quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Abandono

         Depois de vários recados, encontros pretensiosamente ocasionais (sabia por onde andava, e quando), e alguma conversa mole, finalmente consegui marcar um encontro com a moça que, numa depressiva mesa de bar domingueira, tive a sorte de conhecer através de um amigo. É verdade que ele não ficou lá muito contente com meus galanteios, e com a bola que ela, supus, me deu no dia em que nos conhecemos. Também tinha lá suas pretensões, não a conhecia há muito tempo, e ela era linda: cabelos castanhos, claros, cuidadosamente embaraçados em cachos até um pouco abaixo dos ombros, expostos no vestido amarelo que contrastava com a escuridão quase negra dos olhos vivos, mas distantes, alheios... e como ficassem um pouco menos alheios ao ouvir as besteiras que eu contava (porque toda fala intencional de um homem é, no fundo, uma grande besteira), a noite de meu camarada ficou mais enfadonha conforme percebia ser passado para trás, embora se sentasse ao seu lado, contasse anedotas, enchesse seu copo. ..

         No fim da noite ele ficou com a conta, e eu com um sorriso de “até".
         Seu nome era... bem, há coisas que se esquecem de propósito. Talvez fosse Catarina, ou Carolina, Clara, algum nome com c... mas de que importa o nome, se tudo passou, e todavia seu rosto e figura ainda se formam com perfeição e detalhes na minha memória? Com mais perfeição e detalhes do que realmente tinha, na mesa imunda de bar, na fila da lotérica, no banco de ônibus. Nesse último em especial minha memória me traz a mulher mais extraordinária do mundo, ou pelo menos de minha curta vida. Se por efeito de idealizações ou se de fato, isso já não posso dizer. Mas é certeza de que a tarde, de um alaranjado manso e quente, muito contribuiu para todo esse efeito, conforme projetava da janela em que encostava a cabeça uma forte luminosidade sobre seus cabelos, que ardiam castanho claro, mexendo com o pouco de vento que soprava,  e principalmente sobre seus olhos baixos, distantes. Em certas curvas, quando o ônibus se mexia e a angulação do poente passava para outro lado, a luz laranja penetrava no seu olho esquerdo, clareando a íris do olhar ausente na paisagem com inúmeras cores, tons, formas...
         - Olá! – me sorriu levemente.
         - Ah, oi, tudo bem! Como, é... e ai?
         A fala era inesperada na minha estúpida contemplação. Não há necessidade do verbo em certos momentos, principalmente nos ônibus. Mas meu olhar de basbaque deve ter se tornado a um tal ponto invasivo e persistente que mais nada lhe restou senão começar uma típica conversa de condução pública. Mesmo que não soubesse quem eu era (não se lembrou do meu nome): supôs, pelo atrevimento, que devia me conhecer de algum lugar.
         - Do bar, no domingo, com o...
         - Ah, sim, pode crer...
         O senhor que se sentava ao seu lado se levantou, por sorte ou por sina, e continuamos juntos até o fim da Cardoso de Almeida. Entre conversas vazias, risos, silêncios prolongados, barulho. Meu nervosismo só se acalmava nas paradas, pois tinha aonde lançar meus olhos, fazer comentários sobre as pessoas que desciam, ou sobre os lugares em que o ônibus parava – e ela ouvia tudo com a mesma alegre indiferença, às vezes sorria, às vezes só murmurava, sem tirar os olhos da paisagem. Foi por um milagre que, à esquina com a Homem de Mello, olhou-me direto nos olhos, longamente, mas séria, atenta, completamente ali.
         Depois disso foi fácil conseguir um encontro.
         Tudo muito batido, como sempre: um bar nas imediações da Paulista, cinema, talvez, livrarias, gente bonita e esnobe passando e passando rente à mesa bamba na calçada larga. Pus um calço no pé menor com um maço velho de cigarros que tirei do bolso, e ela riu: tudo estava certo. Ia pedir cerveja, mas fui surpreendido com uma cara de aversão, que logo em seguida virou-se para o garçom e pediu uma dose de gim tônica, voz decidida e calma, forte. Humilhado, fiz uma cara séria e não quis ficar para trás: pedi uma dose de alguma cachaça, não tão barata, mas nem por isso boa.
         A escolha por destilados era a minha sorte grande. E nem digo isso por ela, mas por mim mesmo: o lirismo contemplativo, com que disfarço a minha completa inaptidão com as mulheres e outros enigmas, normalmente não aguenta nem a primeira dose de qualquer bebida um pouco mais forte, cede, e de repente me vejo como um homem normal, de meu tempo, sem usar palavras estranhas ou recitar poetas mortos no século passado. Isso quando não me torno um chato completo, mas não foi o caso: a conversa fluía, calma e de fato envolvente, e não só de minha parte, num qualquer monólogo pretensioso, mas principalmente dela.
Seu olhar já não era mais perdido ou ausente. Estava ali, entre o copo e meu  rosto, fixo, embora um pouco turvo e indeciso lá pela terceira dose de gim, e acompanhava expressivamente a conversa, falando sobre seus dias, sobre alguns filmes, pessoas... as que gostava, as que gostou, as que simplesmente não suportava. Era música, pianista, mas às vezes mesmo a música lhe aborrecia, e para isso tinha o cinema e umas tantas amigas, ou amantes.
Eu acompanhava a conversa, fazia ponderações. Ela ouvia atentamente, concordando ou protestando, sempre com algum interesse sincero e com respostas rápidas. Em suma, estava lá de corpo e alma, já não ria tanto aquele riso nervoso de quem não sabe o que fazer, e a conversa era realmente boa, íamos nos enredando, entretendo, envolvendo... até que num instante nossos olhos se fixaram por um tempo novo, denso, em que aquele efeito da luminosidade sobre seu olho se deu da forma mais extraordinária, talvez por efeito do gim. A respiração apertou, as mãos quase se tocavam, mas um ônibus passou barulhando pela rua e já nada mais disso existia. A mesa, só a mesa nos separava! Praguejei mentalmente, mas por fora ainda nos olhávamos, rindo, até que ela desviou o olhar para a rua. Já era a sua quinta dose, a minha terceira. Julguei ser a hora certa de ir ao banheiro.
“Agora já era!”, pensava, ébrio e vitorioso, enquanto abria a braguilha. “Depois dessa... só preciso dar um jeito de mudar de lugar, sair do outro lado da mesa... se ela levantasse! Bem, posso tentar fazer ela levantar, ou então puxar a cadeira para o lado... talvez até mudar de bar, e numa esquina... bem, veremos”. Saí ainda pensando nas estratégias possíveis, calculando distâncias, medindo palavras, margeando o balcão com passos calmos e bêbados. Estava muito alegre: quem sabe não estivesse amando? Não seria tão absurdo. Só de estar em sua companhia, de ter diante de mim sua voz e seus olhos, já me realizava. Com um beijo, então... só seria preciso armá-lo, propô-lo. Era um risco, de fato, mas é preciso arriscar. E estava decidido: arriscaria.
Mas o que nos cabe escolher nesse mundo! Nossos cálculos, intenções, desejos, é tudo esforço vão, coisa mesquinha ante os movimentos da terra: quando cheguei na rua, no canto em que estávamos sentados, vi a mesa vazia, e já limpa. Como assim? Parei, perplexo, pensando que talvez tivesse confundido o lugar, ido à mesa errada, não sei, devia ter algum engano, como a pessoa simplesmente parte sem mais nem menos? Olhei no outro lado do bar de esquina, e nada. Era isso mesmo. Ainda dei uma volta, perguntei ao garçom, mas não tinha outra saída: ela havia ido embora, e também tinha deixado a conta paga, é verdade, mas... se foi sem dizer nada! Sentei bêbado na sarjeta, tentando entender alguma coisa: teria me avisado? Tinha algum compromisso? Não me lembro, mesmo tendo estado com ela a tarde inteira, não sei se ela chegou a me contar. E, se contou, não sei se nos meus devaneios, consegui ouvir alguma coisa que já não fosse minha. Não sei nem se ela de fato estava lá, com aqueles estranhos olhos fixos, presentes. Nada disso era normal.
Não me lembro se cheguei a vê-la depois disso tudo, se chegou a dar explicações, e se eu cheguei a entender de fato o que se passou. Só sei que, agora, neste exato instante, ela me acompanha, olhos ausentes a mirar o nada ao meu lado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário