domingo, 3 de março de 2013

Para melhor atendê-los


            “Estamos em reforma para melhor atendê-los”. Difícil topar com uma placa dessas no lugar aonde íamos, sem qualquer suspeita da inconformidade do mundo com os nossos planos. Se se trata de uma urgência, é o caso de praguejar contra os céus ou chutar um cachorro. Mas não era, felizmente, sem que por isso eu deixasse de ficar um tanto aflito, e até desnorteado com a cortina de aço baixada em pleno horário comercial, sem maiores explicações além da tal da placa. Que aliás nem placa era, mas uma simples folha branca, presa mal e porcamente numa fita crepe já gasta, anunciando, numa impressão desbotada, que “Estamos em reforma para melhor atendê-lo”.
         Não fosse a cal polvilhada sobre o chão, ou dois pedreiros encurvados sobre as suas marmitas, e a frase pretensamente simpática poderia soar até mesmo cínica. Estarem em reforma não só não me atendia melhor, como estragava o meu humor e complicava o meu dia: agora ia ter de buscar outra papelaria que trabalhasse com aquele tipo de carga de caneta, coisa difícil. E de fora, pelo que eu lembrava, não tinha nada de errado com a Papelaria Bragança: uma papelaria como qualquer outra. Talvez uma rachadura na parede, o soalho um pouco gasto... nada que estragasse a simples venda de material de escritório. Mas existem invenções de moda, fazer o quê. O jeito era sair Teodoro Sampaio afora atrás de outra papelaria, contrariando, dolorosamente, o costume rígido e prazeroso de resolver aquele problema de uma determinada maneira, única, imutável, dispensando-se da experiência do tempo, como se cada impasse não tivesse mais do que uma única solução na sua existência, predeterminada, precisa, como se o atravessar a vida se tratasse simplesmente de ir colhendo as respostas que aparecessem, conservando-as no frasco dos costumes e fazendo do mesmo jeito até que chegasse o dia de não fazer mais nada.
         Mas tal como a vida é um emaranhado ilógico de soluções e erros desquitados, o emaranhado comercial da Teodoro às 3 da tarde não tinha uma única papelaria que vendesse a carga para caneta que eu precisava. Havia outras, para outras canetas à venda, de diversas formas, mais anatômicas, charmosas, atrativas, de outras cores e cargas, muito melhores que a minha. E, no desespero da saída mais prática, cheguei a cogitar a troca – mas bastou um olhar para o bolso da camisa azul, onde pendia o desbotado e gasto cilindro de tinta, para que me sentisse um canalha por tal pensamento, e saísse da loja correndo. Absurdo, absurdo completo trocá-la: era amiga fiel e caríssima, por razões alheias ao preço, e vinha comigo nos últimos anos pelas linhas tortas e poeticamente pobres que tracei São Paulo afora, desde que a ganhei de meu tio, num aniversário triste e sem balões. Não, não a trocaria nunca: haveria de respirar fundo, andar com uma Bic temporariamente e, até que a reforma da papelaria Bragança terminasse, para assim “melhor me atender”, também eu estaria em reforma, fechado e indisponível, sem explicações além de um papel lacônico. Ainda que, talvez, nunca chegasse a atender ninguém.
         É que, nos últimos meses, acabaram-se os trabalhos, que amainavam o sufoco da volta ao Brasil; os serviços temporários desapareceram; e certas necessidades, tão súbitas quanto ridículas, me fizeram gastar mais do que se deveria em tais situações, em que a instabilidade é iminente e as perspectivas não se deixam vislumbrar. As saídas com que sempre contei para as horas difíceis, como portos distantes ao alcance da mão, na hora do aperto mostraram sua face de farsas patéticas, de vidas que nunca terei, por incapacidade ou nojo. E, não havendo nada de novo sob o sol, o costume, idiota, insistia em bater nas mesmas velhas teclas, nas mesmas portas fechadas nas ruas aparentemente vivas. E batia com raiva, com obstinação doentia, até que o erro esgotasse finalmente todas as suas possibilidades e eu pudesse retornar, animal derrotado, para a casa que já não era minha.
         Nisso veio o ano-novo, quando a TV e a champanhe profetizam a renovação dos tempos, a purificação dos crimes, a inauguração do que é de todos; a cornucópia pelo calendário, enfim. Mas depois da queima de fogos, nas minhas tardes só via os mesmos gestos e propósitos, maquinalmente disseminados, repetidos nos velhos lugares com, no máximo, uma luminosidade nova, a de veraneio paulista. Como sempre, no desespero, me apeguei em vão aos deuses do cinema: o amor, que é coisa pífia; e a viagem, que é redundante.
         Voltei para a solidão de São Paulo na obstinação da mudança, e a primeira coisa que notei, arrumando as coisas para mais outro infindável ano letivo, foi que a carga da caneta de estimação, a única com que escrevo, por neurose pessoal, tinha acabado. E já devia fazer tempo – sinal do abandono em que deixei a literatura nos tempos de crise, talvez por sua patente inutilidade, excessivo desgaste psicológico, esterilidade absoluta. Mas numa vida em que estas formas céticas de preguiça já imperavam, soberanas, há pelo menos um triênio, com um Pão e Circo feito de subversão bem comportada, de boemia confortável, de indignação resmungada, de revolta de cartilha, numa conjuntura tal ao menos a honestidade de se reconhecer inútil, cansado e impotente já assume a sua grandeza ao se voltar contra si mesma, gato acuado, praguejando contra o universo que a tolhe com censuras de mil tipos, inimigas e principalmente amigas, abertas e claramente veladas, e sempre num cinismo completo.
         Determinado, saí para comprar a tal da carga, e dei com a papelaria fechada, com o chão coberto de cal e os dois pedreiros almoçando, como descrito. E depois a busca por novas lojas, as novas canetas, nada que servisse às minhas velhas, mas puras determinações. Gostaria de acabar esta crônica encontrando a carga em outra papelaria, depois, com alguma paciência, ou com a velha reabrindo, anunciando que pretendo ir lá amanhã. Mas as lojas novas são todas absurdas e a reforma segue sua marcha, sem previsão de término, e dificilmente acharei o que busco em algum lugar que desconheço. O que me resta é esperar, num trabalho surdo, e anunciar, como a papelaria, a minha própria e indispensável reforma, feita a papel e caneta Bic, para talvez, quem sabe, melhor atendê-los, irmãos no exílio da vida, ainda que não com material de escritório, mas com presença digna. Não é difícil reparar num imóvel que apodrece: o teto abre, as paredes mofam, o chão se rompe... e por fim desaba. Mas vivemos entre mortos indiferentemente, sem perceber nem mesmo o verme, gordo e feliz, que rasteja em seus sorrisos de bom-dia.

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