sábado, 17 de março de 2012

Setor V, sétimo andar à esquerda


“Nunca à direita”, como diria Maiakóvski, “nunca à direita”. Se bem que eu não saberia dizer qual seria a impressão de Maiakóvski se por acaso, ressuscitando como bem queria, viesse parar no setor V da Universidade Estatal de Moscou, no sétimo andar, à esquerda. Não que este aconchegante e empoeirado cantinho, de onde escrevo, seja qualquer coisa de hediondo. Mas para chegar até aqui, de metrô, suponhamos, o grandioso e revolucionário futurista teria de ter passado por lugares terríveis, com anúncios anglofonizados, shoppings norteamericanizados, bêbados tristes nos vãos das estações e automóveis de luxo correndo pelas avenidas, e se não tivesse composto o melhor e mais triste de todos os seus poemas, teria provavelmente voltado para sua cova. Uma pena, pois de minha parte adoraria recebê-lo: o quarto é pequeno, mas não rejeita visitas.
         O prédio principal da Universidade, construído nos anos finais do Stalinismo, se localiza mais ou menos longe do centro de Moscou, às margens do rio que dá nome à cidade, perto das colinas Borobiôvy, que até vinte anos atrás se chamavam colinas Lênin. Como qualquer cidade universitária do finado século XX, é um perfeito projeto de meio de nada. Prédios esparsos, de faculdades estranhas, bosques cobertos de neve, praças inóspitas, avenidas enormes, estudantes encasacados correndo por todos os lados – eis tudo, pelo menos no inverno. Já nos arredores, ah, ai sim, se encontrará algum movimento urbano, embora distante, como tudo nessa cidade: alguns restaurantes, camelôs, um shopping, onde a massa de estudantes duros, como eu e, quem sabe, Raskólnikov, costuma ir fazer suas compras, duas avenidas enormes,  com motoristas mal-humorados correndo sem pensar em nada, e no meio das quais a lotação tem por costume largar sem dó todos que precisam ir para o metrô - aliás, maravilhosamente bem distribuído pela cidade - e por fim também alguns prédios – a esquerda magníficos, à direita cafoníssimos - e um enorme e renomado circo, que, garantindo a dose diária de bom humor necessária a todo e qualquer país em desenvolvimento, gera a dúvida em cada cidadão, e, principalmente, em cada acadêmico, de por quê construir dois circos justo um do lado do outro
         Pois muito bem: no segundo circo “de nome Lomonossov”, agora, moro eu, no setor V, sétimo andar à esquerda. Confesso que, ao escrever essas linhas e ao observar o amarelado papel de parede que me envolve, a poeira grossa sobre a mesa bamba, os jornais que tapam o vitral quebrado de minha porta e ao ouvir o ronco de meu vizinho alemão, não posso deixar de sentir alguma coisa por não morar na literária Arbat, na glamorosa Tverskaia, na calma arborizada de Tchistye Prudy... mas tampouco posso deixar de ser feliz nesse cantinho, talvez por ter clara a perspectiva de só mais 4 meses, lembrar dos preços irrisórios do aluguel ou, ainda, por saber que no mínimo é uma história interessante. O dito prédio principal é um monumento de uma época, de um século inteiro, é mais do que uma universidade. E embora caído, um pouco mal cuidado, velho, não há como não se impressionar com o seu tamanho, com a sua simbologia, independentemente do que alguns saudosistas da Guerra Fria queiram lhe atribuir, bem ou mal, não importa. Cinco torres se distribuem, como no número cinco de um dado, por entre praças e aleias gigantescas, sendo que a torre central, o setor A, é a maior de todas. Lá não mora ninguém, só há misteriosos escritórios, salões nobres, quadros, tapetes, troféus... já é tarde, e vejo de minha janela algumas luzes que nunca se apagam. No ponto mais alto da torre, a foice e o martelo se projetam, com as letras CCCP, onividentes, e o mesmo na entrada principal, entremeados por enormes estátuas de operários e operárias, com ferramentas, mapas e globos terrestres, encarnando o casamento entre a técnica e ciência, o projeto de homem que conhece e que faz.
         Mas o fato da URSS ter caído há mais de vinte anos dá a isso tudo, certas vezes, um triste ar de ruína. E são tantas as informações que passam pela cabeça da gente num único dia, que uma foice e um martelo dificilmente se diferenciam de um anúncio do Fantastish Media-Market ou do dia da Defesa da Pátria... mas às vezes percebemos a sua anacrônica e real existência, e não só na universidade. De muitos dos prédios públicos o novo governo fez questão de remover a majestosa simbologia do antigo regime, assim como fez com inúmeros monumentos, mas em outros, principalmente estações de metrô, e prédios efetivamente estatais, seja por respeito à própria história ou por mera preguiça, tudo ficou como antes... e tem algumas coisas realmente lindas, como o painel de uma árvore, representando cada uma das nações da União Soviética, na estação Tchékhovskaia, se não me engano. Outras, julgaram indispensável tirar – não se encontra nas ruas mais nenhuma estátua de Stalin. Mas no caso da Universidade Estatal, a altura e o tamanho da simbologia dificultam bastante a remoção dos brasões.
E depois: pôr o que no lugar?
Tudo isso dá certo ar de fantasma a esta construção, principalmente a sua própria arquitetura: as torres parecem ser onividentes, soberanas... do pequeno cômodo, de onde agora escrevo, não consigo enxergar se alguém me vigia; sempre resta essa dúvida, mas não me arrisco a pô-la à prova. Ainda ontem inventei de fumar no quarto, o que não se pode, não tive coragem nem de permanecer junto ao parapeito. Já não bastasse o frio que entrava pela janela aberta, achei melhor me esconder atrás da parede, batendo timidamente as cinzas só quando estivessem enormes, à beira da queda. Só a vista me dava a certeza de estar sendo observado por alguma das milhares de janelas iluminadas, que preenchem o horizonte de meu humilde e cômodo buraquinho. Os corredores que me cercam são extensos, vazios, e a numeração das salas segue um critério muito curioso e próprio, que, confesso, ainda não tive a capacidade de compreender, e que para tanto talvez seis meses não bastem. Mas resta sempre a certeza de uma ordem, secreta, oficial, operante atrás das portas pesadas e sobre os tapetes, atrás das paredes... mesmo que o estado venha abaixo, mesmo que venha outra revolução, essa ordem permanecerá nas paredes.
         E para completar essa impressão, à cada entrada, à cada setor e porta desse velho prédio se localiza uma dupla de guardas, um sempre sentado e o outro sempre de pé, cuja única função parece ser passar rapidamente a vista pelos documentos semiabertos que os estudantes mostram, quando entram, e fazer um pequeno aceno com a cara séria. Volta e meia eles decidem pegar o tal documento, olhar com interesse, olhar de novo para a cara do cidadão e depois devolvê-lo com um gesto para prosseguir. Claro que alguns são barrados por gatunagem. Até tentei fazer amizade com a dupla do meu respectivo setor, puxar assunto, ser gentil; mas quando já conseguia alguma simpatia mudaram o pessoal, coisa que fazem toda a semana, e lá estava eu na estaca zero.
         Desanimado ante a constatação, prossegui para o meu buraquinho, querido quarto, minha casa na imensidão moscovita... mas demorei para desenvolver esse atual afeto. Noites de luta com o aquecedor, uma bacia sob a pia vazada, três dias de faxina, rearrumação dos móveis e longas conversas com a janela foram necessárias antes que pudesse, finalmente, soltar aquele suspiro de satisfação que só se solta quando se chega, exausto, na própria casa.
Outras coisas, agora engraçadas ou simplesmente habituais, também me impressionaram nos primeiros dias. Por alguma razão histórica a privada e o chuveiro ficam em cômodos separados, coisa que no começo era incompreensível. Logo depois, todavia, percebi como isso evita complicações sobre o uso do banheiro. Este também foi o meu medo principal: a julgar pela aparência velha, e de todas as dificuldades que tive com o aquecedor, jurava que o chuveiro seria a pior das surpresas, que a água não iria esquentar, ou que não bastasse, enfim. Mas é sem sombra de dúvidas o melhor chuveiro que já tive em toda a minha vida, só faltava colocar uma banheira, e isso me salvou de perder o saudável ato brasileiro de tomar banho todos os dias. Da mesma forma morria de medo de meu colega de quarto: se pegasse um mala ou mesmo um canalha, como alguns conhecidos tiveram o azar, estaria ferrado pelos próximos meses. Mas trata-se de um alemão simpaticíssimo, separado por azar dos seus compatriotas, que moram todos no andar de baixo. Apesar de roncar, não falar uma palavra de russo, deixar as luzes acesas e acordar às vezes ouvindo música eletrônica, é sem dúvida um dos melhores colegas que se poderia arrumar. Há casos realmente assustadores... e de fora, quando adoeci, veio muito presto com medicamentos europeus e até hoje pergunta assiduamente sobre a minha saúde.
O fato de viajar nos obriga a renunciar certas comodidades burguesas, até mesmo a título de lição de vida: assim, vi-me livre de alguns supérfluos, como torradeira, escorredor de louças, abajur, geladeira... esta última, a perda mais dolorosa. No princípio eu relutei, fui atrás de responsáveis, argumentei. “Se quiser, posso ir comprar”, foi a conclusão a que chegamos. E eu, que não sou lá muito chegado em gastar dinheiro com parafernalhas, vou me virando por enquanto colocando os queijos e frios na janela, que além de barata tem a capacidade fantástica de gelar as coisas com muita rapidez. Ideal para festas. Embora só funcione até o fim do inverno, e depois Deus que me ajude, porque...
Bem, é de se imaginar que um lugar como esse tenha lá a sua pequena comunidade de baratas, ou melhor, de baratinhas, porque o tamanho que alcançam aqui obriga o uso do diminutivo, não são daquelas para se levar a sério. E de fora não fazem mal algum: no meu quarto, só apareceu uma, e todo dia de manhã, quando vou à cozinha ferver um bule d’água, três ou quatro muito gentis sempre me recepcionam. Não sei se também estão tomando seu café da manhã, para depois ir cuidar de outros afazeres, ou se por acaso passam o dia inteiro por lá, porque confesso que apareço muito pouco na cozinha.
Ela funciona como uma embaixada chinesa em cada andar, especialmente no sétimo. Minha relação com esse cômodo do fim do corredor se resume a ocasionais bules de água fervida para o chá preto, quando uma noite mal dormida me nega tanto a vida quanto o sono. Já para os chineses, a cozinha parece ser a extensão natural dos seus quartos, especialmente reunidos no sétimo andar. Andam em grupos pelo menos de três, invariavelmente, e sempre que resolvo ir à cozinha, encontro-os muito ocupados com os mais diversos manjares, legumes, carnes, panelas, temperos, cogumelos e folhas que eu, incompetente frequentador do refeitório número 2, condenado a ocasionais porções de arroz com porco frito, não posso deixar de invejar. Inveja branca, claro, pois são das pessoas mais simpáticas e gentis que se encontram nessa universidade cinzenta. Embora deixem o corredor sempre com cheiro de cebola.
Todos esses fatores extraordinários, e diários, reunidos subitamente na vivência cotidiana, fizeram com que nos primeiros dias eu não ousasse pôr o pé para fora do quarto,  tamanho era o meu espanto e a minha completa incompetência para com as novas situações. O medo me domava, e, vestindo o mesmo pijama por até três ou quatro dias seguidos, tirando-o só para tomar banho, resistia teimosamente a qualquer contato com o mundo lá de fora, indo assustadiço e resmungando aos compromissos inadiáveis. Mas, aos poucos, fui ganhando alguma confiança, e se ainda não perdi o medo de todo, pelo menos a curiosidade se tornou mais forte. Quando finalmente a comida acabou, terminei meu livro do Sabino e quando já não aguentava mais o clima pesado de meu quarto, sob o risco de cometer um assassinato teórico, resolvi pela primeira vez sair sem objetivo claro pelas redondezas, ou pelo menos pelo próprio prédio, a título de reconhecimento e intimidade espacial. Ou simples assassinato do tédio ou busca por ar fresco, se tivesse sorte. 
Depois de vestir três habituais camadas de roupa, ganhei o corredor, a passos lerdos, sem nada em mente. Ainda nem sabia se iria de fato passear pela universidade ou se ficaria pelo próprio prédio, mas a vista de um humilde e tímido solzinho, que se sugeria através das enormes janelas lacradas, me fez optar pelo ar livre, mesmo que aqui, nas bandas do norte, sol não seja de maneira alguma sinônimo de tempo bom, ou não tão ruim, enfim. Às vezes o sol faz com que fique até mais frio, mas mesmo assim basta para encher o peito de qualquer criatura saudosa de luz solar. Atravessei o salão principal, sem prestar atenção nas bancas de livros ou de flores nem na misteriosa escadaria do setor A, dobrei à direita e segui para a porta dos fundos, esbarrando sem querer em algumas moças que corriam na direção contrária. E logo já estava em céu aberto.
De fato, não tinha me enganado: um sol fosco e frio iluminava levemente o fim de tarde da universidade, com alguns estudantes fumando juntos às imensas portas e estátuas, alguns velhinhos olhando a paisagem, algumas crianças em excursão, cachorros deitados na neve... uma fila de vãs parava do outro lado da rua, esperando passageiros, e a praça à minha frente se alongava como sombra até uma avenida, rodeada por faculdades antigas e, bem no meio, uma estátua imponente de Mikhail Lomonóssov, cuja cabeça alguns estudantes tentavam acertar com bolas de neve. E um vento gélido pôs-se a soprar à minha direita, fazendo com que eu maquinalmente me enrolasse melhor em meu casaco fino e descesse a escadaria numa só carreira, dobrando depois à esquerda, por força de hábito, e seguisse em frente.
A neve espessa ainda recobria boa parte dos caminhos, pelos quais passava distraidamente, escolhendo ao acaso uma esquina ou uma aleia conforme agradasse os olhos. o que não é difícil: a universidade é realmente majestosa, apesar do matiz branco que a atual estação do ano impõe a tudo e a todos. Ao longe se avistava a torre  imponente e onipresente do prédio principal – a garantia que tinha para não me perder. Prestava atenção principalmente na arquitetura dos prédios, sólida, maciça, com certas pretensões ao clássico, em alguns, e em outros o estereótipo do bloco pesado e concreto do Socialismo Real. Neste último foram feitos alguns prédios mais recentes, posteriores ao primeiro projeto.  Mas mesmo assim maravilhosos e sensíveis se comparados às aberrações em vidro e tons de dourado em que construíram o novo prédio da biblioteca e, infelizmente, a faculdade de história. E sempre com qualquer coisa de histórico, de ponte para outros tempos, que torna mesmo a art nouveau do centro de São Paulo bonita, sendo que os modernistas a abominavam. E se eu tivesse vivido nos anos 50 aqui, na União Soviética, teria abominado esses prédios também, opressão calada, cínica, sólida, e jogaria em silêncio aquela mesma pedra de Hélio Pellegrino...
Foi quando percebi que já não havia mais sol: havia neve, a princípio fina, mansa, mas que em pouquíssimo tempo engrossara e começava a cair com certa fúria. E, de fora, anoitecia. Outro bloco de vento, desta vez pelas costas, veio ao meu encontro, confirmando a minha vaga suspeita de que já não tinha mais pernas nem pés e era por pura magia que conseguia me sustentar e andar até mais rápido do que se os tivesse. Sem chance: era preciso voltar. Tornei meus olhos para a paisagem, atrás da torre onipotente, mas era inútil: a neve cobria o céu, não se avistava. Com um sorriso do sentimento irônico da vida, chutei um torrão sólido de neve e sem mais opções passei a simplesmente andar na direção contrária à que vinha vindo. Mas não demorou para que fosse parar num lugar ainda mais desconhecido do que aquele onde estava antes, com umas obras de um poço, uns tapumes, e mais nada. Parei, respirei fundo, tentei sentir minhas mãos, mas, não conseguindo, voltei ao problema da volta ao sétimo andar do setor V. Era demasiado vaga a memória que tinha do caminho que fizera – são os riscos de se andar sem direção! Devia era ter ficado no meu cantinho, que ideia estúpida essa de sair de lá! Inverno do cacete... mas um vulto se assomou naquele nada, e pude distinguir um gorrinho, um casaco ao estilo Michelin, passos apertados... não se via o rosto. E não hesitei.
- Por favor! Você sabe onde fica o prédio principal?
- Ehn?
Por debaixo do gorrinho, vi dois olhos puxados e negros, de incompreensão. Era um chinês, e, pelo jeito, detentor do nível médio de conhecimento de russo dos chineses daqui – insatisfatório. Mas era a minha única solução. Respirei fundo, e perguntei lenta e simplificadamente:
- Você – vai para onde?
Ele estranhou, mas logo teve uma epifania.
- Ah! Para casa!
- Você – mora onde?
- Eu mora em MGU
- Ah! Eu – vou lhe seguir! Eu – estou perdido!
Se ele entendeu ou não, eu não sei, mas acho que lhe pareceu bastante estranho que eu o seguisse, tanto que em alguns momentos se virava para trás, me olhava e seguia ainda mais rápido. O que de minha parte era perfeito – não podia mais aguentar o frio da rua. Sair para passear, que ideia... e qual seria outra solução? Esperar a primavera? Tolice. O melhor era mesmo seguir o chinês, e não deu outra – como suspeitava, tratava-se de meu compatriota do sétimo andar do setor V, só que ele morava à direita. Agradeci do fundo de meu coração – o que talvez ele tenha entendido -, e corri para o meu quarto tomar um banho quente, para depois tentar sintetizar, em literatura de baixa qualidade, algo dessa experiência de viagem, desse universo alheio. Mas sinto que, enquanto escrevo, nesse quarto amarelo e empoeirado, cuja cortina abri para que a noite me ajudasse na solidão infernal, alguém do outro lado do prédio – um escritório na torre central, luz acesa até as duas da manhã! – me espia e toma nota de todas essas bobagens. Quando eu olho – desaparece. Mas é só eu me curvar novamente sobre meu macintosh que a cabeça se ergue novamente à janela, e se põe a me espiar. De modo que é melhor ir dormir, ou ler em silêncio e recato o meu Maiakóvski.

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