quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A batalha de Stalingrado


Pelos portões principais do campus da Universidade Estatal de Moscou entrou um pequeno Lada, ano desconhecido, numa fria e escura manhã de domingo daquele que, constatar-se-ia posteriormente, era um dos invernos mais rígidos dos últimos tempos. Sua entrada foi pouco notada, a não ser por dois sonolentos guardas da entrada que, estranhando a chegada de um automóvel às seis da manhã em pleno domingo, puseram-se a discutir sobre de que ano seria o tal do carro. Mas não conseguiram chegar a nenhuma conclusão definitiva.
Nunca, jamais, caro leitor, queira, como este pequeno e esfumaçado Lada, chegar numa cidade ou num país completamente estrangeiro no malfadado dia de domingo! Não há nada pior para o viajante do que encontrar todas as casas fechadas, as ruas vazias, os serviços de folga... e se ele precisar de qualquer coisa, isso é, se não tiver vindo com um pacote turístico promocional e completo do próprio país de origem, ele estará completamente perdido, como eu mesmo estava, sozinho nessas terras geladas, longínquas e hostis. E o pior é que, dependendo da natureza do lugar a que se chega, tudo pode ser agravado pela massificação do dia de folga, por exemplo: suponhamos que seja uma região ou cidade muito religiosa, muito cristã. Decorrerá que o domingo será o dia santo de todos e se alguma coisa tinha a chance de estar aberta, ou se alguma pessoa tinha a possibilidade de estar na rua à toa, disponível para te ajudar, ela obrigatoriamente não estará, pois é dia de missa. E mesmo que fosse Israel, basta trocar para o sábado, o que é ainda pior para qualquer desavisado. Ou, para se aproximar do meu caso, suponhamos que o país a que se chegue seja simplesmente o mais burocrático, o mais condenado à escravidão do papel e do carimbo, o mais rico em guichês, andares, departamentos, formulários, documentos, selos, certificados, autorizações e despachos de todo o moderno concerto de nações que configura a desajustada sinfonia de nossos tempos. Pois muito bem, chegando a um país como ao que eu cheguei, e encontrando todas as referidas e indispensáveis instituições públicas fechadas para o descanso domingueiro, não te restará nada além de dormir na rua, na neve fresca e fofinha. Isso, é claro, se você não foi esperto e fez por bem reservar um hotel internacional de qualquer tipo antes mesmo de comprar as passagens ou escolher o país. Não há nada melhor e mais seguro do que depender somente do número do cartão de crédito.
Mas eu fiz por bem depender da gloriosa Universidade Estatal de Moscou, doce herança soviética, diante da qual, mais especificamente no indicado setor B, o pequeno e fumegante Lada acabava de estacionar.
         Apesar de não trazer qualquer identificação, normalmente aquelas plaquinhas luminosas, que notificasse o pedestre ou passante sobre a real função do veículo, tratava-se de um taxi, coisa muito clara para nós dois que nele vínhamos, mesmo que por dentro o veículo também não tivesse qualquer identificação sobre a sua função, nem ao menos a ocidental convenção do taxímetro. Talvez o motorista portasse um papel timbrado e devidamente assinado, dizendo tratar-se de um taxista e não de qualquer pilantra de automóvel, o que por essas bandas já seria o bastante. De fora, o dito passageiro, este que aqui vos escreve, fumava enquanto observava, pasmo e passando muito frio, a imensa construção principal, prédio gigantesco, com três torres simbolizadas ainda pelo regime soviético, onde, supunha, iria morar pelos próximos quatro ou cinco meses, caso sobrevivesse a essa manhã de domingo, de carimbos e, acima de tudo, de frio e de neve.
         Era impressionante: não só o tamanho da construção, e de todas as largas e monstruosas ruas e rodovias, ou os -25º que fazia nessa manhã, ou os imensos bosques de árvores nuas, todas cobertas pela neve espessa que caía sem cessar. Absolutamente tudo era impressionante, cada metro andado, cada floco de neve, cada indivíduo, inclusive o próprio taxista, originário de Bacu, no Azerbaijão  (Cáucaso, para os ignorantes), que me fisgou para me levar do aeroporto de Domodiédovo até a universidade por dois mil rublos, e que eu, cansado das primeiras barreiras burocráticas encontradas no aeroporto (“Passaporte, por favor”), e até pelo próprio voo, particularmente exaustivo, aceitei sem grande resistência depois de lembrar do peso de minha mala e do continente em que me encontrava. E precisava chegar logo em alguma cama, no lugar que iria morar, dormir um pouco e aí sim, no dia seguinte, resolver as mais importantes burocracias e cuidar da vida. Se o domingo permitisse.
E de fora o taxista era uma pessoa muito simpática, viemos conversando todo o caminho na medida do meu pobre e desengonçado russo, e eu dei o meu melhor para explicar que o Brasil não ficava e não fica na Europa. Ele ora fazia ponderações, ora ouvia com muita calma, enquanto corria feito um louco pelas rodovias de proporções soviéticas.
         E depois de um tempo lá estávamos, diante do imponente edifício principal, de quase trinta andares, em forma como que de catedral e com as inúmeras torres, janelas e telhados esbranquiçados pela neve que não cessava de cair. As estátuas de importantes cientistas e trabalhadores anônimos estavam totalmente soterradas.
Mas os portões de acesso ao prédio, que eram o mais importante, estavam fechados. Domingo. Ao lado, de uma pequena guarita emanava uma luzinha fraca. Detive-me por um instante, confuso, e o azerbaijão perguntou:
         - E agora?
         - Bem... espere um pouco, que eu vou lá ver se acho alguém.
         Não foi sem dor que me separei dele por alguns instantes: mal saí do taxi, uma rajada de vento veio e me lambeu o corpo inteiro, ao que este respondeu com um tremelique nervoso e passadas rápidas. Não era longe do taxi até a guarita, muito pelo contrário. Mas com todo aquele frio me pareceu uma verdadeira saga escandinava. Que Deus proteja os homens bons e bem intencionados do rigor do inverno russo! Porque ninguém mais o fará, principalmente os próprios russos, que, habituados a invasões hostis, a demonizações pelo estrangeiro e agora também ao turismo paspalhão e americanizado que nós brasileiros tão bem conhecemos, não serão lá muito gentis. E nem é por maldade, é por pura força de costume.
         - Sim?- disse um guarda, com ar de desconfiança e um pouco de surpresa, sentado num canto da guarita junto a um aquecedor elétrico. A guarita tinha o chão imundo de lama, vinda da neve, e bem no meio havia um estranho arco de madeira.
         - Perdão... bom dia... eu acabei de... ahn, ehn, eu acabei de chegar para o intercâmbio. Com quem eu preciso falar?
         - Passaporte, por favor.
         A frase certamente mais usada neste país.
         - Leve suas coisas. Você precisa ir na sala número cinco.
         Aliviado, e até surpreso pelo encaminhamento rápido da situação, respirei fundo e abri as portas pesadas da guarita. Lá fora o azerbaijão já me esperava do lado de fora, aguentando aquele frio sabe lá Deus como. Perguntou se era ali mesmo, se estava tudo certo, e, ao ouvir a minha confirmação, muito presto abriu o porta-malas e tirou as minhas bagagens de quarenta quilos. Nos despedimos com certa tristeza, quer dizer, pelo menos de minha parte, e enquanto eu me dirigia outra vez para a guarita, ele entrava no carro e já manobrava.
Só que dessa vez não era só encarar o frio desumano que soprava e nevava: tinha agora também de arrastar aquela terrível bagagem de quarenta quilos, o quê, diga-se de passagem, dificultava bastante o trajeto, principalmente por conta da neve, que se enroscava nas rodas gastas da mala e me fazia escorregar. Mas não tinha importância: estava tudo certo, seria encaminhado, encontraria minha cama, dormiria bem e no dia seguinte iria resolver burocracias e correria atrás da vida. Se o domingo permitisse.
Quando cheguei novamente à guarita, o guarda estranhou, e ficou me olhando como se eu fosse um louco ou um animal indesejado.
- Sala 5.
- E onde é a sala 5? Não é aqui?
O sujeito respirou fundo, olhou para o colega que se aquecia em outro canto, e me disse com a mesma cara.
- Claro que não. A sala 5 é no outro setor, no setor V.
- Ah, sim... claro que não. – Ignorei a grosseria. – E como é que eu chego lá?
- Hoje é domingo, a universidade está fechada. – Andou até um mapa, colado na parede encardida, e começou a explicar com muita calma qual seria o meu calvário – Nós estamos aqui, certo? – e apontou. - Daqui, você vai ter que seguir à direita até a esquina. Depois você vira à direita de novo, e segue mais um pouco. Lá vai ter outra guarita. É lá.
- Certo. É... e isso... isso tudo pelo lado de fora?
- É claro.
Gelei.
- Mas... ehn... não tem como ir por dentro? Lá fora está frio demais...
- Hoje é domingo. A universidade está fechada.
E sentou-se com muita calma no mesmo lugar de antes, junto ao aquecedor. Assustado, cansado, sem opções e sem o vocabulário necessário para discutir com a frieza protocolar da autoridade, abaixei a cabeça e engoli seco. Meu taxi! Talvez... Ainda estaria lá, o meu querido azerbaijão? Se não estivesse estaria completamente perdido, fudido mesmo, sem opções além do frio e da paciência de um santo ou de um soldado. Corri para a porta para ver se ainda o avistava, esperançoso, mas como previa no fundo de meu pessimismo, não tinha mais nada além do pátio escuro, vazio e coberto de neve, e as árvores secas ao fundo.
Sem mais nada a fazer, resignado e exausto, voltei para pegar minhas coisas do meio da guarita, enquanto o guarda me olhava com a mesma cara de surpresa e desprezo. Talvez nem estivesse tão frio assim, tentei me persuadir sem muita convicção. Respirei fundo, levantei a mala e empurrei a porta pesadona: “seja o que Deus quiser”, era a certeza..
Pus o nariz pra fora com muita coragem, estado de espírito que deve ter durado em torno de vinte ou trinta passos, até que a primeira rajada de vento veio apertar a minha mão e se enfiar, tímida e fatal, na brecha entre os meus casacos e blusas, na fresta entre a meia e o sapato, na manga da camisa, subir pela barra da calça e penetrar até os meus ossos. O frio era aterrador, ventava de todas as direções possíveis, e, de quebra, quando senti que as minhas mãos começavam a queimar e me lembrei de pôr as luvas, reparei que no bolso já não havia mais nada: deixara-as em Londres, ou quem sabe no taxi, não importa, não as tinha mais. Eram só as mãos, Deus e o frio. Muito frio. Frio demais! Meu rosto já mal conseguia articular a expressão do ódio e do desespero que eu sentia; congelara!
-Ai carai que frio da porra! – gritei com a boca quase imóvel, em português mesmo, já que ninguém ali entendia nada e nem iria me ajudar. Aliás, naquela hora da manhã e com aquele frio, não tinha ninguém em lugar algum. Só o frio, árvores mortas e muitos montes de neve, por todas as partes, que ao longe, atrás da nevasca, poderiam ser confundidos com edifícios ou pessoas paradas. Eu andava com obstinação, embora já sem qualquer coragem, repetindo mentalmente as coordenadas que o guarda, depois de olhar meu passaporte, “por favor”, tinha dito com tanta delicadeza. Dali a pouco chegaria à esquina, mas os músculos do braço que carregava a mala começavam a se contorcer e querer se contrair; os dedos doíam e mal se movimentavam, incrustados em torno da alça. Tinha de parar, não tinha jeito.
Parei um pouco, olhei a desolação à minha volta: o dia começava, alguns caminhões começavam a limpar as ruas da neve. Mas nada de sol nem de gente na rua, dando àquele imenso prédio o ar de fortaleza abandonada, prédio fantasma, como aqueles que sempre ocupam aos montes os centros de cidades grandes brasileiras.
Só que lá na minha terrinha não faria esse frio não, cacete! Depois de descansar um pouco a mão, que começava a queimar com a constância da neve e do vento, troquei a mala e fui arrastando-a com muito sacrifício até a esquina, e dobrei-a. A coisa começava a ficar realmente grave, meu corpo parecia querer sucumbir ali mesmo, não dar nenhum outro passo adiante naquela terra branca e pouco convidativa. Talvez fosse o fim...
- Morrer você não vai. – foi a única ideia que me veio à mente, e logo me reconfortou e me fez continuar, apesar do sofrimento. Tinha também a esperança de ser logo nesse setor, que tinha à minha frente, mas um rápido exame da sua estrutura me fez entender que era só outra entrada principal, fechada para o dia de domingo. Foi só mais outra decepção de falsa esperança, para aumentar meu sofrimento junto com o frio insuportável. Parei, respirei fundo outra vez e comecei a andar bem depressa, por mais que a mala emperrasse toda a hora nos montes de neve esparramados em todo o caminho. Mas quando surgiu um trecho mais plano, sem neve e regular, apertei ainda mais o passo, e comecei a tentar correr, aos poucos, intercalando descansos. Uma corrida: ufa. Duas corridas: foi. Três corriiiiiiidas: ploft. Caí de bunda na neve, sentado, e diria até que caí feito uma jaca, não fosse a absoluta sanidade das jacas em nunca sair de climas tropicais para se aventurar no frio setentrional. Quase não tive forças para levantar: fiquei sentado ali mesmo, já sem sentir os meus pés, minhas mãos, e começando a congelar, como a minha bunda já tinha ela mesma congelado. Uma vontade louca de chorar começou a subir garganta acima. Vontade mesmo de desistir, largar tudo, voltar pra casa, e...
- Tinha até graça! – me dissuadi num arroubo animal de sobrevivência. – Vai, levanta, opa, força! Morrer você não vai, não aqui, não agora. – Levantei, limpei o casaco empapado de neve, e recomecei a marcha com afinco, embora já não tivesse força para continuar arrastando a mala no caminho irregular, e a cada dez ou quinze passos tivesse de parar e trocar a mão da bolsa com a da mala, insistentemente, e a muito custo já que as mãos travavam de frio. Mas enquanto meus pés ainda conseguissem se mover, eu não iria parar, de jeito nenhum. Já tinha vindo do Brasil até aqui! Agora era tarde demais para desistir: a única maneira era suportar aquele sofrimento, aquele calvário custoso, gelado e injusto; aceitá-lo e fazer dele motor da caminhada. E pensar que aquele povo vivia ali há mais de oitocentos anos! Encarando essa neve, andando, caçando, vivendo, enfim... e ainda suportando todos os calvários da guerra, da fome, da tirania e da perseguição. E passando por cima de tudo, tudo mesmo, por cima das perdas, da humilhação, da dor. Valia a pena todo esse sacrifício? Quer dizer, a que se chegou afinal, depois de tudo? Qual foi o sentido de todo o esforço? O fim da União Soviética, e agora um país quebrado, belicoso e corrupto?
Distraído com essas ideias, em meio a tremeliques constantes e cruéis, alcancei mais outra esquina, quase derrapando de emoção ao largar a mala para mais um pequeno intervalo, antes de seguir o caminho. Mas agora era a reta final. O vento voltava a soprar, mais forte, mais gélido e determinado, o que pude constatar pelas mãos, completamente descobertas e obrigadas a ficar no frio para carregar as malas. E quando a pele se expõe a essas temperaturas tão frias, ainda mais quando tem vento, começa a arder e queimar terrivelmente, que nem quando a gente segura um cubo de gelo. Minhas mãos estavam exatamente assim. Sem saída, arranquei do bolso um lencinho que estava usando para limpar o nariz há uma semana, mandei tudo ao diabo e enrolei numa das mãos, a que carregava a mala mais pesada, e passei a revezá-lo também. Se estivesse no caminho certo, e que Deus me ajude, era o último trecho da caminhada, o que me dava ânimo, apesar de exausto e todo dolorido. Num passo mais forte a alça da bolsa que carregava a tira-colo estourou, e por pouco não se espatifou no chão de neve, não tivesse segurado a tempo, abraçado com força e posto novamente o pé na rota. Agora era tarde para consertar, ou mesmo para desistir.
         Já se avistava, entre a neve incessante, uma outra guarita, que me pareceu idêntica à primeira a que fui, onde recebi a terrível tarefa. A ideia de talvez ter dado uma volta completa e ter parado simplesmente no mesmo lugar onde tudo tinha começado me invadiu, junto com um pálido desespero . Mas não importava mais: se fosse mesmo o mesmo lugar de antes, eu entraria de qualquer forma e imploraria por ajuda, pelo menos que me deixassem me aquecer um pouco ali dentro, o que fosse. Tropecei até a porta da guarita, arrastando a mala com a pressa do último ímpeto que ainda poderia ter, o ímpeto confiante na salvação, onde se depositam normalmente todas as forças, um único lance. Entrei.
         - Com licença...! Eu...! Posso ficar um pouco aqui? Lá fora está muito frio...!
         Dois guardas, um moço e um outro mais velho, barbado, sentados num canto, me olharam com espanto, assustados com uma chegada tão brusca e uma pergunta tão direta.
         - Sim, pode, claro...
         - Esse é o setor V, sim?!
         - É sim, o setor V.
         - Eu sou... eu sou um estudante... estrangeiro, sabe? E me mandaram para cá...
         - Você é francês, não é? – Disse o guarda mais velho, com um sorriso estranho, talvez de deboche.
         - Não, eu sou brasileiro... mas... algum de vocês pode pelo amor de Deus me ajudar? Eu não posso mais arrastar essa mala... está muito frio!
         Eles se olharam, e depois olharam pra mim, com um rosto de pena. Acho que o fato de ser brasileiro de alguma forma colaborou para a sua simpatia.
         - Passaporte, por favor... – entreguei ao barbado, ao que ele olhou desatento e logo se virou para mim com o mesmo sorriso. - Você conhece o Pelé?
         - Bem conhecer, eu conheço... nunca vi ele, mas, bem, ehn, sei quem ele é. Mas vocês podem me ajudar por favor?
         - Ele te ajuda! – disse, com o mesmo sorriso estranho, apontando pro outro. – Ele é jovem. Mas vou te pedir uma coisa...
         Já tinha entendido tudo.
- Ok, ok, quanto vocês querem? Eu dou, eu dou, só me ajudem, pelo amor de Deus
         Eles se espantaram, e depois se riram, bem alto.
         - Não, não, não é isso! Você tem uma moeda do... do Brasil? É que eu coleciono – disse o mais velho, e apontou para a mureta da janela da guarita, onde diversas moedas, de diferentes tamanhos e formas, estavam distribuídas com muito cuidado. – Qual é a moeda do Brasil?
         - É o real... – respirei aliviado, e surpreso com a inocência do pedido. – É o real brasileiro... ó, pode ficar... essa é de cinquenta centavos... e essa é de um real. Te interessa nota também? Pega essa daqui, é de cinco...
         Feliz da vida, o guarda olhava as notas e moedas completamente novas que eu dava pra ele. Colocou-as junto com as outras e, perdendo aquele sorriso no rosto, assumiu uma cara muito séria e mandou que o outro sujeito pegasse a minha mala, o que ele presto obedeceu e logo já abria a outra porta da guarita. E eu fui logo atrás, abraçado com a bolsa de alça estourada. Quando eu passei, o sujeito mais velho me deu um tapa nas costas, e sorriu daquela mesma forma incompreensível, indo depois se sentar junto ao enorme aquecedor.
Pouco depois estávamos diante da porta principal do setor. O sujeito deixou a mala, desejou-me sorte, e voltou.
         Com as mãos queimadas, braço dolorido e nervos em pânico, empurrei a porta pesada, toda em madeira grossa, e dei num salão vazio e mal iluminado. Mas nada mais importava. Só queria a minha cama, nada mais, um quarto em que pudesse dormir, e no dia seguinte, quem sabe, se eu acordasse vivo, cuidar da vida. E que vida! Depois da epopeia em torno da Universidade, a -25 de temperatura, a vida certamente não seria mais a mesma. Até porque... estava na Rússia! Mas não via nada, teria de esperar até o dia seguinte...
Ora, que dia seguinte? Ainda era domingo, e, na verdade, eram já quase 9 horas da manhã. Sabia que se dormisse acordaria às duas da tarde, e minha situação ainda seria a mesma, não saberia nada, e ainda dependeria do meu russo cambaleante, caso quisesse fazer as coisas mais básicas e simples dessa ridícula vida humana, como comer ou ir ao banheiro... e antes de mais nada arranjar um quarto. Como era frágil e inútil nesse lugar!
         Estava já diante da sala 5, depois de arrastar as minhas tralhas pesadas por uma escadaria. A porta estava entreaberta, mas bati mesmo assim e entrei quando ouvi a resposta. Era uma salinha escura, onde dois velhinhos observavam um cartaz sobre pássaros. Na parede, diversos informes, cartazes e distintivos militares estavam pendurados. Certamente eram veteranos da II guerra, pensei. Entreguei-lhes meus documentos, ao que um deles pôs os óculos e começou a ler, até que se espantou, com um sorriso.
         - Do Brasil, é?
         - Sim.
         - Olha... isso é muito longe...
         Levantou-se, e pediu gentilmente para que eu o seguisse.  Passamos por diversas escadarias, corredores, andares, até que pegamos um elevador e paramos diante de um quarto. O senhorzinho sacou duas chaves pequenas, experimentou uma, que não abriu, e experimentou a outra, num clique que se abriu para a antessala de minha nova acomodação. Depois ele mostrou brevemente como as coisas funcionavam, o banheiro, o chuveiro, e tal, deixou a chave do meu quarto, propriamente, engatilhada, se despediu e me desejou boa sorte.
         E bem que eu estava precisando.
         Entrei, larguei minhas coisas num canto e me atirei na cama, num estado catártico. O aquecedor tinha ficado ligado o dia inteiro, de modo que o quarto, quase todo composto de objetos de madeira, estava um forno tão infernal que me lembrava os apartamentos em que cheguei a viver no Recife ou no Rio de Janeiro. “Agora sim, me sinto em casa!”, suspirei  com ironia, enquanto arremessava as cobertas para um canto e tirava a roupa, para dormir só de cueca, devido ao calor. Lá fora, uma claridade fosca começava a surgir nesse exato momento, justo quando eu decidia dormir. Mas não importava: eu precisava desse descanso, fosse como fosse, e aí amanhã eu finalmente... amanhã! Amanhã ainda seria domingo, ainda seria a Rússia, ainda seria a incalculável distância de tudo que me é caro e familiar. Não haveria amanhã, o amanhã era minha própria chegada, era a distância de meu chão e de minhas certezas tão tropicais e tão ocidentais. Domingo. Talvez todo corpo estrangeiro seja sempre um imenso domingo, quando cada um cuida da sua vida enquanto você, criatura perdida e alheia, não sabe a quem se dirigir para pedir serviços ou informações. Não sabe que nesse dia se reza, ou não se fala dessa forma, ou não é esse o lugar certo para se encontrar o que se deseja... Domingo, e inverno, na capital da Rússia.
         Com essas ideias, adormeci.

3 comentários:

  1. muito bom Pedro !!! abs e ......sorte :))

    ResponderExcluir
  2. Pedro, muito bom seu texto!!!
    Um bom escritos faz isso: tira graça dos perrengues que passa e transforma em literatura!
    Parabens! Vc já é um escritor!
    beijos
    Tereza

    ResponderExcluir
  3. Meu deus do céu, Pedro!! Que frio. E sem luvas.. E pensar que, ao fim, aqui frio não deveria nem ser chamado de frio, só pela descrição do frio pelo qual você passou. De frio eu talvez demore um pouco pra entender do que se trata, eu só sei de calor, pq em San Juan (Argentina) o calor lá é praticamente insuportável (para mim). Acho que aqui em São Paulo é um meio termo saudável e bom, poluído, claro, o que não é nada legal.
    E sua escrita me lembra a escrita do Fernando Sabino, uma boa sintonia esta, eu pelo menos acho! (:
    um abraço e bons tempos para você, soube pela Neide, que aí começou a fazer Sol e que breve as árvores ficarão cheias de folhas, que bom não é mesmo?

    ResponderExcluir