segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Matutino, por ocasião de um retorno.


     Acordo às 8, 8 e meia da manhã, com o mesmo infernal e insistente barulho de serras, martelos e gritos da obra da rua de trás. E, como se verifica pela janela, devido ao tamanho ainda insipiente do edifício, que foi planejado para ter os seus 20 andares, é só a primeira de inúmeras manhãs de barulho que ainda virão por este mês de janeiro, tempo que me resta na capital paulista, na nação brasileira, no continente americano. O que há algumas semanas era um hábito corriqueiro, agora tornou-se objeto de reflexão e, vejam só, até de literatura de baixa qualidade, de reflexões elegíacas, enfim.
         Há dois dias atrás ainda acordava com o cacarejar de inúmeros e desajustados galos, que se sucediam em ondas esporádicas de cacarejos desde as 4 e meia da madrugada até as sete horas da noite. É fato conhecido a independência dos arrabaldes interioranos dos relógios das grandes capitais, fato este que se desdobra até em seus galos. Mas aqui, em Pinheiros, a obra da rua de trás é fatal em sua pontualidade, talvez maquinada pelo chefe de obras, por sua vez maquinado pelo engenheiro chefe, que também (é claro) é alvo de maquinações: do presidente da empreiteira. O último, embora seja o que aparentemente mais manda nessa terrível cadeia que coordena meu  despertar diário, talvez seja o mais maquinado de todos, pois obedece às grandes operações e transações do capital financeiro globalizado, à especulação imobiliária, às bolsas de valores de 5 continentes... pode ter seus gestos e decisões decididos por um chinês de Pequim, com a desvantagem de não sabê-lo e, portanto, não ter como pelo menos xingá-lo, como eu mesmo xingo o mestre de obras todo dia às oito e meia da manhã por me acordar com o barulho da serra e seus gritos.
         Galos ou serras, de que me importa? Quem sabe tudo não é coordenado em grandes esferas, num ritmo só descoberto pelo poeta russo Velimir Khliebnikov? Mas deixemos os galos para lá da Bahia: a cidade ruge suas metafóricas engrenagens além dos vidros de minha varanda, e vejo como cada ser humano se concatena com esse ritmo internacional das ruas de meu bairro, a começar pela obra já descrita, que me despertou e me obrigou a escrever. Ora, tanto melhor! Hoje não xingo o mestre de obras, antes o abençoo. São Paulo, ah, ponto de fumo na imensidão verde dos idealistas do Brasil! Verdadeira pátria dos elevadores, da internet sem fio generalizada, das pieguices natalinas da av. Paulista! Poderia dizer também da Cracolândia, mas parece que dissiparam a ocupação do Lgo. Sagrado Coração de Jesus, não sei, confesso ter mantido distância de todos os jornais nesta última semana. Mas no momento não quero saber de jornais, quero mais é saber de minha janela, por onde um vento frio (consideremos janeiro e os idealistas do Brasil) vem beijar minhas cobertas e um céu cinza, cinza de doer, salpicado aqui e ali de branco e de preto, se espraia por cada prédio e por cada alma passante, como um mar recortado para o plano celeste e urbano.
         Isso agora às 10 horas da manhã. E ao meio-dia, como será? Em São Paulo nunca existe a plena certeza de que, dentro de uma hora, ou mesmo dentro de dez ou quinze minutos, a cidade subsistirá da mesma forma, de que sua matéria ainda será concreta, de que seus carros e vias ainda circularão e de que  suas cores serão as mesmas. Falo das medidas do tempo, mas aqui ainda se pode falar com plena certeza (ao menos sobre isso) de que à esta medida soma-se outra, a medida do espaço. Pessoalmente gosto de computá-la em esquinas, por exemplo: dobre-se um número tal de esquinas da rua 13 de Maio, no Bixiga, bairro folcloricamente paulistano, e encontrar-se-á na av. São Luís, a avenida mais carioca de todo o Brasil. Eis a transformação!
         São Paulo, como entender suas transações econômico-espaciais neste crivo de afetividade matinal? O barulho da obra e o burbúrio dos carros prossegue indiferente às minhas elocubrações, como um rio ou uma pedra, que só obedece a si e àquele velho ritmo das esferas etc. etc. E sei que, dentro de tantos meses, quando eu já não estiver mais neste hemisfério ou mesmo neste planisfério, o prédio prosseguirá sua marcha lenta e constante, todo dia às oito e meia da manhã, até atingir a meta suprema de seus vinte andares... para depois morrer. Assim também são os automóveis, em relação aos seus compromissos inadiáveis: chegar, e morrer. Minha escuta é somente um momento, aliás nada indispensável, de sua existência urbana nas transações internacionais de meu bairro.
         Sinto que fico para trás... todos chegam, e eu? Eu escrevo como chegam, aonde chegam... é fácil escrever estirado numa cama, mesmo quando uma obra insiste em martelar sua consciência. Mas também preciso chegar a algum lugar, me conectar às esferas internacionais de Pequim, de Londres, de Moscou... ao menos da Teodoro Sampaio.
 É melhor que eu me vista rápido, e pegue um ônibus pra qualquer lugar.

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