sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Controle alfandegário

Depois de doze horas de voo, alguns vídeos informativos com criaturinhas rechonchudas da companhia aérea, no caso a Tam, sanduíches de constituição totalmente estranha (aparentemente frango), três ou quatro doses de whisky (se o sujeito for esperto) e uma noite muito mal dormida, apesar da simpática criatura sentada ao seu lado, bonita mas mais calada do que poderia ser, ao viajante internacional que se direciona do Brasil para a Inglaterra e até talvez para qualquer outro país da União Europeia é indispensável, em primeiríssimo lugar, dar as caras ao controle de imigração, para se certificar da inutilidade ou não dos não sei quantos mil dólares gastos na passagem aérea.        
Ou melhor dizendo: em segundíssimo ou terceiríssimo lugares, porque ainda compete ao tal viajante, neste meio tempo, vestir uma série de inúmeros e curiosos casacos, nos mais diversos formatos e eficiências, mas todos denunciando o frio excessivo que um indivíduo do terceiro mundo sentirá sem falta ao desembarcar no primeiro, nos tempos de inverno lá e verão cá, ou vice-versa. Alguém inclusive chegou a me dizer que esse é na verdade o primeiro teste no controle de imigração, que quem estivesse sem casaco, ou com um só, muito específico e apropriado, passaria direto como cidadão europeu, com direito até a comprimentos do guardinha da alfândega. Mas como eu sou friorento e vivo às beiras de uma  constipação, ignorei este boato besta e fui, como um esquimó gordinho, andando pelos corredores do desembarque, arrastando as toneladas de bagagem que trouxe como “indispensáveis”, morrendo de vontade de ir ao banheiro, mas desanimado ante a perspectiva das muitas e muitas camadas de roupas que inventei de vestir ainda na saída do avião.
Já trazia nos dedos o passaporte, a passagem, o endereço de onde iria me hospedar, com o telefone e CPF da respectiva responsável, o papelzinho azul da imigração (distribuído no avião junto com o whisky), um atestado da inexistência de antecedentes criminais e ainda uma cartinha de recomendação da minha avó, caso houvesse alguma dúvida de que sim, eu sou um cidadão de bem, na verdade o tipo de cara que você sempre quis deixar entrar no seu país, por favor, sim? Na minha cabeça de perfeito caipira dessa dita “aldeia global”, o controle de imigração contaria com policiais, cães farejadores, burocratas de coque e até mesmo, tratando-se da Inglaterra, um oficial bigodudo da Scotland Yard, todos me interrogando sob o veto de um detector de mentiras e ao som insistente de um datilógrafo, documentando todo e qualquer pormenor ou vacilo de meu desempenho. Mas depois de percorrer aquela infinidade de esteiras e corredores gelados, fui parar em uma sala vasta, que em nada se parecia com o lugar escuro e austero criado pela minha imaginação. Muito pelo contrário: era tudo claro, num clima de seriedade nada excessiva, com seis ou sete caixas até que bem educados atendendo a enorme fila de brasileiros que chegava do desengonçado e turbulento voo. Mas mesmo assim alguma coisa perigosa restava naquele ambiente, alguma coisa traiçoeira por detrás daquela formalidade aparentemente descontraída. Principalmente no tom de voz com que uma mulher atarracada e séria chamava um por um cada indivíduo da longuíssima fila do controle de imigração. Reparei que um sujeito havia sido chamado para um canto da sala, e entrei na fila de mãos nos bolsos e cabeça baixa.
Pus-me a organizar meus documentos. Sim, não tinha dúvidas de que tudo estava certo e que não haveria qualquer erro. Não tinha onde ter erro. Mas mesmo assim... a incerteza da eterna suspeita sobre si mesmo, sobre essa única pessoa que sempre saberemos tudo o que fez e mesmo algo do que ainda fará, se apoia com malícia sobre meu ombro toda vez em que me exigem honestidade, moral ou noções cívicas. Coisas católicas... E não tinha como ser diferente. Meus documentos estavam organizados, claro, e muito bem, por sinal, mas mesmo assim parecia que alguma coisa ainda estava fora dos padrões, muito embora eu não a achasse de jeito algum, e só iria aparecer na hora certa em que uma autoridade estivesse me assistindo, no afã de prender ou dificultar a vida de alguém pelo simples tédio que deve ser um serviço desses de burocracia de aeroporto. Talvez um papel manchado, um documento suspeito, uma palavra escapada... Deus, como é péssimo o meu inglês! Há quanto tempo não praticava? Falaria tudo completamente errado, nem nas frases mais básicas eu teria chance... que belo vexame. Só pelo meu inglês, bem o sabia, já seria vetado.
A fila andava, e já me aproximava do balcão que ficava de frente para os oficiais, onde a mulher gritava um a um para que se dirigissem ao guichê x ou y. Vi ao seu lado um aviso do governo britânico, sobre o porte de plantas, animais ou objetos estranhos à realidade local, que poderiam ser proibidos ou mesmo disseminar pragas ou terríveis epidemias no país. E embaixo, para terminar, as consequências que o indivíduo teria de arcar com caso desrespeitasse a declaração de bagagem: multas altíssimas e deportação. Chega me deu arrepios: traria eu comigo qualquer planta perigosa? Qualquer animal raivoso de que me esqueci mas que aguardava na minha mala o momento certo de espalhar seu mal? E quem sabe...
- Ora, isso é ridículo – afastei semelhante ideia de minha cabeça, ainda tentando achar a melhor forma de organizar os papeis, que se enroscavam e embaralhavam entre as minhas mãos nervosas. O momento fatal se aproximava, e já podia ver a fisionomia dos oficiais do controle alfandegário: dois homens austeros, de óculos, cabelo curto e barba escanhoada, um quase careca, sem grandes mudanças na expressão ou arroubos de qualquer tipo. Metódicos. Ao lado esquerdo uma moça negra e compenetrada, e mais à esquerda ainda um homem em cujo rosto se lia claramente: “indiano”. Mas quem mais me chamou a atenção foi um sujeito meio gordo, de fisionomia muito agradável sem qualquer perda na seriedade, clássico tipo do “careca-cabeludo” como o era Vinícius de Moraes no fim da vida. Andava de um lado para o outro sempre com a mesma calma, e pude perceber que procurava alguém entre os atendentes que falasse português, para ajudar um pobre diabo que não bastasse ter se enrolado com a documentação nem sequer com o inglês sabia se virar. Mas deu a sorte grande de ter o tal do sujeito por perto, que se dispôs a achar alguém e, tendo achado, o encaminhou para um canto para que se resolvesse. E logo depois de o ter encaminhado, cumprimentou o sujeito de óculos que atendia bem na minha frente, falou alguma coisa no incompreensível sotaque britânico e assumiu o seu posto no guichê.
Como eu queria ser atendido por ele! Daí certamente não haveria problema nenhum, ah, não tinha como! Com um sujeito tão simpático, que até se dispôs a ajudar o coitado que não sabia inglês... mas só tinha uma pessoa na minha frente, e agora? Esse era um homem curioso, com uma estampa da “Rádio Londrina” bordada no paletó azul, chapéu preto de aba curta, e logo foi chamado pelo homem que julguei ser o salvador de minha pátria. Ou de minha expatriação. Para não ser atendido por outro, meu Deus... Tudo já estava em ordem, tudo, tudo mesmo? Bem, seja o que Deus quiser! Não tenho crimes, ao menos crimes que interessem a um controle de imigração, ao menos que me lembre. Mas bem que eu poderia ser atendido pelo sujeito... no caixa da esquerda, uma mulher começava a tentar discutir com a mulher que a atendia, mas também sem se exaltar. Ali, ufa, a coisa ainda parecia demorar. Mas à direita... o sujeito que se apresentava sacava os documentos com tanta naturalidade, com tanta destreza, que até pensei que diabos ele estava fazendo ali e não na fila para habitantes britânicos ou da União Europeia, pois seus trejeitos eram de um desses. E estava sendo atendido justamente pelo outro sujeito de óculos, tipo sério e diria até meio mal humorado. Se caísse com ele certamente teria problemas, menos porque os tivesse de fato do que simplesmente por estar nervoso, em uma situação oficial que exigia do meu pobre e surrado inglês uma presença de espírito ao menos simbólica.
Mas a hora se aproximava, eu já era o seguinte na fila. Vi com desespero o guichê do indiano vagar, assinando a minha sentença de lidar com uma pessoa na qual em nada confiava, quando ouvi chamarem na minha frente.
Era mesmo o tiozinho bacana! Arrastei meus quarenta quilos de bagagem para frente, quase tropecei e fui me escorar no guichê, onde o homem me esperava com um sorriso protocolar, mas gentil. Logo pediu meus documentos, os que eu já vinha preparando desde a saída do avião, ao que eu prontamente enfiei a mão tremulante no bolso e, ao puxar o caderninho do passaporte, derrubei uma porção de papéis pelo chão, não sem algum estardalhaço e atrapalhação.
- Você derrubou alguma coisa?
- Ah, é...sim... meu endereço... aqui, meu endereço aqui.
- Ok. Seu passaporte. Quanto tempo você pretende passar em Londres?
- Três dias.
- E com que fim?
- Visitação, somente.
- E depois desses três dias, aonde você vai?
- Para Moscou.
- Hum, e o que você pretende fazer em Moscou, além de congelar, é claro?
A última pergunta, que incluía por mera gentileza um gracejo até que divertido, por ter sido, como toda a sua fala, feita no sotaque britânico, inglês alheio à nossa formação americanizada, me desconcertou. Porque ao invés de simplesmente dizer para ele que não tinha entendido, e pedir que falasse mais devagar, eu só me enrolei inteiro com algumas palavras que saíram incompreensíveis em qualquer sotaque de qualquer língua, ao que ele ficou me olhando com o mesmo sorriso gentil e protocolar, até repetir a pergunta e o gracejo.
- Ah... eu, eu vou... vou estudar.
- O quê?
- História.
- Muito interessante. Você já estudava história no Brasil?
- Sim, já.
- Ok... muito bem, mr. Pinto -  e meteu um gigantesco carimbo na terceira página do passaporte -, tenha uma boa viagem. “E um bom dia”
Esse último “bom dia” foi pronunciado em um português quase perfeito, não fosse a melodia inconfundível do inglês britânico, a cantar por detrás das palavras de minha língua. Devolveu meu passaporte e indicou onde poderia retirar o resto da bagagem. Realmente me impressionei com a gentileza que o sujeito teve ao me dirigir as palavrinhas em português: seriam novos tempos aqui nas Europas? Vai saber... o que uma crise não faz com um modelo de civilização? E isso era só a entrada do aeroporto, o internacional de Heathrow. Depois de pegar minha mala, não sem certa dificuldade para identificar em qual esteira ela estava passando, segui cabisbaixo e confuso rumo à saída para o metrô. Ainda na porta, à direita, lia-se sobre um outro guichê: “Declaração de Bagagem”, com os mesmos informativos de antes sobre as penalidades e tudo o mais. Parei pra pensar um pouco: “não teria eu qualquer coisa que...?” Mas logo mandei tudo ao diabo e, arrastando meus cinquenta quilos de bagagem, me dirigi à porta automática, que se abria para a civilização britânica.

2 comentários:

  1. Mais um texto delicioso. Quando chegar em Moscou, você me avisa. Nunca conseguir escrever sobre a experiência de estar na Rússia. Quem sabe um texto seu puxe um outro meu.
    Abraço, querido. Boa viagem.

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  2. maravilhoso.
    Tenho uma experiência semelhante na alfândega do Charles de Gaulle, porque fui ajudar a mãe de uma amiga que não fala e nem entende patavina de francês e não dá pra dizer que eu seja o cara mais versado na língua.
    Ela deixou cair todos os papéis (com bastante estardalhaço) e não conseguia entender uma palavra do que o rapaz estava lhe perguntando. Acho que ele deixou a gente entrar por pura preguiça de checar as coisas direitinho.
    enfim... maravilha.

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