terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A idade do cão


         A quem quer que se perguntasse na rua – ao dono do bar, ao sujeito da banca, até ao carroceiro – sobre o seu Borba, se receberia invariavelmente o mesmo sorriso de afeto. Seu Manuel Borba é figura querida, daquelas a quem se quer bem não porque tenha qualquer coisa de especial ou de excepcionalmente cativante, mas simplesmente por ser quem é, e por ser há tanto tempo. Com setenta anos, quarenta só daquela mesma freguesia, o senhor curvado, de olhos claros, elegante à moda antiga, tinha o dom da simpatia. Bastava passar em frente à alguma mesa ou algum comércio, e todos gritavam: “boa-tarde, seu Borba!” e “Boa-tarde, Totonho”
         É que quem não dissesse boa-tarde também ao Totonho caía logo no desafeto do bom velho. O que podia ser estranho para a gente nova na praça: não se via um sem o outro. Pena era que o segundo não fosse assim tão agradável. Totonho era o velho vira-lata do senhorzinho, pelo bom, outrora marrom e branco, mas já mais grisalhos do que o dono, focinho comprido e uns olhos desconfiados de todos que cumprimentavam aquele seu Deus e amigo único, que era o seu Borba. Se não falassem com ele, se punha a latir, ciumento. E mesmo se falassem: o cachorro tinha manias mineiras, nunca aceitava carinhos, ou aceitava só por condescendência, e isso quando tinha comida na jogada.
         Mas para o dono era mais meigo e engraçadinho que filhote, e ainda com toda a sabença e a elegância de um cachorro velho. Na cadeira cativa de seu Borba, quase todas as tardes, seu mútuo carinho e entendimento era de dar inveja aos irmãos e namorados. Quando se sentava, com um copo de café doce, o cachorro pouco a pouco se aninhava junto aos pés do dono, e este, entendendo o sinal, largava de cara os jornais para levantar o bichinho ao colo, e lhe falar mansamente, cheio de maneiras, expressões muito sérias, considerações. E o bicho reagia de tal forma que aquele monólogo com a criatura supostamente muda não poderia ser chamado de outra coisa senão de diálogo. De fato, era como se o cão respondesse. E era o único que tinha acesso às histórias e mirabolações do antigo funcionário do necrotério. Qualquer um que tentasse puxar assunto com o velho – como eu muitas vezes tentei, atrás das suas raras narrativas de velho servidor funerário – não levaria mais que alguns muxoxos, expressões cordiais e o mesmo e irresistível sorriso. Mas com o cachorro era tão falante, que às vezes, no mais profundo silêncio de rua paulistana, parecia partilhar cada intenso e remoto detalhe das suas vivências mais obscuras.
         Arranjara o bicho depois da morte da esposa, quarenta anos de casados. O filho ainda passou algum tempo em sua casa, para dar consolo e arranjar a vida nova, do seu fim de vida. Mas não se davam muito, nunca se deram, e logo seu Borba ficou reduzido à mais terrível das solidões. Como não quisesse sentar e esperar a morte, ele que passou a vida inteira trabalhando com cemitérios, tratou logo de adotar um bichinho. Filhote, Totonho ainda era simpático, mas foi amargando com o tempo, talvez pela vida de aposentado. Depois de quase quinze anos, sua rabugice acabou virando aquela manha penosa de cachorro velho, quase cego, meio manco, que embora tenha sempre sido um bruto com todo mundo acaba angariando simpatia pelo seu estado. Seu Borba não se dobrava: seguia levando o bicho aonde quer que fosse, e, quando até andar devagar se lhe tornou penoso, passou a carregá-lo no colo, como, aliás, já fazia de vez em quando.
         Mas ainda esses dias o encontrei, na banca, indo comprar cigarro, sem o cachorro. E me espantei.
         - Tarde, seu Borba! Mas... cadê o Totonho?
         O velho levantou os olhos tristes da gazeta e sorriu do mesmo jeito, feliz pelo cuidado geral pelo cachorro, e arrasado, certamente, pela ausência daquele seu filho e irmão.
         - Ô, Joaquim... o Totonho, hum, sabe, ficou lá em casa mesmo hoje... não está muito bonzinho, sabe? – e nisso torcia, aflito, a barra do paletó, como se afagasse o bicho ausente.  – Passou a noite inteirinha vomitando... ehn, tive de cuidar dele! Hoje ele vai ficar descansando. Amanhã já está bom. Chamei um veterinário, vai ficar bonzinho sim, bem rápido.
         Condoído na alma, por ver o que era um cão para um senhor de gravata verde e colete azul, tentei animá-lo, chamei para ir tomarmos um café, discutir os jornais. Mas ele, muito polido, recusou, sob o pretexto de ter de ir comprar alguns remédios. E nos despedimos.
         Alguns dias depois o encontrei mais uma vez, já ansioso por novas notícias sobre o sabujo Totonho, por quem passei a me preocupar. Mas a expressão do senhor, já longe do tradicional sorriso de inconteste cortesia, denunciava más notícias. Melhor era nem ter tocado no assunto, pensei, mas já era tarde: o veterinário tinha ido, e, bem, mesmo tendo medicado e feito alguns exames, agora o Totonho tinha dado para não comer.
         - Nem com a carninha que eu fazia pra ele quando ficava de manha – lamentou-se o velho, voz mais trêmula que nunca, marejando os olhos.
         Lembrei-me de passagem semelhante na morte de meu gato e me calei. Ainda fiz a mesma proposta de tomarmos um café, mas ele agradeceu e pretextou um compromisso.
         Quando deu uma semana que ninguém mais via o velho Borba, a rua inteira, ou pelo menos os habitués do bar começamos a suspeitar de uma tragédia. Que o cachorro ia expirar em pouco tempo, ninguém duvidava, mas o receio maior era o pobre do Borba, que podia não aguentar a violência desse tranco. Em caravana, eu, o Márcio, o Tobias e o Pelego resolvemos bater na sua casa pra pelo menos ver se precisava de alguma coisa. A luz – dava pra ver da janela – estava acesa, mas duas três batidas e ninguém respondeu .  Arriscamos a porta mesmo assim, e não estava trancada. Antes estivesse: a morbidez, que nos aguardava, seria assim guardada para Deus e pra si mesma.
         Num canto, sob a janela, no sofá, um Borba muito mais velho do que já era murmurava desacordado umas coisas desconexas, olhos vermelhos como brasas, de dar dó. E o pior: no centro da sala um altarzinho, muito caprichoso em se tratando de improviso, cercado de velinhas até de aniversário, abrigava um retrato do bichinho ainda filhote, junto de uma bola colorida. Ainda tinha uma coleira, um sininho, um tufo de pelos varridos, toda a dispersa reminiscência que o pobre Borba, desesperado e só, conseguira juntar de seu mais novo e falecido amigo.
         Quando nos viu, tentou desabrochar o velho sorriso cortês, murmurando.
         - Que bom que vocês... é a... é a missa... de sétimo-dia...
         E desmontou-se num choro angustiado. Meio perdidos, tentamos atinar o que se passava: no quintal, solene, se erguia agora um túmulo, feito em magistral improviso pelo próprio Borba, nesta semana de tortura. A cozinha abandonada, sem absolutamente nada, denunciava que a greve de fome do falecido cão tinha sido agora adotada pelo dono.
         - Márcio! – gritou o Tobias, se arrependendo depois por se lembrar de estar numa missa, falando baixinho – vai lá buscar um lanche pro seu Borba, vai! O velho está parece que não come!
         E lá fomos nós começar um mutirão de ajuda pro coitado. Só nessa noite, tivemos de alimentá-lo – contra a sua vontade  –, vesti-lo, niná-lo e arrumar a casa. O filho, um desnaturado, nem quis saber, quando conseguimos falar com ele, dizendo que cachorro não é motivo pra chororô, que o pai já era adulto, etc. Quem acabou cuidando dele fomos nós mesmos, revezando alguns serviços, fazendo turnos e rachando despesas. A coisa era tão grave que até tivemos medo de ele fazer uma besteira – era preciso estar de olho. Mas, depois do primeiro mês, de depressão profunda, a coisa foi parecendo ser solucionável. Admitindo a morte, foi se tornando racional, e até apático. Já não precisávamos estar lá o tempo todo, fazendo compras e dando comida, e com mais algum tempo o seu Borba, quarenta anos mais velho no andar e na aparência, voltou finalmente a seus passeios pela rua. Mas aquele sorriso, fonte de nosso afeto, tinha se perdido, junto ao cão, para a eternidade.

         Depois de um tempo, falando justamente sobre a solidão que ele devia viver, agora, sem o cachorro, já sem esposa e longe do filho, tivemos uma ideia brilhante, para coroar nossos esforços pra com aquele homem.
         - A gente devia era comprar um bicho novo pra ele... – sugeriu um Tobias já meio embriagado.
         A ideia foi imediatamente aplaudida. Mas que bicho? Uns queriam outro cachorro – rebati com veemência, alegando cinismo. Substituir o Totonho? O Márcio falou em gato, mas gato é bicho chato, que não liga pro dono. A conclusão unânime acabou sendo um papagaio, até porque o irmão do Pelego tinha um que a esposa queria porque queria que ele desse fim. Daí resolveu-se: é bicho bonito, parado, e que fala. Melhor que cachorro.
         Pouco tempo depois entrava o seu Borba, elegante como sempre, triste, passos lerdos. Cumprimentou a todos e se sentou no seu lugar, com seus jornais. Aproveitando a sua presença, fomos lá fazer consulta.
         - O seu Borba... bom você ter chegado...
         O velho levantou os olhos com melancólica simpatia.
         - Porque a gente aqui, seu Borba, é... a gente tava pensando, que desde que o... o Totonho morreu, sabe?, você não tem mais bicho...
         - Ai a gente queria te dar um outro!
         - Bicho, é? Hum... que bicho? - A simpatia do rosto se convertera em pura interrogação.
         - Um papagaio, seu Borba! – exclamei, triunfante. – É bonito, não tem que passear, e fala. O senhor gosta tanto de falar com bicho...
         Um segundo se passou de completo silêncio, como se o cadáver de Totonho se enroscasse por entre as pernas de seu Borba, lhe lembrando alguma coisa. Então, levantando novamente os olhos para nós, com muita calma, abriu como num milagre aquele mesmo sorriso, tão puro e cordial, que sempre nos cativara: mas, com o canto esquerdo levemente mais puxado, deformando a face inteira com galhofa, formava uma expressão de escancarado cinismo.
         - Bicho...? dá trabalho... e morre cedo. Só não é pior que gente.

         E foi a única história que arranquei de seu Borba sobre os seus tempos de funerária.

3 comentários:

  1. Eu também pensei num papagaio! ha ha!
    Quando eu morava na Pompéia, dormia com o papagaio do seu Barauna (meu vizinho) tagarelando estridente noite à fora. O papagaio era estridente e mordia o primeiro dedo que chegasse perto da gaiola, enquanto que o seu Barauna era como um vô para mim, uma pessoa doce e cheio de histórias mirabolantes, um rosto suave, cheio de compaixão, que deixou muita saudade depois que faleceu. Um Beijo! (:

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  2. Joaquim Terêncio já ganhou minha simpatia! (:

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  3. Gostei muito, e gostei também de começar a enxergar uma transição de suas crônicas para uma coisa mais conto. Menos individual, se é que me entende. Parabéns! Gostei muito, e é claro, me indentifiquei lembrando de coisas pessoas que passaram pela minha vida, entre velho e cães.

    Beijos do amigo!

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