domingo, 31 de julho de 2011

Chega de Saudade


“Rua Cônego Eugênio 1034, um sujeito andando de sapato, matutando sobre o quê ficou pra trás. Lembro do tempo feliz, ai que saudade, Pinheiros era só felicidade era como se a especulação... ah não, que coisa horrível!
            Risquei os parágrafos escritos com ódio profundo: não era nada, nada daquilo que eu queria para um texto, muito menos da profundidade e expressividade que esperava dele. Escrever não é qualquer tolice, pensava, não posso sair por aí copiando a cariocada numa melancolia pronta... até porque o espírito era outro, apesar de que a melancolia cairia muito bem, no momento certo.
            Peguei outra folha, e quase esbocei fumar... mas desisti – não ia ajudar de jeito nenhum, o barato era o papel e a caneta, numa total servidão às experiências que tinha vivinhas no peito, mas não saíam com a elegância que eu precisava. Daí, entre escrever qualquer tralha, só pra mostrar para o grupo e ficar bem na fita, ou simplesmente chegar de mãos abanando e sorrir um “ esqueci! fica pra próxima”, talvez eu preferisse a segunda opção, não pela responsabilidade, mas pelo simples amor-próprio.
            Era imprescindível expressar tudo aquilo que foi vivido, e que era vivido até hoje – relevância e atualidade do tema, a vida de um bairro, isso é, se ainda vivia, o que se passava por ele, etc. Mas do jeito que a coisa andava, não conseguia nem me expressar de uma forma decente, e não porque faltasse conteúdo, já que morava naquele mesmo pedaço de terra fazia bem uns 20 anos, mas pela falta de referência que me inundava. Criar uma própria, então, estava totalmente fora do meu universo mental, atribulado com novos empregos e com o peso do mundo nos ônibus, digo, nos ombros, o que não é em si um problema: sempre tive a absoluta noção de que não sou o primeiro homem no mundo, nem no Brasil e muito menos em São Paulo... pelo contrário, sou um dos últimos, o que sempre constatei com alegria. Ora, coitado de quem, antes de ler os Mários de Andrade, os Fernandos Sabino, e sem ouvir um Adoniran ou um Vanzollini sequer, resolveu lá escrevinhar algumas linhas sobre São Paulo! Nunca pude entender quem se queixa de que já fizeram tudo – ora, melhor! Não precisamos perder mais tempo.
            Bem, não podia perder mais tempo: era nessa tarde, ou pra semanas depois, o que seria um erro – o problema me perseguiria fatalmente. Largando o papel, me pus a fuçar todo o material levantado de antemão, crônicas, contos, poesias, letras de sambas, discos de sambas, sambas em si, papeletes que juntava nos bolsos e gavetas, páginas avulsas de jornais de bairro, ideias esboçadas até que...
            - Nada! Suspirei indignado... - Nada que sirva, nenhum motivinho, bando de incompetentes – me virei para a pilha de livros e materiais, mas logo me arrependi e me desculpei baixinho.
            O negócio era mesmo fumar.
            Mas nem isso se podia fazer sem nenhuma perda, tinha que me deslocar pro quintal – só daí acendi e me pus a pensar, de novo. Como era chato ter que fumar longe do quarto! Na minha velha casa é que era esquema... uma ampla varanda saindo direto do meu quarto para a linda Cônego Eugênio, rua de minha infância, tão maravilhosa que... bem, a quem eu engano? Minha varanda dos anos 30, sobreloja de uma floricultura heptagenária, dava direto para uma aberração de prédio-shopping, meio cinza, meio amarelo, nada bonito... mas pelo menos dava pra fumar do lado da escrivaninha, vai que pinta alguma ideia brilhante e repentina! Aliás aquela escrivaninha, quanta coisa não me vinha nela, naquele tempo de colégio... fazia tudo obrigado, claro, e dramatizando também, mas tudo parecia ter muito sangue, muita vida! Quando a relojoaria fechou, eu até escrevi uma crônica pra aula de...
            Foi uma luz. Tudo o que eu sempre precisei devia estar naquele texto do viço dos meus 16 anos, quer dizer, pelo menos na minha desesperada memória. E o melhor de tudo é que era meu, ou seja, seria praticamente um diálogo comigo mesmo em dois momentos diferentes da vida – melhor do que o tradicional serão com os mortos ao qual sou já bem acostumado. O que restava agora era só achar o diabo do texto, o que julguei ser tarefa fácil, mas – qual! -  não se encontrava em nenhum dos locais plausíveis, ou mesmos possíveis de estar. Não via esse texto, bem como seus irmãozinhos de geração, desde a fatídica mudança, o que era alarmante... e se não achasse? Afastei a ideia junto com uma pilha de cadernos e pastas antigas, num angustiante espirro alérgico – mas ali também não estava nada... a coisa se complicava cada vez mais, e a cada nova gaveta ou arquivo que revirava, o desespero do fim da falsa esperança ficava mais agudo, até porque chegou um momento em que todos os lugares verdadeiramente possíveis e plausíveis já tinham sido revistados, só restando, então, os lugares improváveis, que eu começava a revirar já sem muita fé e com uma esperança de puro procedimento.
            Finalmente, depois de revirar a gaveta onde guardava só receitas médicas e derivados, olhar debaixo da cama e checar disco por disco a minha coleção dos Beatles, me dei por vencido: sumiu que desapareceu, e ponto! Não tinha outro jeito senão me virar com ideias novas, pois a minha velha produção não colaboraria nessa... e mesmo pr`além disso, a coisa foi ganhando proporções sentimentais, afinal de contas, foi um dos primeiros textos que escrevi de verdade em minha vida, E eu me lembrava dele como muito interessante, uma abordagem sobre o bairro daquelas que até hoje me acompanha e que, no momento de repensar essa história toda e escrever um novo texto, me daria uma puta força – mas não, ele não ajudaria, simplesmente porque não estava lá.
            E mais ainda: acabou atrapalhando, pois aquilo me abateu de verdade, apegado como sou a tudo que é velho e que passou há certo tempo, ainda mais se tratando da minha vida. Já não conseguia pensar direito no texto que tinha que escrever, e fui meio que assaltado pela melancolia e pela ansiedade. Tudo que restava era dar uma clássica parada, a pretexto de algo, para espairar, juntar novas forças e, se possível, abstrair a história da crônica.
            O pretexto, no caso, foi uma coca-cola com um cigarrinho, o que ainda me daria, de quebra, um pequeno passeio até o boteco na Teodoro Sampaio, numa tarde até que bonita de primavera, ainda mais na minha arborizada e passarinhada rua Cristiano Viana, que, embora não tão bela quanto a Cônego Eugênio Leite, com o portão do cemitério São Paulo e com o Colégio Sta. Luzia, também tem lá seu charme nos sobrados que se sucedem, careadamente, entremeados por grotescos edifícios neoclássicos. Naquela caminhada reparei em um lindo casarão em particular, vizinho à minha vila, que, tendo morrido o velhíssimo e carnavalesco dono, estava à venda e e pelo jeito já estava vendido, pois a placa tinha sumido. Tal perspectiva era apavorante: o que fariam ali, outro prédio grotesco, talvez? Ou um estacionamento, na rua até que se precisava de um, ou então simplesmente deixariam a casa mofando, lacrada como estava, esperando o preço da terra subir pra vender mais caro.
            Nessas reflexões, cheguei ao bar e à metade da coca-cola, até que me voltou à cabeça a tragédia da crônica, enquanto tratava de acender o cigarro, como que desdobrando naturalmente o problema da mudança e, no caso da minha em particular, o ódio de perder coisas no meio. Cacete, se eu não achava o diabo da crônica, o que restava era tentar lembrar dela, o que eu até conseguia, só que bem vagamente. O boteco em que estava, sujo, barulhento e deliciosamente mal frequentado,  me ajudou bastante, pois a crônica começava exatamente num bar desses, só que na Vital Brasil, e... bem, daí o que mais? O estilo era certamente brilhante, lembro de levar um legítimo A com louvor e de, mesmo sem essa vaidade besta, gostar muito dela – certamente levava muito sangue, tinha posto muita coisa que pensava nela, e a narrativa era encadeada com maestria, ligada intimamente ao espaço. Provavelmente uma verdadeira obra prima que se perdeu nessas adversidades da vida moderna, meu Deus... até as personagens eram muito boas, como uma mesa de quatro animados amigos me lembrou: éramos em quatro, ou eu e mais quatro, nada além disso... e era uma daquelas típicas sexta-feiras que vivi durante três anos, em que, saindo direto do colégio pro bar mais próximo, gastávamos horas a fio pensando onde íamos acabar a nossa tarde, isso depois da décima ou nona cerveja. O destino era esse: Teodoro Sampaio, em geral, já que a maioria morava pelo pobre bairro de Pinheiros mesmo... rapaz, era um caminho um pouco desagradável, mas mesmo assim a gente gostava! Depois de atravessar a ponte, seguíamos toooooda a Eusébio Matoso até a Rebouças, tudo isso a pé, até chegar na Pedroso de Morais, de onde subíamos pela Artur de Azevedo, parando no primeiro bilhar que pintasse.
            - Só moleque mesmo, viu! – suspirei olhando a rua, onde um carro businava ensandecido, provavelmente descontando seus problemas domésticos. Aliás, eu também tinha os meus: era pagar e terminar de escrever, portanto tratei de juntar meus trocados até ter certeza de que juntos formavam 2 reais -  e ri, com gosto, lembrando das coisas até chegar em casa, onde o drama me esperava.
            Mas não tinha jeito: respirei fundo e escrevi, mas muito, e de um jeito que, no fim, adorei, e esqueci aquela palhaçada da crônica velha. Nunca precisaria dela para escrever uma nova... e, vai ver, nem era tão boa assim! Eu tinha só dezesseis anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário