quinta-feira, 29 de março de 2012

Na boca das urnas


Descemos na estação da Ponte Kuznêtski, depois de baldear na Lubianka, onde acabamos encontrando mais duas moças que se dirigiam ao mesmo café, com o mesmo propósito. Mais diversa reunião de pessoas seria difícil de encontrar: um americano, um brasileiro, uma estoniana, uma alemã, duas russas e uma polonesa, e a predominância leste-europeia nas nacionalidades fez naturalmente com que a conversa se passasse em russo, exceto algumas raras observações da alemã à polonesa – o camarada americano se recusava categoricamente a falar inglês, medida a que aderi com entusiasmo.
         Mesmo sendo domingo, e um domingo cinza e de eleições presidenciais, nem por isso o metrô deixou de estar cheio, e só conseguimos ganhar a rua depois de atravessar camadas e mais camadas de multidões, sendo que no vagão ficamos o tempo todo de pé. A lentidão para sair se explicou à porta: duas filas de policiais obstruíam o caminho, vigilantes, e não à toa, já que há não muito tempo atrás explodiram alguma das inúmeras estações de metrô moscovitas. Mas não foi na data das eleições, isso é certo. De qualquer forma, evitando confusões ou quem sabe até suspeitas, apertamos o passo com discrição e dentro em pouco já estávamos subindo as escadarias que levavam ao pequeno café, oculto por diversos anúncios e fachadas, no fundo do segundo andar, não muito longe da estação.
         Uma das russas, que carregava um violão, foi cuidar de alguns preparativos, enquanto nós nos sentamos numa mesa de canto, junto a um sofá e uma gaiola com uma mesa dentro. Não demorou muito e dois ou três poetas foram se sentar lá dentro, cinzeiro abarrotado, telas e papéis espalhados na pequena mesa redonda, olhos compenetrados atrás das diversas armações de óculos. Assim, todas as outras mesas – não que fossem muitas - foram lentamente sendo ocupadas por jovens, daquela bem humorada seriedade russa, com papéis, cadernos, livros, telas, instrumentos ou só canecas de cerveja. Como eu e o americano já tivéssemos farreado juntos na noite anterior, de onde o convite para este domingo, resolvemos por bem cuidar da saúde e rachar uma dose de chá preto, e contra a sua vontade também acabamos rachando o seu maço de cigarros. No aparelho de som, ao invés da habitual música pop dos anos 90, ou do technomusic do ano três mil, ouvia-se um disco dos Beatles, num volume que permitia a conversa descontraída de um domingo melancólico, sem as habituais imposições modernas à felicidade, ao gozo maior, à descontração: cinco ou seis seres humanos reunidos em torno de uma tábua, enquanto um movimento desconhecido, mas esperado, fervilhava do balcão ao lado oposto do bar, onde algo muito parecido com um palco começava a se destacar em uma humilde iluminação, e em uma cadeira vazia.
         Mas, súbito, a mesa do lado oposto se calou e uma pequena figura, olhos ativos e clara desenvoltura, subiu ao palco e aumentou o tom de voz.
         - Meus caros! Muito obrigado por terem se juntado a nós nesse dia, nesse pequeno encontro que realizamos de vez em quando. Quem quiser, por favor, que suba ao palco, leia seus textos ou textos de outros autores, cante uma música... eu, que tentei ser pedagoga e não consegui, também tentei ser escritora ou poetisa, mas também não deu certo. Daí inventei de tentar ser atriz. Agora mesmo, queria ler alguma coisa, mas não posso, porque não consigo. Mas posso cantar, e com licença, sentada, porque ficar de pé me constrange.
         E depois dessa modéstia muitíssimo bem ensaiada, pôs-se a cantar uma música belíssima, provavelmente do cancioneiro popular, que não reproduzo aqui a letra por incompetência no idioma e ressaca na data específica. Acabou, agradeceu, e voltou para aquela mesma mesa oposta, agora claramente determinada como mesa dos “figurões” do sarau, até porque foi dela que o próximo leitor se levantou e, com calma, pôs-se a ler alguns versos de Maiakóvski, e também porque a russa com o violão, que viera conosco, tinha acabado de se sentar por lá.
         Depois de Vladímir, veio Marina, lida pelos lábios de uma estudante da faculdade de filologia que também admitiu a sua, digamos, ausência de vocação para a palavra escrita. Mas nem por isso deixou de fazer uma boa interpretação da falada – pelo pouco que consegui entender na minha ressaca e no meu russo estropiado. Nossa mesa, composta praticamente só por estrangeiros, que, embora entendessem e se comunicassem na língua russa, mal conseguiam acompanhar o ritmo sereno e ágil das palavras poéticas eslavas orientais, mesmo assim se admirava com a dedicação e a força de algumas declamações. Um rapaz havia musicado Brodski – fortíssima apresentação, aquela melancolia tão esquisita e gélida que o norte consegue imprimir ao violão e que nos é absolutamente estranha -, outros citavam e recitavam seus autores favoritos ou, ao menos, que vinham ao caso. Até o americano acabou se animando e leu alguns versos em inglês, ao que eu, num acesso de chauvinismo e sem-vergonhice, resolvi cantar Vinicius, ainda que incompreensível a todos. Mas fui aplaudido, e pude ainda ter o gosto de ouvir que “o português é uma língua linda”
         Acabada a etapa das citações e memórias, os poetas vivos começaram a aparecer, atrasados, bêbados, ou simplesmente distraídos ou nervosos em suas mesas de canto, em suas conversas de sempre e de nunca. Estranhas criaturas, onde quer que estejam! Mesmo o homem atrás dos óculos e dos bigodes, como diria Drummond, e como, aliás, foi o próprio Drummond, guarda mistérios e exagero na sua simplicidade. E esse é o tipo mais raro: normalmente são seres extravagantes, imponentes, ou com pretensões a tanto, mas de um jeito tal que essa extravagância só se percebe em um segundo ou terceiro momento, num gesto, numa fala, enfim. Os poetas reunidos no fundo daquele café não poderiam ser diferentes: eis que  o primeiro se levanta, com folhas soltas numa mão e balançando a outra com exagero. Era espichado, magérrimo, cabelos compridos e um sorriso alegre e contido, que se abria com força, quase num grito, conforme recitava seus próprios versos urbanos, sobre caminhadas no metrô, tardes de sombra, ou pelo menos do que eu pude entender. Aplaudido, curvava-se bem desengonçado, e voltava para a mesa no fundo do balcão, onde era incógnito. Depois dele logo se levantava o soturno sujeito sentado na gaiola, com uma tela na mão, rosto inexpressivo, monotonia fina nos versos brancos. Agradecia, sorria de canto, e voltava para a jaula. Também a extravagância feminina se manifestou em versos da tradicional lírica amorosa russa, tocha herdada de Akhmatova e Tsvetáieva, numa figura esguia e apaixonada, cabelos pintados, de salto alto.
         Nesses saraus, não é difícil perceber como, depois que tomam coragem, os mesmos poetas se revezam e prosseguem nos mesmos temas, como que dialogando, e no fim das contas já não fazem cerimônia para subir ao palco, agradecer ao público e até se enrolar, e fazer piadas. E assim foi. Confesso que, de todos, o primeiro, o magricela, foi o que mais me agradou. Havia qualquer coisa de Maiakovskiana em seus versos, não só na forma com que os declamava, mas na temática cotidiana banal que esculpia e transformava em epopeias do prosaico. Mal contive minha alegria quando soube que tinha um livro a venda, edição própria, por irrisórios cem rublos, e decidi ir falar com ele assim que o sarau terminasse. Mas numa certa hora, alguém, creio que a moça poetisa, fez por bem recitar alguns versos, digamos, “de situação”. Ou seja, versos sobre a eleição, e mais, versos sobre o presidente, coisa muito a propósito, considerando a data. A plateia aguçou os ouvidos, muitos se ajeitaram em seus assentos, a atenção era total. Quando acabou, foi bem aplaudida. E não só ela: a sua iniciativa foi o estopim de muitas outras folhas, guardadas em pastas, bolsos ou arquivos, que os poetas de fato ou poetas bissextos presentes guardavam nervosos, a espera de uma oportunidade. E eis que ela surge. O poeta fleumático que se sentava na gaiola logo tomou a palavra, e narrou seu excerto sobre Pútin, uma reflexão sombria do presidente em seu terraço, concernente à atual situação da Rússia, qualquer coisa assim... depois dele, o magricela, com seu sorriso debochado, subiu ao palco com uma sátira metrificada do futuro presidente. E um terceiro, careca ainda inédito, também revelou sua produção sobre o atual primeiro ministro, e até um quarto incógnito subia ao palco, quando...
         - Com licença! – gritou da entrada do bar uma garçonete. – A polícia está aqui, e disse que houve a denúncia de uma bomba instalada aqui nas imediações. Sinto muito, mas temos de pedir a todos que se retirem o mais depressa possível, é pedido deles, muito obrigado, e desculpem.
         Assim o sarau, em dois minutos, acabou. Só tivemos tempo de pegar nossos casacos, e no corredor esbarramos com três ou quatro policiais com enormes pistolões em punho. Cumprimentamo-os cortesmente, e seguimos calados até a saída. Mas lá havia ainda mais policiais, uns sete ou oito, e duas viaturas de sirene ligada, parte da rua fechada, justamente a da entrada do bar. A russa que nos acompanhava, o violão que não pode tocar nas costas, tomou coragem e se dirigiu ao aparente coronel.
         - Com licença... pode nos dizer o que aconteceu?
         - Nada demais, coisa de praxe, hoje é dia de eleição, não sabem? – Respondeu sem paciência a figura rechonchuda, atrás dos espessos bigodes. Olhou ao redor e franziu a sobrancelha – Vocês são de onde?
         - De vários lugares... – respondemos em coro, olhando em volta, e tomei a iniciativa. – Eu, por exemplo, sou do Brasil.
         - Ah, do Brasil? Pois desejo tudo de bom para o Brasil, aqui a coisa não vai bem, adeus.
         Insinuou para que fôssemos, e, bem, fomos, ainda constrangidos com as estranhas coincidências, em silêncio até a estação de metrô, de onde rumamos para um café nas estação das Lagoas Limpas, no subterrâneo, lugar calmo e ignoto, onde passamos a tarde sem mais conversar sobre política. Apenas assuntos agradáveis, como literatura, poesia e belas artes, conforme notamos, na mesa ao lado, um sujeito quieto e de olhar atravessado.

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