quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Demolidor de moinhos

     O  final do encontro, que de qualquer forma já se anunciava, foi dramaticamente marcado por uma notícia perturbadora: tinham chegado no terreno com máquinas, disse a dona do posto ao lado, companheira de urbanos quixotismos, e parece que iam pôr tudo abaixo, na calada da noite, como já tinham feito. Mas deram azar: estávamos lá mesmo, na outra esquina, e já num clima de articulações, de modo que foi só juntar as tralhas e ir para lá, com câmeras, ânimo e até, se precisasse, telefone da polícia na mão.
         Dessa vez não ia ser como na última. O casarão foi derrubado assim, tínhamos clara a lembrança: na calada da noite... baixaram lá com retroescavadeiras, operários, enfim. Dizem as testemunhas que começaram o trabalho pontualmente às sete. Às oito já não havia mais nada, o terreno estava vazio. Segundo o sacrissanto direito à propriedade, tudo em ordem, mas... ainda há alguma justiça neste país, e o imóvel havia sido encaminhado para o tombamento. Mas não teve nem discussão: o casarão já não existia, o que se pode argumentar? Depois a história é conhecida, a luta, simbólica, antes de mais nada, pela criação de um parque em frente ao colégio Godofredo Furtado, para aproveitar o espaço magnífico que ficou lá, vazio, com árvores gigantescas, maravilhosas. Há quem argumente, na inocência nociva do progresso, que já que foi posto abaixo mesmo, bolas, que se construa alguma coisa por lá, um condomínio residencial de não sei quantos andares, um “kinoplex”, clamam os tupiniquistas. Mas a coisa não é bem assim: já passou a hora de dar um basta. Apartamentos por mais de um milhão cada um...! Onde que isso democratiza o espaço do bairro? Muito pelo contrário. Só corrobora com a elitização, que expulsa, pouco a pouco, os moradores tradicionais, em sua maioria velhinhos, artesãos, lojistas, pequenos comerciantes, gente, essa sim, humilde, que é obrigada, ante o aviso de despejo e a delirante vertigem dos preços imobiliários, a ir com as tralhas para a periferia.
         Todas essas ideias já foram muito bem repetidas. E mesmo assim lá iam os donos do terreno, mais uma vez, nos fazer de trouxas. A liminar ainda não caiu, e tudo segue em discussão. Se fossem derrubar o que restou no terreno, seria apenas mais um desafio, uma humilhação às nossas quixotescas (e por isso tão nobres! Quem não quer viver numa cidade melhor?) reivindicações. Já chegamos lá com sete pedras em punho, eles que tentassem. Não somos mais um bando de idealistas, não só: advogados, jornalistas, funcionários públicos, todos estão engajados, conforme a sua especialidade e experiência de vida e luta, nessa pequena grande causa. Compraríamos a briga no atacado. E se não vencêssemos, que ao menos o inimigo perdesse um bom tempo lambendo as feridas.
         Em frente ao terreno praticamente baldio, repleto de árvores frondosas na colina que o caracteriza, só havia mesmo uma guarita, onde um homem simples, agasalhadinho, dormitava. Claro que as pedras foram jogadas ao chão, brigar com ele? Fomos claros: não pode mexer em nem uma folha, por tais e tais razões. O senhorzinho entendeu tudo, concordava, só estava trabalhando. Disseram que a retroescavadeira era só pra limpar o terreno, estava cheio de entulho, precisava mesmo de limpar. Mas ia ligar pro engenheiro, explicar a situação, o povo aqui é alarmado, não vai deixar passar batido não. De qualquer forma chamamos a polícia, vai saber... o homem concordou, ainda mais de ter ouvido a história da demolição do casarão, imagine!, se riu, na calada da noite, isso não se faz, tem que respeitar... ainda mais pra levantar condomínio pra grão-fino, vê se pode... ia ligar pro engenheiro mesmo, dizer tudo, o povo aqui não dorme em serviço. Só estava trabalhando.
         A polícia, a bem da verdade, não chegou ainda. Parece que há uma hierarquia de sangue nos atendimentos, quer dizer, quanto mais sangue, mais rápido eles chegam, o que é muito natural. E o nosso caso era uma retroescavadeira. Estava lá, no alto do morro, parada, animal de sono, imóvel, neutra, até que os homens a despertassem... talvez a máquina também não faça as coisas por vontade, é obrigada, é o trabalho dela. Não sabe da lei, e mesmo se soubesse: é paga para isso.
         Mas nós não ganhamos nada, nem um tostão. Talvez a alegria de saber que não estamos sós, o sofrimento não é mais isolado, estamos juntos. E um mostra as fotos da casa em que passou a infância, hoje demolida, outro lembra do córrego que passava na Henrique Schaumann, do mosteiro que virou estacionamento... chega um sujeito novo, quem será?, é jornalista, quer ajudar, tem informações novíssimas, importantes. Tudo por amor, pode-se dizer. E vamos abrindo caminhos, tortos, de paralelepípedos, mas apaixonados, na esperança (tão batida quanto nobre!) de uma cidade melhor. “Saudosistas!” clamam alguns, sem saberem-se eles mesmos saudosistas, comprando no atacado a ideologia caduca do progresso, getulista, militar, do século passado. Porque quem pensa de verdade no futuro, aliás, no presente!, somos nós, e todos aqueles que trabalham em silêncio, com calma apaixonada, pela preservação e melhoramento daquilo que já existe de bom. Londres, Paris, Moscou, Roma, Rio de Janeiro, Buenos Aires. Cidades que provam que ainda há uma convivência possível entre presente e passado, com perspectivas de qualidade de vida. “Mas isso daqui não tem mais jeito”, confessam os homens de pouca fé, entre a preguiça e a mesquinhez. E rebato, no chavão da primeira república: “derrotistas!”.
Tudo, menos o derrotismo. Enquanto houver vida, e gente decente, haverá o possível, mesmo que no papel leve o carimbo sujo do impossível. Mas ainda sairá do papel, seja o projeto do parque, concreto, visível, seja a fotografia da infância, remota e doce, mas que ganha vida na perspectiva da nossa própria velhice, e num futuro em que, queremos, nossos filhos poderão brincar com a calma e a dignidade que tivemos. E que se perdem na generalização, roídas pelas traças da indiferença farisaica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário