Escrever por aí, onde quer que seja, quando
e como a dita “inspiração” aparecer, é um hábito tão saudável quanto problemático.
Quer dizer, saudável dentro de certas perspectivas, no meu caso, a de aspirante
a homem de letras, pois dentro de outras inumeráveis perspectivas tal costume não
passa de uma maluquice com riscos seríssimos de atropelamento ou exclusão
social massiva, sob acusações de lunatismo. Não dou a mínima para estas questões.
O problema maior, no meu caso, eu que não hesito em anotar versinhos ou motivos
narrativos atravessando a Paulista ou num samba no Butantã, é quando as pessoas
começam a achar, na sua humildade mais santa, que é sobre elas que eu estou
escrevendo. Daí sim a coisa complica.
Trata-se
– não julgo – de um equívoco bastante natural. E não preciso fazer grandes
reflexões históricas: peguemos a palavra “canetar” tão corrente quanto
detestada. Ninguém caneta pelo bem alheio, o ato vem sempre de uma intenção
perniciosa. O canetador é primo-irmão do amarelinho, do fiscal, do dedo-duro, e
sempre que alguém tira o cilindro esferográfico do bolso e põe-se
compenetradamente a rabiscar alguma coisa, pode ter certeza: de alguém ele
deseja o mal.
Não
se pode dizer que este seja o meu caso. Quer dizer, só se se tratar do meu próprio
mal, por perder tempo com as tintas enquanto podia fazer outra coisa; mas o mal
dos outros, bem, pouco me importo que casem ou caiam num poço. Claro que não se
pode exagerar, já que o ato criativo é de certa forma um ato de amor, e, principalmente, se não fossem as figuras com as quais
me deparo no dia-a-dia, para o bem ou para o mal da vida prática, por certo não
teria um único assunto para escrever, a não ser a lua, já rota e batida de
tantos versos que se lhe escreveram. Eu prefiro mesmo escrever sobre os malucos
que me rondam, não obstante muitas vezes serem eles os maiores inimigos deste
ingrato métier.
Andava
eu pela Teodoro Sampaio quando uma placa de loja, com algumas letras caídas, me
chamou a atenção, e achei digno de nota. Era perto de uma esquina de vila, e
sendo um horário comercial, diversos carros se amontoavam folgadamente ao longo
do meio-fio, quase invadindo o passeio. Pois foi eu tirar a caneta da camisa e
o caderno do bolso, para escrever, que um sujeito entretido numa conversa de
esquina parou tudo e pulou como uma mola na minha direção.
-
Opa opa opa amigo! Parei só cinco minutinhos, o piscalerta tá até ligado, ó! Não
vai fazer isso comigo não...
-
Isso o quê?... – perguntei perplexo, e o sujeito ficou aflito.
-
Essa multa aí não é pra mim! Suei muito pra comprar esse carrinho! A quantidade
de pilantra sem-vergonha que vive no bem-bom com o nosso dinheiro e você ainda
vai dar mais pra eles, é?! Assim não! Eu sou patriota!
-
Ah... – caíra a ficha – não é isso não, amigo. Não sou CET não, isso aqui é...
isso aqui é outra coisa!
Mas
ele era desconfiado.
-
Sei! Que é que é isso então, se não é multa?!
Agora
quem estava aflito era eu.
-
Isso aqui são só uns versinhos aí, que eu escrevo... tive uma ideia e resolvi passar
pro papel... quer ver?
O
sujeito veio, meio sem muita fé, deu uma olhada nas besteiras que eu tinha
acabado de escrever e se acalmou. Ia voltar pra conversa, depois de pedir
desculpas, meio rindo, quando percebeu que o verdadeiro amarelinho, enquanto
ele me fazia aquele absurdo interrogatório, tinha acabado de arrancar uma folha
do talão de multas e enfiado no vão do para-brisa.
No
fundo, achei bem feito: ele nem pra elogiar os meus versos!
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Outra
foi num restaurante, ainda que com outros contornos. Era um daqueles
tradicionais do Centro da cidade, na rua Aurora, um italiano digníssimo já
desde os tempos em que meu avô trabalhava por lá. Como estivesse inspirado por
aquele mosaico formidável de edifícios e azul do céu da avenida São João, mal
me sentei junto à mesa e tirei o pedido e logo comecei a anotar alguns versos,
freneticamente. Volta e meia, como a inspiração respirasse, parava e observava
o garboso restaurante, seus garçons antigos, até que finalmente a palavra
faltante chegava e eu retomava a escrita, com cega dedicação.
Só
quando já tinha jogado toda a minha reserva de estrofes sobre o papel foi que
pude perceber o tratamento diferenciado que passara a receber dos garçons. Não
só pelo excelente couvert
que tinham posto em minha mesa, mas também pelo frescor fumegante, bem
apresentado e farto do pretenso simples macarrão ao sugo que havia escolhido
pelo preço, cheio de ervas, especiarias e até – quem diria! – uns gordos tecotos de carne. O
estranhamento cabal foi quando, ao dar a primeira garfada, descobri a taça de
vinho tinto que tinham servido discretamente, num canto da mesa, como que
propositalmente escondida.
Levei
um susto. Mal sabia se os vinte dois merréis que tinha no bolso bastariam pra
pagar a massa, quanto mais toda aquela regalia! Presto chamei o garçom, que, de
um canto, parecia me olhar junto com todo o serviço do salão, e voou para me
atender.
-
Pois não, senhor?
-
Ô amigo, seguinte: você me trouxe esse vinho aqui e...
-
Que foi? Não está bom? Quer que troque? – desesperou-se o homem.
-
Não, não é nada disso. Eu nem toquei nele, aliás. Mas é que eu não tinha pedido
isso não, e nem tenho como...
-
Ah, sim, senhor. A casa é que está oferecendo!
-
A casa está pagando também? – desconfiei.
-
Mas é claro!
-
Bem... sendo assim... muito obrigado, é... Está tudo muito bom, viu! Só... você
pode me trazer um queijinho ralado, também, fazendo o favor?
Despachando
o garçom, dei outra boa olhada em minha volta: era o único que tinha uma taça
de vinho, que dirá de por conta da casa! Daquele mesmo canto o serviço ainda me
observava, entre cochichos e olhares de expectativa. Olhei para a caderneta
fechada ao lado do prato e finalmente juntei lé com tré: ali se passara algum
engano, certamente me tomaram por algum crítico, gastrônomo, algo assim. Que
fazer? Desmentir? Ser honesto? “Não, senhores, sinto muito, eu não...” Mas e
depois, o vinho, o couvert,
a conta? Passaria uma boa tarde lavando pratos, isso sim, a recompensa pela
honestidade!
Não, se a burrada era deles, eles que se
virassem! Não tinha dó de ninguém e nem pretendia voltar ali tão cedo. Agora só
teria de levar a farsa até o fim. Com trejeitos esnobes e sapientes, pus-me a
balançar a taça de vinho, imitando os ditos entendidos, e só então dei um gole,
minúsculo, quase imperceptível, para saboreá-lo. O efeito na plateia, bisoiei,
foi maravilhoso: os garçons estavam em completa tensão, causada com certeza
pela pressão do gerente. Prossegui o almoço com as mesmas maneiras, percebendo
o sucesso absoluto da desonestidade. Volta e meia fazia uma cara severa,
degustava, e rabiscava qualquer porcaria na caderneta, pra coisa parecer séria.
Até que me dei conta do anedótico de tudo isso e anotei de fato, para poder
escrever depois.
Por fim, depois de tomar um café, também
oferecido e pago pela casa, levantei-me. Agradeci elogiosamente ao garçom,
velho simpático!, e fui para o caixa acertar o que tinha pedido. Mas quando me
aproximava, o gerente me barrou.
- E que tal, senhor, gostou? Estava tudo
certo? Foi bem atendido?
-
Hum... sim, claro. Tudo muito bom. Só o molho, estava um pouquinho ácido.
A
expressão do homem se nublou de um tal modo que até me arrependi, e emendei.
-
Mas eu gosto. E era só isso. Tudo perfeito, excelente, não há mais restaurantes
deste porte em São Paulo, são raríssimos. Conte com uma crítica extremamente
favorável, de minha parte.
-
Ah, senhor! Muita bondade. Aliás, bondade desde o princípio, ter aceitado vir
aqui fazer esta matéria. Volte sempre que quiser!
-
Voltarei. Agora para acertar...?
-
Acertar?! Não senhor! Hoje você é nosso convidado, já estava nos planos. Aliás,
tome este chocolatinho.
Me
estendeu um chocolate e um imenso, quase patético sorriso. Chega senti pena do
homem, mas a alegria do almoço na faixa era maior do que tudo. Dei um sonoro “adeus,
muito obrigado!” a todos os garçons e ia saindo pela porta, quando esbarrei com
um sujeito todo janota, acompanhado por uma mulher excessivamente produzida. O
carro da Abril do lado de fora não me deixou mais dúvidas: dobrei a São João
como uma cobra e disparei pro Anhangabaú. Se não me desse bons versos, pelo
menos uma história das boas a tarde já tinha me dado.
Qual
o problema com o papel e a caneta? Difícil pergunta. Parece ter alguma magia,
aura de respeito e autoridade, por mais que neste país não haja a menor
consideração pelo escritor. Mesmo que entrasse o Lima Barreto no bar da edição
de um jornal e pedisse uma pinga, ninguém iria perceber, corria até o risco de
ser maltratado. E ao mesmo tempo... bem, ao meu ver, é puro medo. Quem escreve,
reza a lenda!, tem que pensar. Por mais que se possa dar mil contraexemplos...
a começar pelo fato de que o pobre do papel não escolhe a tinta: aceita tudo.
Mas mesmo assim, há muitos que prefeririam aparecer na grande mídia, nem que na
última página, num rodapé depreciativo, do que morrer num honesto anonimato. E
para tanto, claro, não economizam hipocrisias. É aquela história de arrumar o
penteado antes da foto, passar maquiagem, por mais que infelizmente hoje
existam os photoshops da vida.
Mas
não na literatura. O que escrito foi, amém!, escrito está. E daqui a paúra de
muitos. E o desespero de outros. Uns ditadores queimam livros... outros os abençoam.
Curioso é o homem de letras, coitado, esquecido e ao mesmo tempo central neste
genérico ridículo, que ele se resume a captar, mas de quem só se lembram na
hora de incriminar por alguma calúnia provavelmente verossímil. Lembro-me agora
de Nikolai Vassílievitch Gógol, que resumiu, há 200 anos e em poucas palavras,
tudo o que quis dizer:
Qualquer
que seja o nome inventado, sem dúvida se encontrará, em algum recanto do nosso
país, pois ele é grande, alguém que tenha esse nome, e que sem falta ficará
furioso, e criará um caso de vida ou morte: dirá que o autor foi já às
escondidas para espioná-lo, para descobrir quem é ele, e que tipo de casaco
veste, e qual é a Agrafena Ivánovna que ele visita, e o que gosta de comer.
[...] Entre nós, agora, todos os portadores de títulos e cargos estão tão
exacerbados, que tudo o que aparece em letra de forma já lhes parece ofensa
pessoal – deve ser por causa das condições atmosféricas. Basta que se diga que
numa cidade reside um homem tolo, e isto já constitui alusão pessoal: de repente
saltará um senhor de aspecto respeitável e gritará: “Acontece que eu também sou
um homem, portanto, eu também sou tolo!”. Em suma, perceberá logo do que se
trata.
Tivesse
eu citado desde o começo, não precisava nem escrever essa crônica... nem mais
nada, nunca mais. Seria uma excelente solução: livrar-me-ia não somente desse
texto, mas ainda, o que é mais importante, dos problemas pentelhos, que tive o
trabalho de narrar, só por ter ideias, caneta e papel sempre à mão.
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