A
sala 928 aparentemente não existia, pelo menos no nono andar, o que o prefixo
nove havia garantido num sistema mais ou menos lógico para a localização. “Nono
andar – o primeiro número é sempre o andar”, tinha dito o senhor na saída do
refeitório. Sem opções nem ressalvas, acreditei e fui para lá sem demora, onde
girei por uns quinze minutos sem achar qualquer coisa que se assemelhasse ao
928. Quer dizer, somente um 927, sala obscura onde homens discutiam alto, e um
929, depósito trancado, sem qualquer indicação sobre auxílio ou emissão de
documentos e registros para estrangeiros agora domiciliados na capital da
Federação Russa, sob a responsabilidade legal e custódia da Universidade
Estatal de Moscou. Sessão para Repúblicas Sul-Americanas.
As
outras salas eram ainda mais desnecessárias naquele momento. Apesar de que o
passeio por todos aqueles corredores, num andar pouco frequentado pelos
estudantes, não pudesse deixar de ser interessante, misterioso, solene: tapetes
velhos e vermelhos forravam todo o piso de madeira sóbria, tendo por cima de si
antigos móveis de igual madeira, telefones enormes, como que de filmes antigos,
e também como de filmes os zeladores que neles se sentavam e copiavam com muita
atenção algum pedaço de papel, vestidos de azul, vasta bigodeira. Por fim
cansei-me, ao perceber, pelo mesmo quadro de uma paisagem verde com fios
elétricos, que já tinha dado uma volta completa, e lembrando do caráter oficial
e prático do assunto que tinha que resolver por lá, larguei o orgulho e o medo e
perguntei a um zelador sobre a sala inexistente.
O
velho levantou os olhos para mim, e observou-me por alguns instantes. Depois
apontou para uma saída estreita num canto escuro do corredor, sem dizer nada.
Agradeci.
O
tal canto escuro, escondido, se abria para um outro saguão de tapetes vermelhos
e quadros, representando a perfeita harmonia entre a terra russa e os
progressos industriais soviéticos. Lá a luz já era um pouco melhor, entrando
por três largas janelas que mostravam o pátio distante, coberto de neve, e uma
vaga Moscou se sugerindo no horizonte e na bruma. É que quase não há grandes
arranha-céus nessa cidade, logo, dos poucos, como a universidade, tudo se vê. À
direita das janelas três salas silenciosas, sem identificação, insinuavam seu
trabalho quieto e constante.
Talvez
uma delas fosse a 928.
Bati
na primeira... o ruído da madeira bateu surdo na extremidade da sala, e voltou
num eco – foi minha única resposta. Ainda esperei um pouco, mas passei logo
para a segunda porta. Mal foi eu bater que ela, mal fechada, cedeu com um
rangido escandaloso, escancarando uma sala empoeirada com uma mesa larga ao
fundo, e atrás um sujeito rabiscando alguns papéis, que ao me ver começou a
avermelhar e levantou-se num instante. Perguntei nervoso e tímido se esse por
acaso seria o departamento de auxílio ou emissão de documentos e registros
para estrangeiros agora
domiciliados na capital da Federação Russa, sob a responsabilidade legal e
custódia da Universidade Estatal de Moscou – Sessão de Repúblicas Sul-Americanas.
-
O quê?! Como?! Mais essa agora... É claro que não! ! Nem existe esse
departamento! E mesmo se fosse, que despeito é esse todo de entrar sem bater?!
Você devia era...
Me
desculpei e fechei a porta atrás de mim. Que lascada! Espero que não seja o
reitor, ou qualquer pistolão da universidade. Apesar de ter dito que não
existia tal departamento... não era possível, o zelador tinha indicado aquele
lugar. E de fato ainda restava uma porta, em que, Deus que me ajude, bati.
Dessa vez sem escândalo e sem silêncio:
-
Sim? Entre, por favor. – respondeu uma voz simpática de mulher.
Esperava
alguma grosseria súbita ou mesmo alguma armadilha fatal, mas a moça, de rosto
claro e um sorriso leve, me olhava de trás da mesa do canto esquerdo com
interesse e, assim entendi, disposição sincera para me ajudar.
-
Pois não?
-
Olá! Bem, eu...
Expliquei
o meu caso, com a língua eslava aos tropeços e encontrões. Aqui cabe resumi-lo
de forma mais clara: são, via de regra, três os documentos básicos para tornar
um estrangeiro, pela universidade, um indivíduo russo jurídico legal. Primeiro
um cartão de estudante, emitido pela respectiva faculdade, sem o qual não se
entra em lugar nenhum, nem no banheiro; depois vem a registração, documento
federal de razão pública desconhecida, necessário uma e cada vez que o
estrangeiro se encontra em uma cidade nova. É como uma prestação de contas ao
governo sobre onde se vive e desde quando, e talvez por quê. Por fim vem a
prescrição, segundo a qual se confirma e
oficializa que o estudante
tal a partir de tal e tal convênio com a universidade tal firmado no dia tantos
de certo ano está oficialmente, de tal data àquel’outra, estudando aqui.
E,
quase me esquecia, ainda uma quarta e importantíssima documentação: no meu
caso, já que moro no alojamento da
Universidade, há a autorização, dependente da total regularização dos
outros três, mais um formulário, cópia da Registração e uma foto ¾ colorida não
plastificada. E era justamente aí que a história engrossava para o meu lado.
Para
adquirir esses documentos, bem... eis a epopeia do papel. Tudo se inicia com
uma autorização provisória, por assim dizer a primeira fase, mas percorrendo
cerca de dez ou vinte salas, falando com as pessoas certas, nos horários e dias
de funcionamento adequados, com as devidas indicações, esse papel pode se multiplicar em até outros
sete, ou oito, se não me engano, de diversas cores e tamanhos. Um espírito um pouco mais lúdico que o meu
conseguiria fazer uma verdadeira coleção. Mas o objetivo final mesmo, para
evitar problemas, é conseguir aqueles quatro que já descrevi. Digamos que a fase em que eu me encontrava já
era bem avançada, contando com metade dos documentos finais e engatilhado para
os outros dois. Mas o terceiro, a Prescrição, estava tardando a chegar, e o
provisório do quarto papel que me garantia a moradia estava prestes a expirar,
me garantindo a incrível e real narrativa de um despejo de final de inverno no
ex-país dos sovietes.
-
Você entende? – perguntei por fim à moça, que me ouvia com sincera atenção. –
Este papel não chega de jeito nenhum, e já estão me cobrando no alojamento...
-Ah,
não se preocupe – sorriu ela, meigamente. – Olha só, pegue este papelzinho aqui
– e me estendeu um formulário, que acabava de preencher e assinar -, e leve ele
agora ao gabinete 177, no primeiro andar. Hoje é... quarta-feira, certo? Sim,
ele funciona hoje. Mas corra, se não fecha! Leve esse papelzinho lá, fale que
você passou por aqui. Seu documento vai ficar pronto até a semana que vem –
disse, olhando um formulário enterrado numa das muitas gavetas do móvel. – Pode
ficar tranquilo.
Me
desejou “tudo de bom”, e nos despedimos. Confesso que, apesar de não ser muito
bonita, de sua profissão não ser das melhores e de eu não querer nem um pouco
passar o resto de minha vida neste país, mesmo assim minha vontade sincera
naquele momento era de pedi-la em casamento, ali mesmo, e confessar a história
de meu amor delirante por ela, desde que havia me atendido com tanta meiguice e
dedicação, no meio daquele pântano moral do funcionalismo da universidade etc.
etc. Mas a obrigação me chamava, e era preciso correr.
Dois
elevadores – “Não, esse não para no primeiro andar”, “com licença”, tive de
descer -, e o segundo finalmente me deixou no terreno conhecido do primeiro
andar. Depois de atravessar os grandes saguões e esbarrar com estudantes
desleixados e cidadãos respeitáveis já me encontrava novamente em terreno
oficial. Mas pelo menos este não me era estranho – tinha passado por lá na
minha chegada. Só não conseguia novamente achar o diabo da sala... da sala...
qual sala mesmo?
- Ah, 177! - Olhei num papelzinho amassado
que guardara no bolso da camisa. Passei por uma 175, é verdade, e também por
uma 180, e mais adiante até uma 717, quer dizer, não, 117. Finalmente fui parar
num saguãozinho, onde estudantes de diversas etnias se aglomeravam em filas
mudas. O único ruído, para além do de máquinas e lápis, vinha de uma
funcionária azeda, óculos grossos e batom carmim, que brigava com um chinês.
- O que é que você precisa, hein?! hein?!
Só me aborrecer! Não vê quanta gente aqui esperando! Que diabo! Tá olhando o
quê?!
Mas como o pobre do chinês não entendia
quase ou absolutamente nada, e seguia com a mesma cara de súplica, com uma
folha timbrada na mão feito caneca de esmola, a briga era tão injusta quanto
estúpida. Por fim a mulher se deu conta
das dificuldades comunicativas, virou-lhe as costas e entrou numa sala
no fundo, fechando a porta com barulho. Nesta, se lia “177”.
“Essa agora é boa...”, gelei, constatando
no papelzinho amarrotado que o destino me reservara, junto à situação delicada,
uma funcionária de mal-humor. Mas respirei fundo e me preparei para o ataque,
dando só uns minutinhos para que, quem sabe, sua disposição se recompusesse ao
menos para com os ocidentais, e para que eu mesmo tomasse alguma coragem e
preparação linguística.
Me aproximei e bati na porta.
- Sim?! Pode entrar!
- Olá, com licença, eu, bem...
Ela já me olhava com impaciência. Mas não
aquela impaciência brasileira, com as quais lidamos todos os dias, que faz
questão de deixar muito claro àquele a quem se dirige o quão indesejável ele é,
e o quão inúteis serão suas perguntas, gentilezas, esforços e invectivas,
diante da rigidez soberana da má-vontade, praticamente uma maneira gentil de
pedir para que suma dali o mais depressa possível. Aqui é uma impaciência
cínica, que se diverte fleumaticamente a cada grosseria possível, que busca
empecilhos a cada gesto de um interlocutor fragilizado, escravizado pela
hierarquia do papel, e que faz da escrivaninha que nos separa praticamente um
altar, e do burocrata, um sacerdote. Mas mesmo assim não me abalava: tinha
respirado bem fundo.
- ... daí como não chega de jeito nenhum,
eu, bem, me deram esse papelzinho aqui, e, hum, como eu preciso prolongar minha
estadia, eu...
- Deixe-me ver.
Dei-lhe o papel e comecei uma prece.
- Hum... hum, hum. Hum? Ahã... – levantou
os olhos para mim, e voltou para o papel – hum, ham. Coff, coff, ruff! – tossiu
com força. - Huhum. Isso não está certo...
- Como não?
- Onde está a sua registração?
- Então, é o que eu tinha dito... não está
pronta... mas na semana que vem com certeza já vai...
- Volte então na semana que vem – respondeu
com aquele tom de presunção de uma resposta óbiva. Mas não desisti.
- Não tem como! Preciso renovar minha
estadia pelo menos até sábado, entende?
Ela me lançou um olhar de impaciência, que
respondi mantendo firmemente a minha cara de pobre coitado exigindo justiça.
Até que ela finalmente cedeu, num suspiro de desgosto, e passou a organizar
outros papéis. Esperei um pouco olhando para a mesa, onde uma quantidade
inacreditável de formulários, aplicações, boletos, protocolos, petições,
tabelas e outras criações do moderno estado-nação se distribuíam, entre
carimbos, apontadores e grampeadores, num sentido obscuro ao visitante
desavisado, mas necessário e diria até vital para o funcionamento do
funcionalismo. “E depois na União Soviética faltava papel para fazer
livros...!” pensei com amarga ironia.
Finalmente ela retirou um formulário da quarta ou quinta gaveta,
preencheu-o com uma caligrafia incompreensível e me entregou com outro suspiro
de desgosto.
- Sala 179. Leve esse formulário lá.
- Ahã... isso fica onde?
- Aqui, em frente!
- E é só esse formulário mesmo?
Ela me olhou com ódio profundo, ao que
agradeci e me levantei num dois. Felizmente dessa vez a coisa era simples: de
fato a sala 179 ficava em frente. Lá fui até que bem recebido, mas levei um chá
de cadeira, como as três funcionárias desse escritório conversassem
acaloradamente sobre temas urgentes de suas vidas pessoais, e depois de me
entregarem dois novos papéis me mandaram à sala 175, que ficava no fim do mesmo
corredor. Embora não tão bem recebido, a sala 175 era agradável e não tive que
esperar muito, já que a pobre da funcionária, seja porque trabalhasse sozinha
ou porque não tivesse uma vida pessoal tão interessante, não tinha com quem ou
sobre o quê falar, de modo que fui logo encaminhado para a sala 185. Mas dessa
vez esqueci de perguntar onde ficava, e era do outro lado do prédio, o que me rendeu
mais quinze minutos de perna batida até que resolvesse perguntar outra vez,
achasse o lugar e trocasse todos os cinco ou seis formulários por um único
papel, novo, de caligrafia compreensível e aspecto pomposo. E me encaminharam
novamente para conhecida sala 177.
Entrei e cumprimentei a funcionária como se
fôssemos amigos de infância.
- Quanto tempo! – arrisquei numa piada, tão
bem recebida quanto uma cantada de pedreiro. Calei a boca e entreguei o papel,
ao que ela logo se pôs a fuçar novamente nas pastas e gavetas atrás da minha
ficha, até que, contrariando todas as expectativas, ao invés de outro
formulário retirou um novo documento e se pôs a preenchê-lo.
- Não precisa mais trazer a registração.
Você só tem que trazer depois uma fotografia, para que aí então eu possa... –
murmurou num sorrisinho sádico.
- Eu já tenho – estraguei ingenuamente sua
satisfação retirando de pronto uma fotinha amassada da carteira. Ela pegou,
olhou com algum desprezo, mas logo colou no documento, retirou um carimbo da
gaveta e, num gesto decidido e estrondoso de um finale, abençoou um papel até então prosaico com
a marca divina do estado Russo, transmutando-o da água para o vinho em
documento oficial.
- Aqui, pegue, por favor. Daqui a um mês
você volta aqui para renová-lo.
Peguei o documento, agradeci com
sinceridade e me retirei do gabinete, contendo a minha alegria até sair da zona
dos escritórios. Quando finalmente me senti seguro tirei o documento do bolso,
beijei-o e dei um pulo de alegria: não sei se por estupidez ou se por
socialismo, mas o fato é que se esqueceram de me cobrar o aluguel.
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