segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Manhã de natal


            Acordo... Infelizmente acordo. E como se não bastasse tudo o de sempre, acordo com o som insistente de uma serra elétrica, de uma britadeira, não sei ao certo – o estado vegetal a que minha consciência se resume não permite ainda distinções de ordem substancial. Mas o barulho já é conhecido: a obra da rua de trás... ainda que alguma coisa me diga que hoje, especialmente hoje, religiosamente hoje, ela não devesse cantar, junto com as maritacas... enfim, estão trabalhando. Tateio um copo d’água, estico os ossos: inevitável o mergulho na “vida de fato”.
         Na sala um objeto incógnito vem me lembrar de certas razões: é vermelho, bem vermelho, tem dois olhos esbugalhados, usa um gorro, barbudo... é até bem fofinho, rechonchudinho, mas, por trás de aparente simpatia, me observa feito uma esfinge, esperando para me engolir antes que eu consiga engolir o meu café. Decifra-me, hô hô hô, ou... esfrego os olhos ainda perplexo, e coço instintivamente o saco: nada me vem à mente, nada de claro ou de lógico, pelo menos. Só um certo rebuliço estranho, antigo como que abandonado, tenta dar cambalhotas no meu peito e sair pulando. Como não encontra respaldo ou disposição na carapaça barbada que o carrega, se cala, e passa a procurar maquinalmente uma garrafa térmica e um calendário.
         Café servido, olhos na tábua geométrica dos dias: 24 de dezembro... e... diabo, o mundo ainda não acabou. Mas obviamente não é só isso. Isso, aliás, é o de menos. A explicação completa se esboça com a presença de um homem estranho dormindo no corredor, com a programação cacete da Rádio Cultura e com a azáfama nada costumeira de uma senhora de quase oitenta anos. Mais uma geladeira cheia de frutas multicores, carnes com molho, doces em calda, sucos e bebidas espumantes... é claro: é natal. Já sabia: me esqueci de propósito. Lembrar é razão pra crise.
         Mas não adianta: a contenção é rasgada pela rápida visão de uma senhora se esforçando, em cada ruga, músculo e cabelo branco, para enfeitar uma sala morta com quinquilharias que só lhe realçam a morbidez – ainda que o quadro completo, aos olhos de quem mal acordou, seja apenas mais outro império do absurdo. A visão contrasta com a de outros dias, e mais uma vez aquele mesmo rebuliço sai quicando por todos os lados do meu peito, com mais força, mesmo raiva, para logo se acalmar deixando, só, uma ardência como de soluço.
         Desisto. Dou um gole no café, tentando inutilmente pensar em outra coisa. É que não entendo nada... ou melhor, entendo, mas... tudo é estranho. Saber do natal, lógico que eu sabia, como todos... mas nem por isso sua chegada deixou de causar alguma surpresa. A surpresa do contraste. Há tantos anos e estaria eu mesmo cumprindo o papel de alma involuntária do evento, infernizando a minha avó, pendurando uma a uma cada bola vermelha e cintilante sobre os ramos das plantas, com os olhos ainda maiores e mais cintilantes, vidrados ao longo da noite em cadeias de luzinhas pisca-pisca e embrulhos lustrosos de presentes incógnitos. Na ceia, seria o primeiro a sentar, e, no que dependesse de mim, o último a sair.
         E isso sem taxar de cafonice, de consumismo, de capitalismo, de conformismo, etc.: era criança e ponto, bolas. Me lembro dos meus natais em Recife: até daquelas luzes horríveis, com que se tem o mal gosto de enfeitar o pobre do Capibaribe todo santo fim de ano, eu gostava doidamente. O que dizer do resto, então, que era a melhor parte? A família, ideia abstrata, reunida sob um único teto, com uma mesa cheia, numa unidade de espírito...
         - O sonho da propaganda de Panettone! – cuspo para o lado, quase engasgando com o café sem açúcar. Disso, hoje em dia, nada resta: em Recife, meu avô passa por maus bocados, minha mãe acordou e fugiu intencionalmente, minha tia mora no Rio, e com ela meu primo pequeno, meu tio ronca como um mamute, espremido no corredor, enquanto minha vó sustenta sozinha uma frágil ilusão natalina, espalhando pequenos enfeites pintados – trenozinhos, pequenas árvores, animais de pano – sobre móveis abarrotados de pastas, papéis e outros artefatos da vida útil e prosaica. E ela não só a sustenta como, por convicção ou desespero, dispõe dela para tiranizar: acabando de arrumar a sala, invade, sem mais nem menos, a cozinha, onde passa arbitrariamente a remanejar objetos e móveis sem sequer me consultar. Enquanto dava um gole do café, meu prato, com um sanduíche que nem consegui acabar de comer, foi subitamente rebocado para a pia, sendo o lanche despejado na lixeira. Foi eu querer reclamar para que também a xícara fosse dispensada, seguida do copo de suco, da toalha da mesa e enfim por mim mesmo, dispensado tirânica e gentilmente com um empurrãozinho e palavras de avó. Quis me revoltar, mas faltaram-me pretextos – aquele dia, suspirei, era dela. Humilhado e confuso, fugi para a sala.
         Mas lá agora quem ocupava era meu tio, lendo o jornal, no lugar em que costumo me sentar para ler. No fundo gostaria de ouvir alguma música, qualquer coisa de levemente alegre ou melancólico, que me desse forças para lidar com o tempo e com a passagem de outro ano. Mas foi eu me aproximar da vitrola para que o homem, por detrás dos óculos, soltasse politicamente um olhar de reprovação, aprendido nos departamentos da capital, um olhar daqueles que bastam para demitir um gabinete e cancelar páscoa e natal.
         Sem mais, retirei-me para o meu quarto – um depósito de figurinos onde estendo um colchão para dormir. Belo natal! Passaria o dia inteiro deitado, olhando para o teto e pensando na vida. Daquele colchão velho eu confraternizaria, só de raiva, com o universo todo. Cristo deve ter feito coisas desse tipo... mas acho que ele preferia dormir sem colchão. Cristo tinha o mundo inteiro, ou pelo menos todo o Oriente Próximo, e aposto que não diferenciava os dias. Aliás, Cristo talvez nem existisse... mas então o que estamos fazendo? Eu sei: nada. Comemos feito uns porcos e encontramos gente que já nem sabemos se nos amam mesmo, ou só acreditam nos amar. E nós também, é claro, fazemos o belo e hipócrita papel de familiares, pelo menos enquanto ganhamos presentes e não se metem na nossa vida. Mas não tenho a pretensão de dar lições a todo o mundo pretensamente cristão. Vou mais é cuidar da minha.
         E, sem paciência, vesti uma calça e saí sorrateiro pelos fundos, sem que minha vó percebesse a parte de seu natal que ia sendo frustrada, por uma alma rebelde à Santa Ceia. Saí de tão mau jeito e tão às pressas que esqueci de me calçar: no elevador reparei, tanto faz, é natal. Não é a primeira vez que ando descalço por aí. E só ia dar uma volta mesmo, aproveitar as ruas fantasmas, esvaziadas pela confraternização universal de particulares, e o tal do espírito natalino, que deixa a alma mais leve. Talvez, quem sabe, fizesse um irmão, fruto da ocasião de outra data quimérica.

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