sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Um ano-novo

       Acordo em outro 31 de dezembro com a cabeça querendo explodir. Era um sábado, e como já sabia de antemão como iria passar o meu ano novo –  outra vez em São Paulo, com um almoço de família e sem festa nenhuma nos planos –, havia aproveitado a noite anterior de uma forma até desnecessária, como que compensando não só o ano que passou mas também o que viria, e a virada calma, sem champanha ou perspectivas, que iria passar com a família em clima de gula e austeridade.
         De pijama, barba mal feita, olhos pregados, cambaleei com muito esforço até a cozinha para preparar um café. Ainda ignorava, na modorra de uma qualquer manhã de cansaço, o fato de ser o último dia do ano, bem como de já não ser mais manhã coisa nenhuma, mas sim quatro e meia da tarde.  Depois de botar a água no fogo e pasmar com a geladeira aberta, ia voltar para a cama quando tive o azar de esbarrar com os olhos no relógio, ao lado do calendário.
         - Puta que o pariu!
         Acordei, e corri para a sala atrás de uma solução: a casa já estava vazia, e, em cima da mesa, jazia um bilhetinho de minha mãe em que se lia “tentei te acordar, mas não teve como.... fui para a casa dos seus avós”. O que devia ter sido à uma da tarde, para quando o almoço tinha sido marcado. Bem, agora é que eu estava feito! Voltei pra cozinha para me certificar da data e do horário de Brasília: 16:35, 31/12.
         A sentença era mesmo fatal. Desanimado e um tanto abatido, desliguei o fogo e me sentei junto à mesa descoberta, toda cheia de migalhas. Já era tarde para tomar café da manhã, para pegar um ônibus ou um metrô para a Zona Norte, onde há quase quatro horas minha família tinha começado a almoçar; era tarde para pensar em uma solução... e também era cedo demais para tomar um pilequezinho em algum bar, cedo para assistir os fogos da Paulista ou de Copacabana pela televisão, e era cedo para simplesmente dormir de novo e acordar em outro ano, achando que muita coisa mudou, inclusive a minha própria vida.
         Talvez só não fosse tarde para o almoço, o que eu precisava providenciar com certa pressa já que em breve tudo estaria fechado, e todos em festa. Enfiei uma roupa um pouco mais bonita do que o normal, em virtude da data, e saí pela rua, descendo a Teodoro até que me lembrasse de algum restaurante próximo em que pudesse comemorar, ainda que só e sem pompa, o ano novo. Quanto à família, ora, ao diabo! Era muito provável que, no domingo seguinte, fosse como de costume almoçar na casa dos meus avós e ver todo o mundo.
         No caminho, como sempre, encontrei uns dois ou três conhecidos e vizinhos que passeavam com a família, e que me desejaram um feliz ano novo, até com bastante sinceridade. Mas no meu sonolento estado espírito, somado ao clima típico de São Paulo ao fim do ano, nublado, quente, abafado, sem vento, esses cumprimentos me fizeram pensar, não sem certa descrença, em tudo aquilo que se passava todos os anos, da mesma forma. “Feliz ano-novo, claro! Mas... bem, no fundo, o que é que muda? Quer dizer, o que é que tem de propriamente novo nisso tudo? Se depender do calendário, vai ser outro janeiro, outro fevereiro, etc. etc. ou seja, nada de fantástico, de extraordinário, de novo...  Nessas horas a Paulista deve estar cheia daquele povo que vem do interior, pra tirar foto da decoração de fim de ano e pra ver o show de, de... de sei lá o quê. E bem, de fora, segunda-feira eu e todo o Brasil vamos trabalhar como trabalhamos nesse e em todos os outros anos... e eu vou seguir o mesmo caminho, esses mesmos viadutos, e entrar na mesma rua de sempre.”
         Nesses pensamentos atravessei o viaduto da Matheus Grow, sem reparar muito na vista pra Belmiro Braga, nem na ausência da quitanda de sempre, e me aproximei da Fradique Coutinho. Em resumo, pensei com ironia, o caminho que faço para ir ao trabalho, o trecho da rua onde fica o japonês em que passa o Datena, a vendedora de bilhetes, e outras coisas prosaicas. A vendedora certamente não estaria lá, mas na esquina pude constatar, com alegria, que o japonês de sempre estava aberto e que, portanto, já tinha um bom lugar para o meu almoço de ano-novo.
         Ao contrário do que eu temia (me atrasar ou pegar a casa já prestes a fechar) não só estava aberta como bem cheia, sendo que com sorte consegui arranjar uma mesinha, perto da calçada. Chamei o garçom e pedi bife à parmegiana – que estava com vontade de comer já há não sei quantos meses –, e fiquei olhando para o bar. Logo reparei que a casa não estava só cheia, mas cheia de todos os fregueses que têm sua cadeirinha e seus dias cativos no estabelecimento, que conversam longamente com o dono, e que até têm lá suas preferências no cardápio já sabidas do garçom. Mas estavam todos muito alegres, alguns estavam de pé, e era claro que todo mundo ali já se conhecia, nem que fosse só daquela mesma tarde.
         Achei tudo aquilo muito engraçado, como as mesmas pessoas de sempre, no mesmo lugar de sempre, numa certa data, convencionam se reunir e comemorar sabe-se lá o quê exatamente . Nisso chegou o meu bife, e me pus a comer, ainda debochando interiormente da alegria humana. “Ano-novo de novo!”, ri um pouco amargo do péssimo trocadilho, mas logo comecei a pensar mais seriamente. O que viria, de fato, de realmente novo pela frente? Olhei para aquele bar cheio, para a rua movimentada, procurando por qualquer traço de novidade ou de mudança nos orelhões, na calçada estreita, nos sacos de lixo junto ao poste, nas lojas fechadas... talvez essas fossem a única diferença daquele dia em relação aos outros. Mas também, que grande diferença! Igual a qualquer domingo, assim como o silêncio nas ruas, e os fogos que seriam lançados no final do dia: no lugar do futebol de sempre, hoje será ano-novo... e amanhã, o que será?
         Engoli outro pedaço de bife e me detive nessas reflexões meio tristes, meio conformadas com o passar dos anos, olhos fixos no fundo encardido do bar, onde se abriam portas ao banheiro e à cozinha, mas sem reparar em nada, distantes, focados num ano que ainda estava por vir. E nesse instante a frase do poeta, emprestada pelo cronista, veio parar na minha mente: “assim eu quereria a minha última... o meu último dia do ano. Ou o meu ano seguinte. Assim eu quereria meu ano seguinte....”
Enquanto isso, sucedia-se no meu campo de visão um movimento anormal vindo da cozinha, que só depois de uma certa algazarra conseguiu me tirar do ensimesmamento escuro em que me afundava. Do fundo do bar, o japonês, que, descobri por um grito, se chama Jorge, trazia em seus braços algumas garrafas que quase caíam, junto com um grande sorriso e seus olhos puxados resumidos a dois traços pretos e alegres. A família o ajudava, e o bar inteiro começou a se mexer e se voltar em sua direção. Só então percebi que o garçom que me atendia tinha acabado de deixar uma taça em minha mesa, assim como em todas as outras. Nisso, o japonês, o Jorge, abrindo uma a uma cada garrafa verde-claro, com um rótulo azul e um desenho de uma maçã, foi passando nas mesas e oferecendo “um pouco de cidra?” a cada um dos fregueses. Também aceitei – era uma cidra barata, a champanhe dos pobres, dessas que se vendem a cinco reais em qualquer supermercado. Depois que todos estavam servidos, o Jorge foi ao centro do bar e propôs, bem alto, um brinde, “ao ano que passou e a todos os que virão, e que ainda veremos”,  e todos os clientes se viraram para o mais próximo para bater os copos. Sentava-se ao meu lado um senhorzinho que sempre via por ali, tomando sua cerveja, sozinho normalmente, na mesma mesa. Já devia estar meio bêbado, e quando brindamos ele estava com um sorriso enorme e bobo de emoção, os olhos rasos d’água. Depois nos abraçamos com votos de felicidade, e terminei o pouco de almoço que ainda restava junto com ele, por alguns instantes até em silêncio, mas na mesma mesa, e meio que se entendendo interiormente.
Na hora da despedida, nem trocamos nossos nomes, na certeza de que ainda nos veríamos – sempre nos víamos! Levantei-me para pagar, e encontrei o sorriso do Jorge e de seu pai, o outro japonês velho e rabugento que fica às vezes por detrás do balcão,  e ambos me saudaram, desejaram feliz ano-novo, felicidades, etc. etc., com a mesma cordialidade, e, talvez, com o mesmo amor. Não sei se pelo efeito da bebida, não sei se por ser 31 de dezembro, saí daquele boteco de coração pleno, alegre com a tranquilidade das ruas e com os muitos novos meses que viriam pela frente. E a frase do poeta e do cronista se repetia torta, a cada passo através dos viadutos, nos meus botões “assim eu quereria o meu último... meu último dia do ano, meu ano seguinte: que seja alegre como aquele brinde.” Chegaria em casa e ligaria para a família, para desejar-lhes, como desejei a todos os desconhecidos, tudo que de melhor houver no porvir, e também ligaria para os amigos que, talvez, tivessem ficado por São Paulo e não tivessem programa. Até a virada ainda faltavam seis horas. “Veremos”, pensei.

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