terça-feira, 30 de outubro de 2012

A lei de todos


“E o bonde que parece uma carroça:
Coisa nossa, muito nossa"
Noel Rosa

Entrei no ônibus e, por sorte ou malandragem, consegui me sentar: era um daqueles dias em que a gente sabe que merece sentar, e de um tal modo que, quando conseguimos, não ficamos com aquele típico remorso pelos que vão de pé e nos olham, invejosos. Mesmo sabendo que o ônibus está cheinho e que aquela moça ali, ares de cansada e cheia de sacolas, talvez sinta tanto quanto você que merece se sentar.
         O dia de fato tinha sido difícil: estava exausto e irritadiço. Já nem ligava tanto para o cheiro de suor, ou para as cotoveladas do sujeito ao meu lado, mas estava de um jeito que qualquer barulho me incomodava: conversa, porta se abrindo, celular. Até certo nível ainda relevava. Mas o destino conspira contra os que se irritam facilmente.
Aconteceu que aquela moça, de cujo lugar me apossei, sem mais opções, foi se escorar onde pôde, mais ou menos perto do cobrador que cochilava, distraído. E foi mal ela chegar lá que ele, sabe o diabo o que lhe deu!, de pronto acordou, viu a cabrocha e  abestalhou-se, tentando puxar assunto ou, ao menos, travar contato. Mas ela não estava nem aí pra nada. O doido ainda tentou milhares de artifícios, desdobrou-se: nenhum tirava ela daquele denso estado de contemplação, quase vegetal, que é costume sabido  das mulheres belas quando ao uso do transporte público.
A coisa parecia mesmo sem solução... até que ele tentou seu último recurso, do mais ousado romantismo: gritou bem alto ao motorista, acordando a mim e a meu vizinho, e, dentro em pouco, de cada canto daquela lata velha, começou a tocar um bolero-brega pavoroso, de um sentimentalismo de ano-novo na Globo. Aliás, antes fosse: aquilo era pior do que a velhice do Roberto Carlos. Mas foi tudo dedicado ao amor, imaginem. Houve a princípio certo estranhamento geral, mas ninguém sequer esboçou reação. No fundo no fundo o mais provável era que todos, principalmente a mulher, estivessem adorando. Todos menos eu, que, já vindo de um mau dia, pressentia os sinais de uma longa tortura, já que tinha que ir quase até o ponto final.
De início não quis acreditar, mas logo me convenci: era real, e não ia parar. E me levantei num impulso pra reclamar daquela folga. “Não sabe ler não, meu amigo?” Diria. O jornalzinho informativo da SPTrans, colado na frente de meu banco, trazia justamente esta lição, muito bem desenhada, entre desenhos de pintos feitos à caneta: não se deve ouvir música alta no busão, de modo a garantir a todos os passageiros um pouco menos de infelicidade. Ia dizer isso mesmo, ou quase isso, ele ia ver. Mas quando vi o cobrador de paquera séria com aquela moça, quase dançando, entendi e abrandei involuntariamente as sete pedras que tinha na mão. Não seria assim tão filho-da-puta: se fosse por causa da moça, ah, mulher!, tudo bem, vá lá, esperaria. Mas só até essa história se resolver.
Altruísmo que, como qualquer boa intenção, obviamente não seria recompensado ou sequer reconhecido. Deram uns dois pontos e, olhando pelo espelho da frente, vi que a moça descia, não sem antes deixar com o cobrador um papelzinho, supõe-se que com seu telefone, verdadeiro ou falso. Aliviado, com princípios de dor de cabeça, suspirei, alegre pelo êxito do cobrador e, ainda mais, pelo que supus ser o fim do suplício da música na lotação. Mas não passaria de vã esperança: o cobrador, parece, tinha achado a própria ideia muito boa (afinal, quem não gosta de música?), e resolveu no fim das contas deixar o coletivo assim mesmo, animado agora sabe o demo com que sertanejo dos infernos, entremeado por barulhentas propagandas de rádio. E até então ninguém tinha reclamado: pelo jeito eu era o único que não estava feliz. Mas não tinha como me constranger. Estava nos meus direitos, e aquilo estava realmente me incomodando. Por fim deixei a vergonha de lado e me levantei pra reclamar.
- Ô amigo – comecei, cordial, mas sério – você me desculpa, mas não dá pra ouvir a sua música o tempo todo não. Nem pode ouvir música alta assim no ônibus, você sabe disso.
O homem se virou  com certo desdém, talvez por ter acabado de se provar um gostosão, talvez pela alta incumbência dos trabalhos de cobrador. A autoridade suprema de que era dotado, pelo visto, tinha lhe subido à cabeça, e resolveu me tratar como eu fosse um trombadinha sujinho pedindo carona, ou um bóy pagando a passagem com uma nota de cem contos.
- Ué, não gosta não, é, doutor? – riu de canto, sem mal me olhar. - Dorme aí. Ou põe um fone, só não enche o saco.
Cachorro! E eu ainda tinha tentado ser gentil.
- Não tenho fone não, bróder. E quem tá enchendo o saco é você. Você está errado. Não sabe ler a placa ali em cima não? Vai, desliga aí, cara, numa boa, por favor.
E fiquei olhando pra ele com uma cara séria, fixa, sem nenhum signo de agressão mas também sem qualquer paciência. Ele até bancou por uns segundos, achei até que fosse mandar um “você sabe com quem está falando”, mas a saída foi ainda melhor:
- Aê gente! – gritou pra condução inteira. O som aí tá incomodando alguém? Porque o velho aqui  - e me apontou de maneira bem indiscreta – tá enchendo o saco pra desligar.
A princípio ninguém falou nada, naquele silêncio típico, em que todos fingem, de um jeito ensaiado, que a história não é com eles. Mas logo uma moça cheia de tralhas  tomou coragem e respondeu, num sotaque forte.
- Não, podexá! Tá muito bom, esse rapaz aí é que é chato.
E depois um senhor respeitável
- Não tira não, que tá bom!
E mais muitos se manifestaram em prol do trolha do cobrador. Até tentei redarguir com a legislação, mostrando a placa no alto do ônibus, junto com a de “proibido fumar”, argumentei. Mas quem queria me escutar? Podia até ser linchado. E antes que o cobrador pudesse olhar de novo na minha cara, selando sua aclamação democrática na minha mais completa humilhação, já tinha voltado de fininho para o  meu canto, profundamente aborrecido. Quanta injustiça num ônibus! Aquilo não podia passar assim... Agora era questão até de honra... não, não de honra, mas de justiça, sem dúvida. Ele estava errado, ninguém era obrigado a ficar ouvindo música nenhuma, isso é um direito! Nem que fosse Chico Buarque, vai saber quem ali não estava cansado, e sem vontade alguma de ouvir música, como eu mesmo estava, mas que não teve ânimo pra se manifestar? E ao mesmo tempo a plaquinha ali em cima, tão óbvia quanto ignorada, do lado do proibido fumar... miséria!
O ônibus parou em outro ponto. Mas ainda faltavam uns dez.... a música não só não parava como ia ficando cada vez pior. Agora eu reconhecia: era Ivete Sangalo. Cogitei a hipótese de pular pela janela, mas desisti: não ia me humilhar a esse ponto, e de qualquer forma o ônibus já tinha partido, levando um senhor que, antes de entrar, apagou o seu cigarro e soltou, por acaso ou de propósito, a última baforada já dentro do ônibus. As reações, claro, não poderiam ser mais previsíveis: mulheres tossiram, numa falsidade perfeita, alguns reclamaram, houve rebuliço. Mas me deu a ideia que faltava. Olhei pra a plaquinha no alto mais uma vez, certificando-me da coerência de meu absurdo, e, sem pensar mais para não desistir, saquei lesto do bolso um cigarro e um isqueiro.
- Com a sua licença – pedi, por mera polidez, e o acendi numa longa tragada, que fiz questão de arremessar, na expiração, para o lado mais próximo do cobrador e da concentração do seu partido. Meu vizinho na verdade estava dormindo e não percebia nada, só se lhe pusesse fogo. Mas as primeiras reações não tardaram a aparecer.
- Eita que cheiro é esse de cigarro?
- Nossa senhora que cinzeiro!
- É o rapaz ali ó! Ô meu jovem, não pode fumar aqui não, cê não sabe?!
- Ah é? Nem ouvir música alta, e vocês tão ouvindo – retruquei numa tragada hollywoodiana, realizando, no fundo, junto com a vingança, o sonho de fumar num ônibus. Mas as reações pioravam, as pessoas começavam a se irritar. Só o velho recém-chegado que, surpreso, julgou se tratar de uma condução liberal e resolveu também acender seu próprio cigarro, de palha, bastante fedido. Um outro, de um canto, também entrou na nossa e sacou até um cachimbo.
Estavam formados os partidos. E o antifumante já espumava.
- Moço apaga esse negócio! Não sou obrigada a ficar cheirando a fumaça dos outros. Isso mata!
- Também não sou obrigado a ouvir essa música aí não, que emburrece. Tá escrito lá em cima, ó! Proíbido fumar e ouvir música alta. Só que quando eu reclamei só faltaram me bater. Agora aguentem.
E dei outra baforada. No fundo estava me divertindo.
- Só que acontece que a música não incomoda ninguém. Nem faz mal! – virou-se uma outra mulher, se achando esperta.  – Cigarro mata e é nojento! – veio na intenção de tirar meu cigarro de mim.
- Nojento?! Nojenta é essa música aí de vocês, puta que o pariu, viu?! E tira a mão daí, dona! Me deixa! – Retruquei, e logo fui aplaudido pelo velho fumante, que assistia, entre tragadas, toda a cena, animadíssimo. Só que nisso a frágil brasa do seu palheiro acabou caindo, e justo no vestido da moça que se sentava ao seu lado. Depois de queimar o tecido, queimou foi a própria perna da moça, que fez um escândalo e começou a dar bolsadas no pobre do velho, que tentava se esquivar e ao mesmo tempo apagar o braseiro que se formava no pano. Nisso o cobrador, que se fazia de desentendido, teve finalmente de dar as caras na parte sublevada da condução: mas já não era só eu quem fumava, mas uns quatro ou cinco, e ele não sabia por quem começar. Até cheiro de maconha já rolava, e um casal pomposo gritava absurdado contra aquele vandalismo.
Em pouco a coisa se tornou uma festa, com direito à música alta, maconha livre e o diabo à quatro, e já ninguém conseguia se entender. A moça do vestido queimado agora batia até no cobrador, porque ele, tentando apagar o vestido em brasa, acabou passando a mão na sua coxa. Em volta do baseado já tinha se esboçado uma roda. Por fim o próprio motorista, um negão de dois metros de altura, acabou perdendo a paciência e encostou o ônibus na rua, logo levantando com um cabo de vassoura para acabar com aquela, nos seus termos, “putaria do caralho”. Sentindo o perigo, os adesistas do partido da fumaça rapidamente esconderam as provas do crime, mas eu e o velho, porque envolvidos cada um em uma pendenga e sentados ambos na parte da frente, não tivemos a mesma sorte. E sobrou pra gente.
- Que porra é essa aqui?! E essa cigarreira do caralho?! – gritou o motorista meia-noite.
- É esse moleque aí, ó! – se aproveitou o cobrador, me apontando, vingativo.
- E esse velho safado! – gritou a mulher do vestido.
Sem a menor vontade de ouvir explicações, incentivado pelo clamor popular das indignadas com o cigarro e pelo maldoso cobrador, o meia-noite tirou cada um de seu canto, pelos respectivos colarinhos, com toda a delicadeza que a situação exigia, e nos arremessou em dois tempos para fora do ônibus. Por pouco não dei com a cara no chão, não fosse ter esbarrado no velho, posto para fora antes. Depois tacaram minhas coisas pela janela, e o ônibus partiu, deixando xingamentos. Fiquei, no fundo, até bem feliz de terem devolvido minha bolsa e não terem tacado nenhum tijolo na gente. Mas que tinha sido uma injustiça tremenda...! Ah, isso não! No fundo, sabia, estava certo. Aliás, estávamos! Mas quem pra fazer a lei...
- Peço desculpas, senhor... não devia ter entrado na minha...
- Não tem nada não, meu filho. – respondeu o velho, fanho, limpando a roupa e se certificando da frágil integridade física. - No fundo foi até engraçado.
- Ah é...  mas que filhos da puta, ein? Eu até, nossa, devia era... ufa! Bem, deixa pra lá, paciência. – silêncio. Cada um acendeu um cigarro. – Só ficamos sem condução...
- Ah, mas se resolve. Aonde você vai?
Descíamos no mesmo ponto, e acabamos rachando um taxi. Transporte que, além de mais cômodo, no caso não tinha rádio. E o motorista, que era fumante, de quebra ainda  nos deu aquela brecha.

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