sexta-feira, 12 de abril de 2013

O sibitinho


            Sabemos o nome de tudo: marcas de desodorante, linhas de ônibus, músicos e bandas, editoras, companhias de seguro categorias de carros – ao passo em que ignoramos, sem vergonha nenhuma, o nome dos bichos e plantas da nossa própria cidade.
            Quem me fez pensar sobre esse dilema, numa conversa de bar sobre passarinhos, deixou transparecer em sua frase ironia e raiva, meio nostálgicas. Mas de minha parte, se não deixo de me entristecer, nem por isso acho menos compreensível: natural só sabermos do que precisamos, e infelizmente é pouco o papel que resta aos passarinhos na vida de São Paulo. E mesmo assim talvez esteja cometendo uma injustiça, afinal, pombo também é passarinho... mas fico pensando, nas esperas nos pontos de ônibus, quando invariavelmente dois ou mais desses pássaros obesos e desengonços ciscam alucinadamente os restos de coisas irreconhecíveis, se talvez também não existam inúmeras espécies e subespécies de ratos com asas, cada uma com sua particularidade, tamanha é proliferação destes seres na capital paulista. Tem uns que nascem com um pé só, outros inflam mais o peito, alguns conseguem viver de plástico...
            Mas quando o ônibus chega é fatal que eu me esqueça desses absurdos. São pombos, e ponto. São árvores, e ponto. Já os pontos de ônibus, bem, entre eles é preciso saber a diferença, sob o risco do atraso que se podia evitar. E assim seguimos a vida: às vezes reparamos em uma ou outra ave que nos parece inusitada, pela plumagem, pelo tamanho, ou pelo canto... quem já se deparou com um urubu, pesado e meditabundo, no alto de algum edifício, guarda certamente a impressão do encontro. Uma vez pude ver, entre amigos, em plena Teodoro Sampaio, um gavião carijó atacando os transeuntes embasbacados.
            Se por curiosidade científica ou por sensibilidade ultrapassada, o fato é que sempre gostei de aves. Cresci e ainda vivo, por alguma felicidade ecológico-filosófica, na esquina de um cemitério, onde se ajuntam o esplendor de uma área verde e o silêncio dos necrotérios: lugar perfeito para passarinhos. Desde pequeno, o voo dos periquitos, verde-verdinhos, sempre em bandos tagarelas, me anunciava, com o sino da igreja do Calvário, as seis horas da tarde. A chegada de outubro nunca se impôs pelos calendários, mas sim pela sanha dos sabiás, que só cantam (e como cantam!) nessa época do ano. Mesmo com a orquestra caótica das construções que pipocam diariamente, a maritaca da rua de trás ainda berra esganiçada, garantindo a audiência dos prédios ao redor. Sem contar os bem-te-vis, os pardaizinhos, as rolinhas, carne de vaca por toda a capital, por onde voam e cagam livremente, provando, dia após dia, aos lordes Byron rastafáris da contemporaneidade, que ninguém precisa ir até a Bahia para “curtir a natureza” – seja lá o que “curtir a natureza” signifique.
            Basta observar, não ser passivo – tarefa difícil. Eu mesmo só comecei a me interessar por estas criaturas maravilhosas há muito pouco tempo, e estou longe de poder dizer, com todo o dandismo das excentricidades conscientes, que sou alguma espécie de ornitólogo amador. Quem me dera... a vida prática me devora pelas pernas, e o tempo é escasso... o jeito que achei, ou melhor, venho achando, é inserir a observação na vida prática. Na USP, por exemplo, se encontram aves incríveis, a que se dá pouca atenção. E sempre que posso me desdobro para encaixar os passarinhos nas atividades triviais: desvio rotas, crio caminhos, ando sem pressa.
            Mas, numa feliz ironia, a rota acabou se invertendo. Durante a Semana Santa, trancafiado em casa, coberto de livros, trabalho e preguiça do mundo, eu me torturava com a revisão de artigos sobre economia política quando um assoviozinho borbulhante flutuou aos meus ouvidos, mais forte do que as serras e as britadeiras da construção de vinte andares. A princípio ignorei, achando ser uma porta rangendo, ou um alarme de carro, mas o agudo e a insistência me levaram, por fim, a me virar, irritadiço, já achando se tratar de alguma nova do vizinho – já bastasse a obra em plena Semana Santa para atrapalhar meu trabalho. Mas ao me deparar com o delinquente, vi que não podia discutir: pululando entre os borrões de rosa e verde da primavera da varanda, sobre a pequenina pitangueira envasada, uma criaturinha amarela e esvoaçante pululava entre galho e grade, ora bebericando nas flores brancas e rosadas, ora virando seu bico minúsculo e triangular para mim no que parecia, pelos meus parcos conhecimentos na língua dos piados, uma bronca furiosa.
            Achei engraçado, aquela coisinha com tanto despeito e impostura. Acabei deixando o trabalho por alguns instantes e fui ter com ela, no sofá, junto à varanda, sem muito cuidado, pouco ligando se o bichinho ia voar ou ia bancar a aproximação. E não é que bancou? Ainda estremeceu um pouco, ameaçou voar embora, mas acabou firme, passarinhando com ainda maior determinação, me encarando como se encara um déspota a quem se odeia, ou um professor que nos reprova.
            Até me assustei. Bicho valente! Aposto que se chegasse mais perto, me atacava, e mais, levava a melhor. Mas preferi fazer gesto de paz e, indo até a cozinha, separei um mamão velho num pires, e levei para ele, num gesto de boa fé. Me olhou desconfiado, meio por cima, mas depois de alguns instantes, convencido da vitória, resolveu aceitar a comida, por magnanimidade. Depois de comer todo o mamão, assoviou um muxoxo agradecido e foi embora, para o cemitério, provavelmente.
            Achei o causo divertido, mas dali a dois dias já tinha me esquecido. Quando, mais uma vez, quebrava a cabeça na revisão de um texto, ainda de pijamas e com uma xícara de café, surgiu novamente o camaradinha, na neblina luminosa de manhã bem cedo. Desta vez nos cumprimentamos com cordialidade, e admito que fiquei muito contente, em meio à pasmaceira dos artigos de economia política, em ver que o felpudinho amarelo não pecava pela ingratidão. Ouvi um pouco a sua ladainha piada, e fui buscar mais mamão. Como minha vó tomasse café, aproveitei...
            - Vó, vem cá, me diz uma coisa.
            A senhora se levantou e me acompanhou até a sala, sem muita paciência. Mas se enterneceu logo que viu o passarinho irreverente mordiscando o meio mamão.
            - Que bonitinho, Pedro...
            - É, não é? Sabe como chama? – perguntei, naquela certeza infantil de que nossos avós sabem tudo sobre as coisas que achamos bonitas, e que temos por mortas, já que o mundo errado em que nascemos há muito já as dispensava.
- Ih, meu filho... – ariscou a dúvida, mas seu olhar aquoso se iluminou, e, num sorriso mineiro e debochado, exclamou. – é um sibitinho!
- Um o quê?
- Um sibitinho, uai... – e se riu, voltando pra tomar café.
Então o passarinho amarelo, de máscara preta e branca, com o cocuruto vermelhinho, que nos visitava quase todo dia, era um sibitinho! Todo dia pela manhã tinha o seu mamão, proseava alguns minutos de assovio, dava uma cagadinha e depois ia embora para o cemitério, cuja vista agora um prédio tapa. E eu passei a reparar na quantidade enorme de sibitinhos em São Paulo: na esquina de casa, no Hospital das Clínicas, na USP, no Anhangabaú, em Santana... ave comum, esse sibitinho!
Nas perambulações pela Cidade Universitária, se havia aves mais bonitas, vistosas, delgadas e exuberantes, de qualquer maneira a que mais me alegrava era o tal do sibitinho, com seu piado florido, igual ao daqueles apitos d’água pra imitar passarinho. Sempre que estava entre amigos e aparecia um, não perdia a oportunidade:
- Olha, olha só!
- O quê?
- Aquele passarinho ali, ó?
- Hum, que é que tem?
- Sabe como chama?
- Eu? Não!
- É um sibitinho.
- Um o quê?!
E eu explicava, paciente, para os mais ignorantes, e com gigantesca alegria. É que essa coisa de pássaros acaba tornando a vida em São Paulo menos insuportável, mais humana, até mais lírica, se posso dizer assim. Uma ave é um animal fortuito: voa, canta, caga, e dorme cedo, às vezes brinca, pula-pulando pelos galhos de alguma árvore, e faz visitas irreverentes quando menos se espera, e mais se precisa. No que se incluem até os pombos, por mais sujos e bestas que eles sejam. No cotidiano maquinal da cidade, uma ave é uma metáfora para o direito à respiração, ao inútil, quando apreciada vulgarmente, em momentos de superfície aparentemente vazia.
Acabei levando a coisa tão a sério que, passeando os olhos num sebo, comprei um livro, não tão velho, cheio de ilustrações, com o nome Fauna silvestre – os animais da metrópole paulistana, ou qualquer coisa assim. Data de alguns anos atrás, e não sei quantas das espécies descritas no livro já não foram extintas, ou desabrigadas de suas casas, dada a velocidade sanguinária das transformações do espaço urbano. Mas independente disso: o catálogo de aves é impressionante. Se soubéssemos da ínfima parte dos passarinhos que vivem em São Paulo! Coisa inimaginável. Alguns, mais raros, habitam áreas específicas, o entorno da represa, o parque Tietê, a Água Branca... mas outros podem ser vistos quase em qualquer lugar. Caso do gavião carijó, por exemplo. Algumas corujas, pica-paus, garças, e...
- Epa! – sustei, por um instante, ao ver um retrato conhecido
Tinha o mesmo amarelo, a mesma máscara branca, o vermelhinho na cabeça... fiquei cismado, será que... como já era tarde, fui dormir, mas determinado. No dia seguinte mal acordei e fui tirar a teima: às nove horas, como de costume, o sibitinho apareceu, atrás do seu mamão. Peguei logo o livro, abri na página marcada e tirei a prova real: olhei uma, duas, três vezes. Sibitinho coisa nenhuma! Era um bentevizinho-penacho-vermelho.
- Ô vó! Vem cá!
- Pois não, meu filho.
- A senhora não disse que ele era um sibitinho? Olha só...
Mostrei o livro aberto para ela, com o desenho do bichinho empoleirado. Mas ela caiu na gargalhada.
- Eu estava brincando, meu filho! Você levou a sério, foi?
- Ué, levei...
- Eu lá sei o nome do passarinho! Sibitinho era como seu avô chamava tudo os passarinhos que ele não conhecia o nome... seu avô é um debochado!
Enxerguei o velho alagoano apontando pr’um pássaro qualquer e chamando de sibitinho, assim como, quando eu pequeno, dizia pr’eu comer formiga que fazia bem pra vista... e caí no riso, também. Como o bichinho ainda estivesse na varanda, aproveitei para lhe passar uma pequena ensaboada: ora seu salafrário... nem pra me dizer o seu nome de verdade! Que tipo de bem-te-vi que não grita a frase do nome! Isso já era malcaratismo...
O bichinho me olhou perplexo, resmungou um muxoxo assoviado e levantou voo, para o mesmo cemitério. E depois parou de aparecer. Achei a coincidência absurda, e não queria terminar esse texto com a ideia de que o passarinho teria se ofendido: depois que fui descobrir, o sibitinho vinha mais era por causa da primavera florida. Quando despetalou, não tinha mais razão de visita.
- Mas e o mamão? – perguntei, chateado, para minha avó.
- O mamão ele comia por delicadeza – e sorriu mineiramente.

Um comentário:

  1. ótimo pedrinho, muito bom mesmo. Meio rubem bragano no melhor da palavra. delicado e sentido. parabéns.


    ps. lod byron rastafari da contemporaneidade é a puta que pariu!

    beijos

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