta ou de trinta anos seriam removidos – Louco! gritaria o operário soviético. – Louco! gritariam para mim se parasse alguém e perguntasse o que algum dia esteve escrito ali. E não só ali: sair por todas as ruas e estações, perguntar aos muros e praças o que viram, o que escreveram, o que apagaram com rancor e, talvez, contra a própria vontade. Ir a outros espaços em milhares de estações, alguns, com hinos, com camaradas, outros com assustadores espaços em branco, talvez de Stálin... fazer isso rápido, depressa, antes que...
         O trem chega, e sem argumentos, volto para casa para jantar, junto com centenas de outros cidadãos exaustos... desconhecem a praça da Sé.

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