São quase onze horas da noite e mesmo assim, daqui, do velho
apartamento da rua Cônego Eugênio, ainda se ouvem os apitos estridentes das
sirenes deslocando-se freneticamente. Penso, olhando a paisagem, num marciano
que desembarcasse em São Paulo: acharia estarmos em guerra, e pior: vendo os
rostos apinhados em torno das TVs dos bares, dos lares, das lojas, julgaria tal
guerra tratar-se de um fenômeno corriqueiro, como a novela das 7. No caminho do
centro para casa, ao passar pela Paulista, pude ver que uma nova praça de
guerra se armava quase na esquina, à terrível imagem e semelhança da que pude
presenciar na av. Consolação. Pela Dr. Arnaldo luzes vermelhas de camburões e
ROCAMs riscavam a noite como tiros alucinados. Certamente, pensaria o marciano,
os comunistas, os tapuias, os paraguaios ou os alemães estão para receber
reforços na frente ocidental, e é preciso agir com energia.
No céu,
cinco helicópteros.
Mas de fora na av. Ipiranga e no
começo da Consolação o mesmo marciano que teve por infelicidade aportar em São
Paulo poderia, a essas horas, suspirar aliviado, já que saberia que a
brutalidade é coisa tão trivial quanto corriqueira: o comércio, pequenos
camundongos, punham seus bigodinhos para fora das cortinas de aço e,
certificando-se da ordem cívica, quotidiana e apolítica, voltavam a servir
fumegantes cappuccinos, chopes espumantes e sapatos para todos os casais que não
conseguiram comemorar o Dia dos Namorados em tempo, e para os estudantes do Mackenzie
e trabalhadores da região, em geral . Na Maria Antônia, já imperava a
descontração, apesar de o vento, vez ou outra, trazer inconsequentemente os
farrapos fedegosos das bombas de efeito moral, do gás de pimenta, da fumaça,
enfim, dos restos da guerra que se alastrava Consolação acima.
São Paulo respira normalmente, a
noite avança com temperatura amena. Embora com cicatrizes: na Augusta há lixos
revirados, restos de fogueiras, comércio ainda fechado e, pasmem, esboços ou
projetos de barricadas. A GCM, em formação marcial de fila, vela pela calma dos
casais. A praça Roosevelt está sob estrito controle: aquele que quiser degustar
o ar fresco da noite, levar o cachorro para evacuar ou mesmo andar de esqueite,
pode ficar à vontade: cerca de dez viaturas estão estacionadas no local, e
policiais devidamente armados, de trinta e oito a trabucos, em postos estratégicos,
vigiam pela paz em cada esquina da baixa Augusta.
De um boteco na Rua Maria Antônia,
enxugando as lágrimas e esperando o coração desacelerar, eu assistia ao
desfecho da dupla farsa, degustando simultânea e anacronicamente certo sabor de
68, pela influência do local e pelo barulho insuportável das bombas. Refugiei-me
para tomar um guaraná: no quebra-pau, conforme a polícia nos isolava e cercava
na nova Praça Roosevelt, topei com o filho do meu professor de grego – um rapaz
de 13 anos que lê Freud e Turguêniev – mais uma amiga sua, ambos com lenços no
rosto e um tanto quanto desnorteados diante do caos apavorante em que se
convertia a primeira manifestação das suas vidas, a que tinham ido sem a
autorização dos pais. Ainda tentei metê-los dentro do Supremo Tribunal, mas o
coração Justo dos servidores, disposto a assistir o circo incendiando de detrás
dos vidros, já não mostraram tanta disposição assim para acolher duas crianças
diante da cortina espessa de pimenta e efeito moral, da multidão amedrontada,
do avanço do choque, das bombas, dos trabucos, dos camburões, das balas soltas.
Resultado: ficamos encurralados,
nós e mais alguns. Sorte imensa não terem nos linchado ali mesmo. Alguém tinha
vinagre, a irmandade da ocasião se impôs. Até que a linha de frente abriu uma
brecha, e, com um moleque debaixo de cada braço (o que muito provavelmente me
serviu de passaporte), passamos pelo lado e fugimos, entre estilhaços de vidro,
pedaços de pedra e restos de fogueiras. Ruas vazias, camburões atravessados
pela avenida perplexa. Uma linha do Choque fechava a Maria Antônia, e um deles
gritava, trabuco em punhos, qualquer coisa contra um repórter. Era a guerra,
ainda que assimétrica. Lembrei-me de alguns vídeos e fotos do 1º de abril de
1964, e pus-me a assoviar o hino nacional – mas ninguém entendeu.
Era a farsa, e ninguém,
aparentemente, está entendendo nada. Nos botequins e estacionamentos, as
pessoas assistiam pela televisão o que acontecia a duas quadras dali, sem
sequer ter a curiosidade de dobrar uma esquina e ver ao vivo e a cores. “As
imagens”, como diz o Datena. Mas, a primeira de todas as farsas: a “revolução”
televisionada. “Isso é Goebbels”, me disse, num misto de ironia e desespero,
meu professor de grego, que a essas tantas já tinha chegado atrás do filho,
entre orgulhoso e emputecido pela ousadia do rapaz.
“E isso é Marx”, disse por fim,
enquanto caminhávamos, chutando os pedregulhos e cacos de garrafas espalhados
pela calçada. “A farsa”. Coisas que, como bombas e balas, dão no mínimo sobre o
que pensar, se não sobre o quê chorar, agora já beirando a meia-noite, no mesmo
apartamento, embora somente com o barulho dos caminhões de lixo que limpam a
cidade para seu outro dia de fumaça e lixo. As sirenes se calaram. Leio nos
jornais que mais de cento e cinquenta foram presos. As duas farsas foram concluídas:
os telespectadores tiveram sua ração de sangue; eu, e muitos, a nossa de
subversão. Ambas resumidas em uma única tragédia.
Quando, em que manhã, ao abrir a
página de um jornal, conseguirei enfim ler nas linhas a justiça efetivada nos
fatos? No Brasil, para o bem ou para o mal, temos o costume de rir muitas vezes
que deveríamos chorar. Fico sonhando com o dia em que as notícias só me farão
sorrir. Hoje, na manifestação, gritava-se “o povo acordou”, e de fato, até a
chegada na Maria Antônia, a beleza e a justiça de tudo aquilo somavam-se numa
confortável e farsesca sensação histórica, de despertar de algum porvir mais
justo. Bem, sabe-se como tudo acabou. Vinte anos de ditadura seguidos de
Sarney, Collor e Fernando Henrique, mais os ambíguos anos de Lula e sua gestora
deram numa politização perneta, resumida ao período de eleição, e não estendida
a tudo de político que nos toca. Não sabemos nos manifestar, estamos
pesquisando. O Estado e a sociedade civil, pior ainda!, não sabem se portar
diante da ação direta. Mas num boteco dois homens, mesmo que assistindo TV, se
solidarizam ao me ver sentar, de olhos vermelhos, e puseram-se com ardor a
praticar um dos mais antigos esportes brasileiros: meter a língua no governo. Dois
moleques contrariam seus pais e vão na manifestação, por curiosidade, e, além
de aprenderem com a vida, ainda me ajudam a me safar, na sua imponente
fragilidade. O Datena muda de ideia com a mudança de Ibope.... bem, chega.
Ah, Vida futura, és difícil mas
sem ti, esta noite, me recuso a dormir.