segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Sentido da Vida


Voltando para casa do serviço, enquanto cantarolava um samba antigo e atravessava a Benedito Calixto, fui abordado por uma garota de, no máximo, uns 16, 17 anos, que veio com o papo mais fora de propósito que poderia acontecer:
- Boa noite, senhor! Nós fazemos parte de um coletivo de jovens chamado (não me lembro o nome), e fazemos um trabalho de pesquisa e busca sobre questões relevantes como: de onde viemos, para onde vamos e para que somos. O senhor gostaria de assistir uma apresentação?
Eu fiquei atônito: era a primeira vez na minha vida que, numa terça-feira normal, alguém me aparecia com tantas respostas. Se fosse sexta, eu talvez aceitasse, mas...
- Ô querida, muito obrigado, mas... hoje não vai dar não, eu tenho aula ainda hoje, mas vocês estão sempre por aqui, não é não? – Já tinha reparado há algum tempo nuns painéis e lousas, dispostos na praça de vez em quando, como que numa verdadeira aula em praça pública. Por educação, quis parecer interessado; mesmo com ela me chamando de senhor, coisa que eu detesto.
- Sim, estamos sim. A nossa sede fica bem ali – e apontou o outro lado da praça – o senhor gostaria de agendar uma apresentação? A gente poderia...
- Não, não, querida, agradeço muito, mas não tenho como agendar um compromisso agora. De qualquer forma eu moro logo ali – e apontei a Teodoro Sampaio – e qualquer dia eu passo com mais calma.
Sabia que estava mentindo, mas na hora era o único jeito de me livrar daquela moça com aquela proposta tão generosa. Até simpática ela, coitada, mas não estava com a menor paciência: hoje em dia todo mundo sabe de onde vai, para onde vem, e... essas coisas; quem não sabe, inventa, e já começa a sair por aí pregando pelos quatro cantos o que descobriu. Vide os evangélicos. E eu não sou exceção, tenho lá minhas crenças, só não tenho é tempo pra ficar ouvindo as dos outros.
Como passo todos os dias pela praça, seja pelo almoço, seja pelo trabalho, era de se esperar que eu ainda me encontrasse algumas vezes com aquele  que se revelou um amplo movimento existencial. E não deu outra: quarta, quinta, na sexta não passei por lá, mas na segunda, na terça de novo... deviam ser uns quatro ou cinco jovens empenhados naquela justa causa, e todo dia, quando eu voltava do trabalho, dois deles me abordavam com o mesmo papo... e me chamando de senhor, coisa que eu detesto:
- Boa noite, senhor! Gostaria de saber a resposta para algumas questões relevantes como para onde vamos, de onde viemos e para que somos...?
E como eu sempre soube que ia pra casa, vinha do serviço e estava ali perdendo tempo, na oitava apresentação que me ofereceram, num péssimo dia, eu finalmente perdi a paciência:
- Escuta aqui, meu rapaz, eu passo aqui todo santo dia e vocês me vêm sempre com essa mesma história? Caramba! Já falei que não tenho tempo, que não posso e... e... sabe do quê? Tá vendo aquela igreja ali, do outro lado? Você sabe o que é aquilo? Aquilo ali é a tal da resposta, a Igreja Católica, é pra lá que viemos e... tá vendo? Eu vou à missa todo domingo, e vocês têm a arrogância de vir me dizer pra onde eu vou? E tem mais, eu..
Daí citei o nome de todos os filósofos que já li e que ainda não li, e depois virei as costas e segui meu caminho. Não demorou muito pro arrependimento bater: tinha descarregado a raiva de um dia frustrado numa pessoa que só queria dividir boas novas, dar um sentido àquilo tudo, àquele vazio... talvez até melhorasse meu dia! Sem contar que eu havia mentido feito um louco: nunca fui nem batizado, embora até frequentasse a igreja de tempos em tempos... fazia mais de dois meses que não passava perto de uma missa. Me dizia católico, mas na verdade não passava de um sujeito descrente, cético, perdido. Talvez até fosse ateu.
- Não, isso não!  - me revoltei, ao chegar nesse ponto do raciocínio – pelo menos em Deus eu acredito. Acredito sim.
E pra tirar a prova, resolvi passar na Igreja e assistir a missa das oito, que ainda dava tempo.  Atravessei a praça meio que correndo, subi a escadaria e vislumbrei o espetáculo que vinha pelas portas: a igreja que, apesar de ter néons por fora, era de 1920, muito bem pintada por dentro e tinha missas tão singelas, resolveu adotar novos métodos de conversão, e para tanto tinha contratado uma banda de góspel com guitarra, baixo, bateria e teclado, que cantava “Glória a Deus” num pentacórdio infernal.
Se eu tinha qualquer tipo de fé, foi ali que ela acabou de vez.
Meio desolado, segui chutando pedras até a praça, de novo. Mas lá já não havia ninguém, nem o coletivo pelo Sentido da Vida, nem os policiais, nem a banca de revista, nem os passantes de sempre. Só tinha sobrado mesmo o manco vendedor de zona Azul, e um velho que dormitava no banco do lado oposto ao que eu me sentei, sob a luz amarela do poste. Ouviam-se os carros, meu isqueiro acendendo um cigarro, e só.
- Pois é – suspirei, olhando a cena – só nós sobramos, meus amigos... e de onde viemos? – Sabia que o vendedor de zona azul ficava lá o dia inteiro, e o velho... bem, talvez nem ele soubesse. -  E afinal, de que importa, se acabamos todos aqui, nessa mesma praça? – A conclusão me soou inteligente – Talvez isso já seja alguma coisa: onde estamos? Resposta: na praça. Eu sei que vim da igreja, e antes, da praça, e do trabalho também... e de casa. E de fora, o que será de nós amanhã? Quer dizer... o que será de mim? Sei que vou trabalhar, mas não é só isso. Nessa vida pode acontecer qualquer coisa... e eu também, antes de mais nada, vou acordar, me vestir, arrumar as coisas e tomar café... antes ainda! Vou voltar para casa, tomar um banho e... poxa, comer alguma coisa!
E já estava na hora: a fome me bateu com tudo, não tinha comido nada desde o almoço. A ideia me animou bastante: logo apaguei o cigarro, me levantei, e subi calmamente a Teodoro Sampaio sentido Hospital das Clínicas, pensando no que tinha em casa para comer, ou se ainda precisava parar na padaria.

2 comentários:

  1. Pois é, eles estão meio sumidos ultimamente, veja só, ontem eu fui na Alceu Amoroso Lima e eles não me abordaram na praça... fiquei com saudades, afinal de contas, eu estava indo ali do lado! e tinha vindo da casa do Matias, ali em cma na Teodoro também! hehe. E teve uma vez que um deles saiu de tras de uma banca de jornal Henrique Scheumann, eu tomei um puta susto! e estava muito atrasado para ir a terapia, ver se eu conseguia respostas sobre: De onde vim, para onde vou e a onde estou.
    Querido achei seu texto muito bom, a forma que você tem conseguido colocar suas questões no teu lirismo está cada vez mais gostosa dotada de muito coração e raciocínio... você escreve muito bem pelo cotidiano e pela forma que a cidade passa nos teus olhos!!!

    grandes beijos e abraços!!

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  2. Acho que nunca fui abordada na rua sobre onde vim, para onde vou, como surgi. embora, vez ou outra tenham me falado para ir com deus, que ele ia me acompanhar, que estava olhando por mim. a verdade é que, procuro entender estas frases como: te cuida, vá na sombra, um bom dia para você! não há problema, não, mesmo eu não acreditando. porque eu inventei outras coisas para acreditar.
    gostei muito da sua crônica, mais uma vez! sua escrita flui por demais, é bom de se ler e de se comentar.

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